Estamos próximos da imunidade de rebanho contra COVID-19? A questão é mais complexa do que isso

Um estudo publicado no final de junho na revista Science e uma coluna do biólogo Fernando Reinach no Estadão foram gatilhos para que começássemos a ouvir mais sobre a possibilidade de algumas cidades brasileiras estarem próximas da chamada imunidade de rebanho.
Crédito: Jim Cooke/Gizmodo

Um estudo publicado no final de junho na revista Science e uma coluna do biólogo Fernando Reinach no Estadão foram gatilhos para que começássemos a ouvir mais sobre a possibilidade de algumas cidades brasileiras estarem próximas da chamada imunidade de rebanho ou imunidade coletiva para o novo coronavírus, incluindo Manaus e São Paulo.

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Essa seria, em tese, uma boa notícia: conseguiríamos nos ver livres do COVID-19 mais cedo, sem temer uma segunda onda de infeção. Porém, não há consenso entre epidemiologistas, cientistas e pesquisadores – e isso faz parte do que chamamos de ciência, ainda mais se tratando de um vírus novo, que mal conhecemos.

A tentativa aqui é entender melhor o estudo publicado na Science, denominado “Um modelo matemático revela a influência de heterogeneidade da população na imunidade de rebanho para para SARS-CoV-2”, em tradução livre. Então, vamos por partes:

Definindo imunidade de rebanho

A ideia por trás da imunidade de rebanho é que, após atingir uma determinada porcentagem da população, o vírus não encontra pessoas suscetíveis à infecção o suficiente para causar novas grandes ondas de contágio.

Geralmente, esse cálculo é realizado para determinar campanhas de vacinação: uma população é exposta aos mesmos componentes virais que irão gerar uma resposta imunológica bastante similar. Os epidemiologistas fazem o cálculo para determinar a porcentagem de pessoas que devem ser vacinadas para atingir a imunidade da população.

Para chegar ao número, levam em consideração o número básico de reprodução, que indica o quão contagiosa é uma doença infecciosa. Esse número é representado pelo R0. Com esse número em mãos, epidemiologistas utilizam uma fórmula simples para calcular a imunização coletiva: 1 − 1/R0.

O R0 não é o mesmo que o número efetivo de reprodução Rt, que é uma das métricas que muitos países sérios levaram em consideração ao desenvolver suas políticas de reabertura.

Esse ponto é muito importante porque o Rt varia de acordo com o comportamento da população e as medidas de prevenção: distanciamento social, uso de máscara, evitar aglomerações e lavar as mãos com frequência contribuem para que número efetivo de reprodução do vírus caia em um determinado período de tempo.

Já o R0 descreve quantos são infectados sem quaisquer medidas de combate, em um cenário em que não há vacina, não pegou a doença e que não possamos conter a propagação.

Uma estimativa comum até agora para o COVID-19 é que seu R0 fosse de 2,5 – ou seja, cada pessoa infectada iria passar a doença, em média, para duas pessoas e meia. Nesse cenário, o vírus iria se espalhar de forma acelerada até que 60% das pessoas desenvolvessem anticorpos. Ao atingir esse número, o vírus não deixa de existir, ele só perde velocidade já que entra em contato com pessoas imunes e precisa de “mais tentativas” até chegar a alguém suscetível.

Porém, o vírus no mundo real traz mais complexidades para o cálculo. Há contextos diferentes, cargas virais variadas e vetores diversos. Algumas pessoas estão mais suscetíveis a serem infectadas pelo novo coronavírus – dessas, algumas têm mais chances de espalhar para outras pessoas.

As razões são das mais diversas: alguém que está na linha de frente do combate à doença está mais exposto, por exemplo. Se alguém mora em uma casa com mais pessoas, a chance de ela transmitir depois de se infectar aumenta – ou no caso de uma pessoa assintomática que não pôde adotar o isolamento social e tem ido trabalhar todos os dias pegando transporte público, para dar uma dimensão do problema que estamos falando aqui.

O contrário também é válido: há pessoas menos suscetíveis a pegar o coronavírus e com probabilidade menor de passá-lo para frente.

Há um fato: nem todos estão igualmente suscetíveis ao coronavírus.

A imunidade de rebanho para o coronavírus

Não existe uma resposta definitiva para a porcentagem de indivíduos que precisariam estar imunes (ou seja, terem contraído o coronavírus e desenvolvido resposta imunológica) para que uma população esteja a salvo de novos grandes surtos.

Até agora, os cientistas trabalhavam com uma estimativa que variava de 60% a 70% de pessoas com resposta imunológica para atingir a imunidade coletiva. Isso significa que entre 60% e 70% da população precisaria entrar em contato com o COVID-19 para que uma região estivesse “imune”. A ressalva desse método é que ele considera a população homogênea, como todos fossem iguais.

Na prática, sabemos que não é assim. E foi isso que o modelo matemático do estudo publicado na Science tentou levar em consideração. Os cientistas introduziram variáveis em um modelo clássico chamado SEIR (Suscetível >Exposto >Infectado >Recuperado), levando em consideração os cenários que mencionei acima: intensidade de interação social e divisão por seis faixas etárias.

Eles utilizam o mesmo número R0 mencionado anteriormente, mas adicionaram essas variáveis à equação. De acordo com o estudo do grupo, a imunidade de rebanho poderia ser atingida com 43% da população com anticorpos, em vez dos 60%. Os autores são muito cautelosos em relação ao número, é importante destacar – no resumo do artigo eles deixam claro:

Nossas estimativas devem ser interpretadas como uma ilustração de como uma população heterogênea afeta a imunidade de rebanho, em vez de ser um valor exato ou até mesmo a melhor das estimativas.

Outros estudos e modelos matemáticos chegaram a apontar números ainda menores do que esses publicados na Science. A maioria deles tenta apontar uma justificativa para o fato de regiões que tiveram picos mais altos no início da pandemia não estarem vendo uma segunda onda tão forte, como era previsto inicialmente.

É o caso da cidade de Nova York, que teve um boom de casos e agora tem reaberto lentamente, sem ver um pico de casos. Uma reportagem desta segunda-feira da Folha que também chamou a atenção para o assunto destaca que “cidades como São Paulo, Manaus, Rio e Recife, já fortemente afetadas, estão reabrindo até agora sem repiques”, reproduzindo os cenários na Europa e em regiões mais afetadas nos EUA. Em contrapartida, os locais que não tiveram grandes surtos estão vendo um aumento de casos.

As ressalvas para a “boa notícia”

Por mais sofisticados que sejam os modelos matemáticos, eles dificilmente irão capturar todas as variáveis do mundo real. É natural que tentemos encontrar justificativas para a queda nos casos nos locais em que já aconteceu o pico, mas ao mesmo tempo precisamos levar em consideração que o território é desconhecido.

Em entrevista à Quanta Magazine, Marc Lipsitch, professor de epidemiologia de Harvard, deu uma explicação interessante: “A primeira pessoa provavelmente vai infectar aqueles que são mais suscetíveis no princípio, deixando as pessoas menos suscetíveis para a segunda metade da epidemia, o que significa que a infecção poderia ser eliminada mais cedo do que o imaginado”.

Faz sentido e justamente por isso não se pode levar a imunidade de rebanho como uma estratégia contra a epidemia. Ela é, na verdade, consequência.

Olhando em retrospecto, as cidades que parecem estar próximas de atingir essa suposta imunidade coletiva sofreram com números altíssimos de mortos. São Paulo lidera as mortes confirmadas: 8.212. Logo depois, vem o Rio de Janeiro: 7.310. Manaus teve 1.907 mortos, com pessoas precisando ser enterradas em valas coletivas. Esses números são os mais recentes disponíveis neste mapa do G1.

Dentre os mortos, a prevalência é de populações mais pobres. As regiões periféricas de São Paulo aparecem com maior presença de anticorpos, como apontou Reinach em sua coluna do Estadão – segundo ele, em junho os positivos para o anticorpo eram 16% nos locais mais pobres. Ao mesmo tempo, a taxa de letalidade da doença foi muito maior nesses locais se comparados com os bairros de maior renda.

Os distritos que mais possuem favelas em relação ao total de domicílios concentram mais vítimas do que os bairros que não registram moradia irregular, como mostrou a Rede Nossa SP. Além disso, a periferia de SP concentra mais mortes por COVID-19 abaixo dos 65 anos. Foram, na maioria das vezes, as pessoas que não puderam optar pelo isolamento social – não porque não queriam, mas porque não podiam.

Paulo Nadanovsky, epidemiologista da Fiocruz e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) publicou em seu blog em meados de junho uma possível explicação sobre a queda nas mortes em Manaus (grifo nosso):

Uma possibilidade é que os 15% que se infectaram fossem justamente as pessoas que viviam mais aglomeradas e seus contatos, portanto, estavam mais expostas ao vírus. Pode ser que as 85% ainda sem anticorpos vivam em áreas de menor densidade demográfica, não circulem pela cidade (ou não circularam neste período analisado) ou tenham alguma característica imunológica que as torne menos suscetíveis a este vírus. Devido a diferenças na susceptibilidade individual, possivelmente as pessoas mais suscetíveis ao vírus tenham falecido, restando após o primeiro surto pessoas mais resistentes. Além disso, pode ser que a população de uma forma geral tenha se assustado com o aumento na quantidade de infecções e de mortes e, consequentemente, passou a tomar mais cuidados higiênicos e de distanciamento físico.

Ainda não há um número definitivo sobre a imunidade de rebanho, mas parece que ela tem contribuído. Este é, de fato, um cenário um pouco mais animador: saber que a curva de infecção pode abaixar em algumas cidades. Mas é importante que isso não baseie políticas de reaberturas abruptas, seja nas cidades já afetadas ou naquelas que estão vendo o pico se aproximar.

O índice de contágio pode aumentar rapidamente se o vírus encontrar novos grupos suscetíveis em casos de aberturas – uma parte da população pode ter adquirido anticorpos e desacelerado o vírus, mas um retorno sem cuidados pode gerar novos caminhos de contato.

As cidades brasileiras duramente afetadas pelo coronavírus também não tiveram uma estratégia de testagem em massa realmente eficaz e é certo que existe um número grande subnotificado de pessoas que foram contaminadas – isso não nos permite aferir com precisão a porcentagem de pessoas que realmente estariam imunes.

De acordo com um mapeamento feito pela prefeitura de São Paulo, a estimativa é de que 1,2 milhão de pessoas podem ter sido infectadas pelo COVID-19 na capital paulista (o que representaria cerca de 9,8% da população, uma porcentagem que está longe dos números do modelo matemático).

A imunidade conquistada até agora pode ser um dos fatores que explique a queda de casos e mortes em algumas cidades que foram mais duramente atingidas no começo da pandemia. Porém, os fatores como o isolamento social e uso de máscaras também podem ter contribuído para desacelerar o vírus.

Para ficarmos na cidade de São Paulo, dados do Sistema de Monitoramento Inteligente (SIMI), que mede índice de adesão ao isolamento social, mostra que o movimento das pessoas ainda está abaixo do normal, mesmo com as reaberturas de algumas atividades. O índice de isolamento variou de 46% a 53% em julho para a capital.

Médicos têm relatado sequelas em pacientes com COVID-19, mesmo naqueles com sintomas leves. No caso de pacientes que tiveram problemas respiratórios graves, há relatos de sintomas persistentes naqueles que tiveram alta. Os cientistas também ainda não sabem responder muitas das questões sobre quanto tempo duraria a imunidade ao COVID-19.

Daqui para frente, é provável que precisemos continuar adotando as medidas de contenção de danos, pelo menos até que uma vacina esteja amplamente disponível.

A imunização de rebanho pode não vir sem custos.

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