Departamento de Justiça dos EUA reacende guerra fria com a Apple em torno de criptografia

O Departamento de Justiça dos Estados Unidos tem travado uma espécie de guerra fria com a Apple e a comunidade tecnológica desde a polêmica em 2015 envolvendo o desbloqueio do iPhone do atirador de San Bernardino. Nesta semana, o conflito se aqueceu novamente, com o FBI e a Apple trocando declarações sobre criptografia. E, na quinta-feira […]

O Departamento de Justiça dos Estados Unidos tem travado uma espécie de guerra fria com a Apple e a comunidade tecnológica desde a polêmica em 2015 envolvendo o desbloqueio do iPhone do atirador de San Bernardino. Nesta semana, o conflito se aqueceu novamente, com o FBI e a Apple trocando declarações sobre criptografia. E, na quinta-feira (9), o vice-procurador-geral dos Estados Unidos entrou em cena.

O FBI está atualmente investigando as circunstâncias em torno do massacre de 26 pessoas em uma igreja em Sutherland Springs, no Texas. Como o atirador, Devin Kelley, está morto, as autoridades têm tido que trabalhar com as provas que ele deixou para trás. Na terça-feira (7), o agente especial do FBI Christopher Combs deu uma entrevista coletiva em que lamentou que o FBI tenha sido, até agora, incapaz de desbloquear o celular de Kelley. Na quarta-feira (8), a Apple revelou que poderia ter sido capaz de ajudar, mas que o FBI havia esperado mais de 48 horas para informar a Apple ou o público de que estava tentando destravar o iPhone. A Apple afirmou que poderia ter sugerido tentar utilizar o recurso do Touch ID nessas 48 horas, mas que agora era tarde demais.

Este poderia ter sido o fim da história. Até esta quinta-feira (9), nem o FBI ou a Apple pareciam querer voltar ao seu debate quente sobre criptografia que havia acontecido em 2015. Pessoas do FBI e do Departamento de Justiça seguiram fazendo comentários de que precisavam de uma brecha para a criptografia nesse meio tempo, mas, sem um caso grande como o de San Bernardino para ganhar apoio do público, não fizeram um estardalhaço em cima disso. E a Apple ficou bastante feliz de simplesmente sair daquele incidente sem ser forçada a criar futuras backdoors para o governo dos Estados Unidos. Dá até para dizer que a declaração da Apple na quarta-feira foi um esforço para evitar um novo alvoroço. Mas, na quinta-feira, o vice-procurador-geral dos Estados Unidos Rod Rosenstein trouxe o assunto à tona novamente. Rosenstein, convenientemente, não mencionou que a Apple envergonhou o FBI publicamente ao afirmar que a agência sequer tentou entrar em contato com a empresa em busca de ajuda para ter acesso ao celular de Kelley.

Em um café da manhã para líderes empresariais em Maryland, Rosenstein fez um discurso abordando vários assuntos: a importância da lei vir antes da política, o crescente problema do cibercrime e, mais uma vez, o quanto ele adoraria poder invadir o celular de qualquer um sempre que estivesse no meio de uma investigação. Rosenstein, claramente, está ou sendo deliberadamente ignorante ou então inflamando o público ao fazer declarações como: “Ninguém tem uma expectativa legítima de privacidade naquele celular”, referindo-se ao aparelho do atirador. “O suspeito está morto, e, mesmo que estivesse vivo, seria legal que a polícia e os procuradores descobrissem o que está no celular”, explicou.

O FBI e outras agências governamentais de todo o mundo tendem a defender a criação de uma backdoor na criptografia, na necessidade de proteger o público ou por meio de algum tipo de argumento legal sobre mandados de busca. Rosenstein escolheu as duas vias. “Quando você atira em dezenas de cidadãos americanos, queremos que as autoridades te investiguem”, falou aos presentes. “Existem coisas que precisamos saber.”

Como é comum nesse tipo de argumento, o problema é que ninguém está falando da privacidade de um homem morto ou da constitucionalidade de um mandado de busca para o telefone. Ou mesmo sobre a segurança física de alguém. A questão é a privacidade e a segurança de todos que usam tecnologia e internet. Uma boa criptografia significa que ninguém pode ter uma backdoor. Se houver, alguém vai acabar sendo capaz de abri-la. Rosenstein, em apenas algumas frases, conseguiu ir de lançar advertências medonhas e estatísticas de cibercrime a sugerir uma ótima maneira de tornar o cibercrime muito pior.

Mesmo quando a Apple afirmou mais recentemente que “oferecemos assistência e dissemos que agilizaremos nossa resposta legal a qualquer processo que nos enviem”, ela estava se referindo apenas a oferecer treinamento e assistência técnica. Não estava dizendo que poderia descriptografar o celular. A posição oficial da empresa é de que constrói produtos para que o usuário seja o único com o acesso. O fato de que o FBI tenha conseguido pagar US$ 900 mil para alguns hackers destravarem o smartphone do atirador de San Bernardino significa que a Apple não fez um trabalho irretocável na construção dessa criptografia. Ainda assim, pelo que sabemos, o objetivo é verdadeiro — construir um celular sem backdoors porque essa é a melhor maneira de fazê-lo.

Rosenstein e seus colegas agem como se empresas como a Apple estivessem protegendo criminosos e desrespeitando mandados da justiça. Na verdade, empresa como a Apple estão protegendo também a Rosenstein e seus colegas, porque eles certamente usam a tecnologia diariamente. Mandados não vêm ao caso aqui, porque a tecnologia é projetada para que ninguém possa ser forçado a abrir seu celular.

Antes de smartphones e notebooks existirem, agentes do FBI não exigiam que neurologistas fizessem autópsias dos cérebros de suspeitos mortos para tentar descobrir alguns números de telefone de pessoas com quem eles estiveram em contato. Se houvesse uma agenda telefônica na casa do suspeito, um mandado lhes permitia encontrá-la. Isso não mudou hoje em dia. As autoridades precisam começar a pensar em um celular travado e criptografado como um cérebro morto. Se puderem contratar algum hacker Frankenstein para trazê-lo de volta à vida, tudo bem. Mas, de outra forma, faça só o trabalho policial à moda antiga.

Se os últimos dias forem indício de alguma coisa, esse pode se tornar mais um período prologando de guerra de declarações entre FBI e Apple. Rosenstein e a agência provavelmente veem uma oportunidade política de virar a opinião pública contra o mundo tech. Este, por sua vez, precisa melhorar em vários aspectos, é verdade, mas um deles é justamente tornar a criptografia mais impenetrável para o FBI.

[The Hill, The Washington Examiner, Baltimore Sun]

Imagem do topo: Getty

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