Nova enzima pode impulsionar produção sustentável de combustível para aviação
Texto: Mônica Tarantino | Agência FAPESP
Nas últimas décadas, cientistas têm se dedicado a procurar soluções para melhorar o processo de fabricação sustentável dos biocombustíveis a partir de fontes renováveis. O mais recente avanço nesse campo foi anunciado por pesquisadores brasileiros há cerca de dois meses e pode impulsionar a produção de biocombustível para transporte aéreo e marítimo.
“Após três anos e meio de pesquisa, identificamos uma enzima que pode substituir os catalisadores tradicionais utilizados em rotas termoquímicas para a produção de bioquerosene de aviação [Sustainable Aviation Fuel ou SAF]”, diz Letícia Zanphorlin, coordenadora do estudo e pesquisadora líder do Laboratório Nacional de Biorrenováveis do Brasil (LNBR) do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM).
A enzima descoberta pelo grupo do CNPEM chama-se descarboxilase ou OleTPRN e pertence à classe das citocromo P450. Trata-se de uma metaloenzima proveniente da bactéria Rothia nasimurium e promete ser a chave para o desenvolvimento de novas rotas biotecnológicas para a produção de hidrocarbonetos renováveis para a aviação a partir de diferentes matérias-primas: biomassas oleaginosas (originárias da soja, macaúba ou milho, entre outros) ou lignocelulósicas (de fontes como o bagaço ou a palha da cana e da indústria do papel).
“Em comparação com os catalisadores convencionais ou químicos, a nova enzima faz a reação de descarboxilação de ácidos graxos (reação química que leva à cisão carbono-carbono e causa a remoção do grupo carboxila dos ácidos graxos) com alto rendimento e é seletiva para diferentes tamanhos e tipos de cadeia de carbono. Ela promove a desoxigenação, que é um dos grandes entraves para a produção de SAF”, explica Zanphorlin.
A pesquisadora explica que o oxigênio pode causar danos às peças e motores das aeronaves. Isso ajuda a entender por que os biocombustíveis já produzidos em larga escala pelo Brasil, como etanol e biodiesel, não são usados em aviões e explica a demanda por novos biocatalisadores. Em geral, os catalisadores convencionais utilizados em rotas para produção de combustível de aviação são produzidos à base de metais, como cobalto, platina, níquel e paládio. “Esses catalisadores metálicos, para efetuarem a reação de desoxigenação, são aplicados em condições severas, de altas temperatura e pressão, podendo causar danos ao ambiente, produzindo resíduos tecnológicos e levando a perdas de rendimentos”, diz a cientista.
O estudo, publicado em Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), foi apoiado pela FAPESP por meio de quatro projetos (18/04897-9, 19/08855-1, 19/12599-0 e 20/01967-6).
Os autores do artigo afirmam que as enzimas atuam como catalisadores biológicos, acelerando reações químicas nos diversos organismos vivos presentes na natureza. No estudo em questão, a enzima é capaz de converter, em um único passo, ácidos graxos em alcenos (olefinas), um tipo de hidrocarboneto e importante intermediário químico.
Ácidos graxos são componentes essenciais dos lipídios, classe de compostos orgânicos que abrange gorduras, óleos e que pode ter origem a partir de plantas, animais e microrganismos.
A descoberta e elucidação dos mecanismos moleculares da nova enzima são fruto de uma abordagem multidisciplinar. Os pesquisadores utilizaram bancos de dados públicos em busca de enzimas com propriedades e funções específicas. A busca foi guiada por ferramentas de bioinformática e dados genômicos de microrganismos. A enzima em potencial foi estudada em nível atômico com uso de luz síncrotron, um tipo de radiação eletromagnética extremamente brilhante que, ao incidir sobre cristais de proteína, causa a difração dos elétrons ali presentes, permitindo aos cientistas elucidar a sua estrutura tridimensional.
“Avaliamos a posição de cada aminoácido que compõe a estrutura atômica dessa enzima e mapeamos suas interações intermoleculares com o ácido graxo”, descreve Zanphorlin. Foi aí que os pesquisadores vislumbraram todas as possíveis aplicações da descoberta.
Paralelamente ao trabalho no laboratório, outras equipes de profissionais do CNPEM trabalharam no registro da patente e na produção de avaliações técnicas, econômicas e ambientais dessas rotas de base biológica, que devem ser publicadas em breve.
“A enzima estudada teve a patente depositada em 2021. Esse é um dos grandes diferenciais do CNPEM: temos a oportunidade de desenvolver a tecnologia, escalonar em planta-piloto e num ambiente industrialmente relevante e realizar avaliações técnicas, econômicas e ambientais que nos ajudam a identificar possíveis pontos de melhorias na inovação em desenvolvimento”, relata a cientista.
As possibilidades de produção de combustíveis adequados à aviação com a ajuda da nova enzima são animadoras, segundo os pesquisadores. “No que se refere a resíduo lignocelulósico proveniente da cana-de-açúcar, atualmente o Brasil gera cerca de 150 milhões de toneladas de massa seca e isso pode ser aumentado sem gerar impacto ao meio ambiente”, exemplifica a pesquisadora.
Para a implementação dessa tecnologia seria necessário fazer adaptações no parque industrial de produção do biocombustível, mas seu uso e distribuição poderiam compartilhar da infraestrutura já utilizada pelos combustíveis de origem fóssil, que tem potencial para providenciar um combustível <>drop-in, com função idêntica aqueles à base de petróleo.
A equipe de pesquisa também se mostra otimista quanto ao impacto futuro em diversos setores industriais. “A versatilidade dessa enzima permite que seja adaptada para uso em diferentes setores. As olefinas, que são produzidas pela reação enzimática, são a base de aproximadamente dois terços da indústria química nos dias atuais para a produção, principalmente, de polímeros e plásticos. Isso abrange diferentes áreas, como alimentícia, cosmética, farmacêutica, transporte”, avalia a pesquisadora.
O artigo Dimer-assisted mechanism of (un)saturated fatty acid decarboxylation for alkene production pode ser lido em: https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.2221483120.