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Uma memória perfeita seria um fardo ou um superpoder?

A habilidade de se lembrar de todos os momentos de sua vida parece algo incrível. No entanto, para as poucas pessoas que possuem essa capacidade, há um preço alto a se pagar. Conhecida como Memória Autobiográfica Altamente Superior (HSAM, na sigla em inglês), ou hipertimesia, a condição – tal como ela é – foi relatada pela […]

A habilidade de se lembrar de todos os momentos de sua vida parece algo incrível. No entanto, para as poucas pessoas que possuem essa capacidade, há um preço alto a se pagar.

Conhecida como Memória Autobiográfica Altamente Superior (HSAM, na sigla em inglês), ou hipertimesia, a condição – tal como ela é – foi relatada pela primeira vez pelo neurobiólogo James McGaugh, da Universidade da Califórnia em Irvine, em 2006. Em seu estudo de referência “Neurocase”, McGaugh descreveu a paciente “AJ”, uma mulher de 42 anos “cuja lembrança domina sua vida”.

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A condição não deve ser confundida com a memória fotográfica ou eidética, ou com profissionais que utilizam de estratégias de recordações mnemônicas sofisticadas. Na verdade, a hipertimesia descreve um individuo que passa uma “quantidade anormalmente grande do tempo” pensando sobre o seu passado e que possui “uma capacidade extraordinária de se lembrar de eventos específicos de seu passado pessoal”, como definiu McGaugh. Mas, conforme McGaugh aponta em seu estudo, as habilidades de lembrança super-humana de AJ tem muitas desvantagens.

“Me diga o dia, e eu vou enxergá-lo”, disse ela aos pesquisadores. “Eu penso sobre o dia e simplesmente o vejo, lembro do que estava fazendo.”

AJ comparou sua condição com um modo de dividir a tela de uma televisão, em que ela conversa com alguém e, de repente, uma cena vívida de seu passado surge em sua mente.

“Estamos sentados aqui conversando, e, enquanto falo com você, estou pensando em algo que aconteceu comigo […] em 17 de dezembro de 1982. Foi uma sexta-feira, e eu comecei a trabalhar [em uma loja]”, conta ela. “Tem tudo a ver com as datas.”

Ao observar AJ, McGaugh e sua equipe ficaram maravilhados com sua capacidade de se recordar de detalhes de todas as Páscoas dos últimos 24 anos (as informações foram corroboradas com informações de seu diário), e ela deu datas corretas para eventos completamente triviais, como o dia em que o episódio “Quem atirou em J.R.?”, do seriado Dallas, foi ao ar.

Ao mesmo tempo, AJ descreveu suas habilidades de lembranças como algo “exaustivo”, dizendo que sua memória “rege a sua vida”. Ela disse que pensa sobre o passado “o tempo todo” e que isso é como “um filme sendo reproduzido o tempo todo, sem parar nunca”. Memórias negativas são particularmente problemáticas para AJ, que diz que “precisa apenas passar por algo uma única vez para ficar totalmente assustada com a experiência […], não consigo esquecer as coisas por causa da minha memória, é parte de mim”.

Pessoas com hipertimesia x pessoas com memória comum

Depois que McGaugh publicou o artigo, outros hipertimésicos se apresentaram, incluindo o artista Nima Veiseh, que consegue lembrar de suas experiências profissionais dos últimos 17 anos. Assim como AJ, Veiseh é capaz de se lembrar de detalhes absurdamente insignificantes, como as roupas que vestia em um dia em particular, ou que lado do trem ele escolheu se sentar enquanto ia para o trabalho. “Minha memória é como uma biblioteca de fitas VHS, um passeio de cada dia da minha vida, da hora em que acordei até a hora em que fui dormir”, disse ele à BBC, em 2016.

Markie Pasternak, graduada pela Universidade Marquette, foi diagnosticada com hipertimesia durante seus 20 e poucos anos. Ela consegue se lembrar do que fez, com quem falou, o que comeu e como se sentiu em qualquer data, desde a sua infância. No total, foram registrados menos de 100 casos de pessoas com hipertimesia no mundo todo nos últimos dez anos, mas o número tem aumentado aos poucos, conforme mais pessoas ficam sabendo da condição.

Os cientistas não têm tanta certeza sobre o que acontece com a parte neurológica ou psicológica de pessoas com hipertimesia, mas algumas pistas estão começando a surgir.

“Uma coisa muito interessante é que há uma seleção para memórias pessoais, autobiográficas – de eventos do seu dia –, e não para outros tipos de memória”, conta Craig Stark, neurobiólogo e especialista em hipertimesia da Universidade da Califórnia em Irvine, ao Gizmodo. “Além disso, sabemos que eles não são melhores no aprendizado dessas informações. A única coisa é que eles esquecem muito, muito devagar. A memória deles não é melhor do que a nossa. Mas talvez eles lembrem de eventos de um dia de uma década atrás da mesma maneira como nos lembramos de um dia da semana passada.”

Pesquisas feitas por Stark e sua equipe mostram que pessoas neurotípicas (que não apresentam distúrbios significativos no funcionamento psíquico) são tão boas quanto pessoas com hipertimesia para lembrar de eventos que se passaram há uma semana. Depois de um longo período, como um mês ou um ano, hipertimésicos conseguem se lembrar de informações com uma clareza impressionante, enquanto pessoas neurotípicas (do grupo de controle) não conseguem.

Relação com outros distúrbios

Lawrence Patihis, que é psicólogo da Universidade do Sul de Mississippi, diz que existem poucos estudos comportamentais e de escaneamentos cerebrais com pessoas hipertimésicas. Os estudos até agora foram feitos por McGaugh, Stark e pela cientista de dados e neurobióloga da UC-Irvine Aurora Leport, entre outros.

“Eles descobriram que indivíduos com hipertimesia possuem mais tendências obsessivas do que pessoas sem memória superior e eles encontraram pequenas diferenças no tamanho das áreas dos cérebros envolvidas com a memória, bem como diferenças na conectividade funcional nos circuitos de pensamento envolvidos com memória”, disse Patihis ao Gizmodo. “O trabalho deles e o trabalho que fizemos juntos descobriram que pessoas com hipertimesia pronunciam vantagens de memória em apenas um domínio: memória autobiográfica associada a dados. Esse trabalho confirmou que eles não possuem memória fotográfica, mas que reconstroem memórias com potencial para erro como todos nós e que são bem medianos em outras tarefas relacionadas à memória.”

Patihis disse que a hipertimesia também está correlacionada com traços de personalidade como propensão a fantasias, imaginação hiperativa e obsessão com novas informações. Combinados com as tendências obsessivas, disse Patihis, esses traços de personalidade provavelmente desempenham um papel na consolidação da memória.

“Em um estágio inicial, pessoas com hipertimesia também percebem que são diferentes e se dão conta de que precisam criar estratégias de enfrentamento para lidar com o fato de que elas se lembrarão não apenas das interações positivas, mas também de todas as negativas”, disse Stark. “Parece haver taxas mais altas de comportamentos do tipo TOC nessa população, mas precisamos ter em mente que as pessoas com hipertimesia que estudamos são membros altamente funcionais e bem-sucedidos da sociedade (pode haver pessoas com hipertimesia que são menos funcionais e não nos contataram, é claro).”

Fardo?

Durante o estudo inicial de 2006, AJ disse a McGaugh: “Não é como se eu nunca fosse querer ter algo assim, mas é um fardo”. O comentário ilustra os dois extremos da condição. Embora haja flashbacks dolorosos e memórias indesejáveis, a condição também tem alguns benefícios, como relata David Robson em um artigo da BBC Future, publicado em 2016:

As pessoas com hipertimesia que entrevistei certamente concordariam que a condição pode ser uma benção mista. No lado positivo, ela permite que você relembre das experiências mais transformadoras e enriquecedoras. [Nima] Veiseh, por exemplo, é praticamente um polímata [pessoa com conhecimento em diversas áreas]. Ele viajou muito durante sua juventude para competir em torneios internacionais de taekwondo, mas em seu tempo livre ele visitava galerias de arte locais, e talvez seu amor pela arte se entrelaçou à sua identidade, e agora as pinturas estão profundamente alojadas em suas memórias autobiográficas.

“Imagine ser capaz de se lembrar de todas as pinturas, de cada parede, de cada espaço da galeria de cerca de 40 países”, diz ele. “É uma grande educação em arte por si só”. Com esse conhecimento enciclopédico da história da arte, ele se tornou pintor profissional, com o apelido de “Enigma of Newyork”. Ele acredita que sua memória também pode tê-lo ajudado em sua outra carreira, como doutorando em design e tecnologia, ajudando-o a absorver um vasto conhecimento.

Patihis concorda, mas lembra que não são todas as pessoas com a condição que possuem os mesmos fardos que AJ. A maioria delas parece ser altamente organizada, embora um pouco obsessiva, diz ele.

Com esses relatos, é evidente que existe um valor no esquecimento, seja da memória autobiográfica ou da avalanche de informações que são despejadas em nossos cérebros diariamente. Nosso cérebro, como já foi argumentado, precisa esquecer informações sem importância para que permaneça eficiente.

Em 2014, pesquisadores da Universidade da Basileia, na Suíça, argumentaram que o cérebro trabalha ativamente para se livrar de informações supérfluas. Um “sistema nervoso plástico”, argumentaram os cientistas, “exige a habilidade não apenas de adquirir e armazenar, mas também de esquecer”. Em termos de mecânicas envolvidas no processo, os pesquisadores apontaram uma molécula, chamada de proteína Musashi, que parece contribuir para a perda de memória dependente do tempo em vermes nematoides. A pesquisa sugere que a perda de memória é uma característica adquirida e um processo fisiológico deliberado e evoluído – em vermes nematoides, pelo menos.

Stark diz que precisamos nos lembrar que a nossa memória é projetada para esquecer detalhes irrelevantes.

“Nós extraímos conhecimento e sabedoria ao ver elos e estruturas comuns ao longo dos eventos, raramente envolvendo detalhes específicos”, disse ao Gizmodo.

Stark se lembrou do conto de 1942 “Funes, o Memorioso“, de Jorge Luis Borges, no qual o personagem principal, depois de cair do cavalo e bater a cabeça, repentinamente ganha a capacidade de se lembrar de tudo. Funes logo ficou debilitado por sua condição recém-adquirida, demonstrando os perigos desse tipo de memória extrema.

Todos somos influenciados pelo nosso passado. Contamos com nossas memórias para formar nossa narrativa pessoal e construir nossa identidade. Mas, para algumas pessoas, a história de vida é mais uma obra do que um romance.

Ilustração: Elena Scotti (Foto: Getty Images)

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