Maior aldeia indígena do Brasil tem redução de casos graves de ofidismo com uso precoce de soro
Reportagem: Camila Neumam/Instituto Butantan
A inclusão do tratamento com soro antiveneno dentro das unidades de saúde indígena do Alto Rio Solimões, na Amazônia, impactou diretamente na redução dos casos graves de ofidismo na região este ano. A mudança vem sendo celebrada por profissionais de saúde e por lideranças locais, que trabalham diretamente nos atendimentos.
A iniciativa faz parte de um projeto-piloto realizado desde março pelos pesquisadores da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado da Universidade do Estado do Amazonas (FMT-HVD/UEA), com apoio do Instituto Butantan, que doou 800 ampolas de soro contra veneno de jararaca e de surucucu-pico-de-jaca (antibotrópico e antilaquético). Os soros foram aplicados em unidades de saúde de atenção primária (Polos-Base) dos Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena (DSEIs) do Alto Rio Negro e Alto Rio Solimões, região cinco vezes mais afetada pelo ofidismo do que o resto do país.
O objetivo do projeto é facilitar o acesso de indígenas, ribeirinhos, agricultores e outros moradores de áreas remotas da Amazônia ao tratamento contra picadas de cobra. O acesso dos indígenas é dificultado pela grande distância da aldeia até a zona urbana dos municípios onde há hospitais com soro disponível para a aplicação.
“Os casos graves estão deixando de ser comuns porque o soro está disponível precocemente. Isso está reduzindo o retardo no atendimento, porque as pessoas estão tendo acesso ao tratamento a menos de três, cinco horas do acidente, o que é favorável para o sucesso do tratamento nas aldeias”, explica o professor de Saúde Indígena da UEA, Altair Seabra, um dos líderes do projeto.
O projeto tem também o apoio do Ministério da Saúde, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), da Duke University, nos Estados Unidos e da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas.
Tratamento precoce
“Hoje em Belém está muito bom porque é esse soro que a gente precisava há muito tempo. Nós sofremos antigamente porque não tinha. Precisamos muito desse soro”, diz o cacique* da aldeia Belém do Solimões, Gilberto Manoel Ramos.
A aldeia Belém do Solimões é a maior comunidade indígena do Brasil, com mais de 5 mil moradores, que vivem na fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, a mais de 1.000 quilômetros de Manaus. O Polo Base Belém do Solimões é referência para os moradores da aldeia e de outros 6 mil indígenas procedentes de 28 comunidades adjacentes de etnias diferentes.
Em caso de acidente ofídico, os moradores destas localidades precisam percorrer longos itinerários, que podem demorar dias, por envolverem diferentes meios de transporte. Os longos trajetos a pé e o uso de canoas, voadeiras (espécie de lancha para baixas profundidades), barcos maiores, ambulância e avião – quando são casos graves encaminhados para Manaus – podem delongar 96 horas até chegar ao hospital, segundo a pesquisa.
O projeto identificou que essa demora aumenta o risco de sequelas irreversíveis entre os acidentados, como amputações ou mortes. O estudo demonstrou ainda que tanto tempo gasto custa R$ 40 milhões aos brasileiros.
Segundo o cacique Gilberto, o acesso descentralizado ao soro permitiu a indígenas de várias comunidades da região receberem o tratamento mais rapidamente. “Hoje o paciente já é tratado aqui, e vem também das aldeias do Bananal, do Crajari e do Barro Vermelho, todas aqui próximas à Belém dos Solimões”, afirma.
A parteira Nilda Tiago Elizardo, moradora de Belém do Solimões, reitera que o tratamento local diminuiu a necessidade de resgate para hospitais.
“É importante ter o soro aqui porque o pessoal da comunidade não está mais indo para o hospital. É muito importante ter o soro para todas as comunidades onde tiver unidade básica de saúde porque o indígena não gosta muito de ir para o hospital”, esclarece.
Maior aceitação
Enfermeiro treinados pelo projeto, e que hoje repassa os conhecimentos aos agentes de saúde locais, Remysson Silva de Carvalho percebeu que a condição facilitada impactou na maior aceitação do tratamento pelos indígenas.
“No ponto de vista local, de quem vivencia o dia a dia com os aldeados, desde quando foi implementado o projeto-piloto com a doação de soros, vimos que na comunidade indígena, em geral, teve uma boa aceitação. Melhorou mil vezes”, disse o enfermeiro que trabalha no Polo Base de Vendaval, na mesma região.
Segundo Remysson, ter o soro disponível no Polo Base evita o agravamento dos casos, traz mais conforto aos moradores e, sobretudo, evita o longo deslocamento.
“Já tivemos casos leves, moderados e graves e a experiência des pacientes que foram tratados no Polo Base. Com o soro no Polo, conseguimos manter o paciente grave acomodado e com conforto e preservamos a questão cultural de se manter na aldeia”, ressalta.
Como o treinamento continua sendo repassado para outros profissionais, o enfermeiro acredita ser viável manter o projeto na unidade, pois a nova dinâmica também se mostrou benéfica para os profissionais de saúde.
“Ter o soro dentro do Polo deixa o tratamento mais viável para os profissionais e para o paciente, porque muitas vezes os pacientes têm resistência de ir para o hospital por conta de experiências negativas que tiveram no município. Eu gostaria que o projeto continuasse”, reflete.
Segundo o enfermeiro, para o programa continuar sendo exitoso na região “só seria preciso treinar a equipe quanto à qualificação da informação e do preenchimento do Sistema de Informação de Agravos de Notificação”. O sistema do Ministério da Saúde, alimentado por estados e municípios, melhora e facilita o fluxo de remoção do paciente, de acordo com ele.
Respeito à cultura indígena
Além da dificuldade logística de se chegar ao hospital, alguns indígenas preferem permanecer na aldeia por questões culturais. Deixar o próprio território e a família durante uma enfermidade é algo que não faz sentido na cultura indígena, que prioriza a vida em comunidade.
“É muito agressivo para o indígena ter que se deslocar da aldeia para a cidade, sair de sua terra. Para ele, estar com os familiares é muito importante para o tratamento”, explica Altair.
Ter este tipo de conhecimento é importante, principalmente para os profissionais de saúde que cuidam dessas populações, explica o professor que é indígena da etnia Omágua Kambeba. Nascido em São Paulo de Olivença (AM), a 991 quilômetros de Manaus, com formação em Enfermagem, Altair destaca a necessidade destes profissionais entenderem as particularidades da comunidade indígena em vez de “achar que eles não sabem como se tratar”.
“Na tradição indígena, dependendo do agravo, não é somente o paciente que precisa de privações. A família do paciente também segue uma determinada conduta para que a recuperação dele seja efetiva. Esse componente cultural precisa ser levado em consideração”, explica Altair, que é especialista em Saúde Indígena pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), mestre em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em doenças tropicais e infecciosas pela FMT-HVD/UEA.
Altair dá como exemplo dois conceitos importantes que deveriam ser considerados por profissionais de saúde que atuam com essa população. O primeiro se refere às síndromes culturais, conceito que na medicina e na antropologia médica se refere a uma combinação de sintomas somáticos e psiquiátricos, reconhecidos como doenças em uma cultura específica.
O primeiro conceito foi classificado desta forma no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-4) de 1994, e reclassificado como conceitos culturais de sofrimento no DSM-5 de 2013. O manual feito periodicamente pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) é utilizado por especialistas para fazer diagnósticos de transtornos mentais.
“Há muitas síndromes culturais na Amazônia como o quebranto, o mau olhado, a panema que têm a necessidade de serem tratadas com descanso, com uso de chás, com fumo, um tratamento também da alma. Estas questões também determinam que alguns prefiram não ir ao hospital, onde essas tradições não serão respeitadas”, reflete.
O segundo se refere a eficácia simbólica, proposto na década de 1940 pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009) ao observar partos de indígenas da etnia Cuna, no Panamá. Em termos gerais, a teoria argumentava que o encantamento dos xamãs evocava repostas fisiológicas que contribuíam nos partos difíceis. Isto é, não havia como dissociar a espiritualidade indígena do atendimento médico.
Levando em conta essas questões e a gravidade do envenenamento para a saúde indígena, Altair ressalta a importância de manter regularmente os soros nos Polos Base da região.
“Se você partir de uma premissa que em todos esses Polo Bases há condições de ter o armazenamento do soro porque são as mesmas condições de armazenamento das vacinas, já se observa a viabilidade de se ampliar a cobertura do tratamento com soro antiofídico para essas populações”, conclui.
*As entrevistas com o profissional de saúde e com os aldeados foram realizadas via áudios enviados pelo pesquisador Altair Seabra a reportagem
Fotos: acervo Altair Seabra