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Novo estudo comprova que a COVID-19 grave é uma doença trombótica

Em artigo publicado no Journal of Applied Physiology, pesquisadores da USP mostram que o dano causado pelo SARS-CoV-2 ao revestimento de pequenos vasos pulmonares é um fenômeno determinante para o agravamento da doença.

Novo estudo comprova que a COVID-19 grave é uma doença trombótica

Imagem: Freepik/Reprodução

Texto: Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP

A trombose em pequenos vasos (capilares) do pulmão é uma das primeiras consequências da COVID-19 grave, precedendo até mesmo a dificuldade respiratória decorrente do chamado dano alveolar difuso. Foi o que comprovou um estudo brasileiro publicado este mês no Journal of Applied Physiology. A partir da autópsia de nove pacientes que morreram após desenvolver a forma grave da doença, foi possível observar um quadro muito característico, envolvendo alterações na vascularização pulmonar e trombose.

No trabalho, os pesquisadores descrevem, pela primeira vez, aspectos relacionados ao dano endotelial e à formação de trombos ocasionados pela infecção. As descobertas – entre elas a constatação de que a COVID-19 tem como caráter central a formação de trombos na microcirculação pulmonar – contribuem para o entendimento da fisiopatologia da enfermidade e o desenvolvimento de novas estratégias terapêuticas.

Pesquisadores da USP analisaram tecidos de nove pacientes que morreram de COVID-19 (ilustração: Elia Caldini)

“Esse estudo foi a prova final do que vínhamos alertando desde o comecinho da pandemia: a COVID-19 grave é uma doença trombótica. O vírus SARS-CoV-2 tem um tropismo pelo endotélio [é atraído para esse tecido], a camada de células que reveste os vasos sanguíneos. Portanto, ao invadir as células endoteliais, ele afeta primeiro a microcirculação. O problema começa nos capilares do pulmão, para depois ir coagulando os vasos maiores, podendo atingir qualquer outro órgão”, explica a pneumologista Elnara Negri, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), coautora do artigo e uma das primeiras pesquisadoras do mundo a trabalhar com essa hipótese (leia mais em: agencia.fapesp.br/33175).

No estudo, apoiado pela FAPESP, os autores observaram por microscopia eletrônica o efeito do vírus nas células endoteliais do pulmão de pacientes que morreram com COVID-19 grave no Hospital das Clínicas (HC) da FM-USP.

A partir de autópsia minimamente invasiva, foi possível observar em todas as amostras a alta prevalência de microangiopatia trombótica – oclusão generalizada na microcirculação por trombose. As amostras analisadas são oriundas de pacientes que foram hospitalizados entre março e maio de 2020. Todos os pacientes foram intubados, necessitaram de terapia intensiva e morreram de hipóxia refratária (insuficiência respiratória). Vale destacar que nenhum paciente incluído no estudo foi tratado com anticoagulantes, pois essa não era a diretriz para o tratamento de COVID-19 naquele momento. Também não existiam vacinas disponíveis na época.

Endotélio descamado

Negri explica que, revestindo o endotélio, existe uma camada glicoproteica denominada glicocálix, que faz com que o sangue passe naturalmente pelas artérias, veias e capilares sem coagular.

“Alguns estudos anteriores realizados por Helena Nader na Unifesp [Universidade Federal de São Paulo] mostraram que, para invadir a célula, o vírus se liga principalmente ao receptor ACE-2 [proteína encontrada na superfície de diversas células do corpo, inclusive nas do epitélio e endotélio do sistema respiratório]. No entanto, antes disso, ele se liga ao heparan sulfato [um polissacarídeo] associado à membrana das células endoteliais, que forma justamente o glicocálix. Portanto, quando o SARS-CoV-2 invade o endotélio, ele o descama e destrói o glicocálix. Isso resulta em exposição tecidual e na coagulação intravascular, começando na microcirculação”, detalha Negri.

Como a ação inicial do vírus é na microcirculação pulmonar, os exames contrastados para investigação de presença de trombos em vasos maiores, realizados em pacientes com COVID-19 grave na época, nunca detectaram o problema precocemente.

No entanto, explica Negri, a disfunção endotelial é um fenômeno-chave na COVID-19, pois está diretamente associada à ativação da resposta inflamatória característica da doença. “A invasão massiva do vírus e a destruição do endotélio promovem a ruptura da barreira endotelial e o recrutamento de células imunes circulantes, ativando vias relacionadas à trombogênese e à inflamação”, diz.

No trabalho, os pesquisadores observaram que o dano causado no endotélio tende a preceder duas características comuns a casos de desconforto respiratório: o vazamento significativo da membrana alvéolo-capilar dos pulmões e o acúmulo de polímeros de fibrina (proteína associada à coagulação e ao processo de cicatrização) nos alvéolos pulmonares.

Um trabalho do mesmo grupo da FM-USP, liderado por Thais Mauad, incluindo análise do transcriptoma (conjunto de moléculas de RNA expressas em um tecido), demonstrou que diversas vias associadas à coagulação, à ativação de plaquetas e à formação de trombos já estavam ativadas precocemente nos pulmões de pacientes com dano alveolar, precedendo a inflamação.

A análise confirmou ainda que não se trata de uma coagulação comum, desencadeada pela ativação dos fatores de coagulação. “Na COVID-19, a coagulação se dá por lesão endotelial e é potencializada por netose [mecanismo imune que consiste na saída do material genético contido no núcleo dos neutrófilos em forma de redes – as NETs – na tentativa de prender e matar o patógeno] e pela lesão das hemácias com dimorfismo [uma alteração morfológica das células vermelhas do sangue] e ativação plaquetária. Portanto, existe toda uma estrutura para que o sangue fique mais denso e provoque tantas complicações”, afirma.

A pesquisadora ressalta ainda que, nesse cenário, onde o sangue se torna muito viscoso e altamente trombogênico, o paciente precisa ser mantido hidratado, diferentemente do que é preconizado para o tratamento do dano alveolar difuso. “Além disso, o timing e o controle rigoroso da anticoagulação são fundamentais”, alerta.

Não por acaso, outro estudo do mesmo grupo, com a participação das pesquisadoras Marisa Dolhnikoff e Elia Caldini, demonstrou que o dano pulmonar em casos graves de COVID-19 está associado ao nível de netose. Ao analisar amostras de tecido de autópsia pulmonar, os cientistas observaram que, quanto mais elevado era o nível de NETs, maior era o dano pulmonar dos pacientes.

Negri conta que começou a desconfiar da relação entre COVID-19 e trombose no começo da pandemia, quando identificou um quadro muito parecido com o de pacientes cardíacos que havia tratado há mais de 30 anos. Após a cirurgia cardíaca, esses pacientes, na época, também apresentavam microcoagulação vascular, no entanto, isso ocorria por eles serem submetidos a um tratamento denominado circulação extracorpórea com oxigenadores de bolha – equipamento que não é mais utilizado na medicina justamente por causar dano endotelial.

“Era uma técnica muito utilizada há 30 anos, mas que provoca uma lesão pulmonar muito parecida com a da COVID-19. Então, eu já tinha visto isso. Além da lesão pulmonar, outra semelhança entre os dois casos é a ocorrência de fenômenos trombóticos periféricos, como o dedo do pé roxo, por exemplo”, conta.

“Como na COVID-19 grave a queda inicial da oxigenação no sangue é secundária à trombose dos capilares pulmonares e não há inicialmente acúmulo de líquido no pulmão, o órgão não fica ‘encharcado’ nem perde sua complacência. Isso quer dizer que o pulmão do paciente com COVID-19 grave inicial não se parece com uma esponja cheia de líquido, como é o caso de pacientes com síndrome de desconforto respiratório. Pelo contrário, na instalação da insuficiência respiratória associada à COVID-19 grave, o pulmão está desidratado e, apesar de o ar chegar até o alvéolo pulmonar, ele não consegue passar para a circulação por causa da formação de coágulos”, explica.

Negri conta que, nesses casos, o paciente consegue facilmente encher o pulmão de ar, mas o oxigênio não consegue passar para o sangue, pois os capilares estão obstruídos. “Isso explica a chamada happy hipoxia [hipóxia feliz], ou seja, o paciente não sente que sua oxigenação está baixa e não tem falta de ar”, diz.

Ao presenciar a intubação de uma paciente com COVID-19 grave, a pesquisadora constatou que era necessária uma proposta de tratamento diametralmente diferente do que se fazia no começo da pandemia.

“O segredo para tratar o paciente com COVID-19 grave é mantê-lo hidratado e usar anticoagulante na dose certa, checando o nível adequado de anticoagulação em ambiente hospitalar assim que ele começa a dessaturar, ou seja, ter baixa de oxigênio no sangue. Depois disso, é preciso manter controle diário dos níveis terapêuticos de anticoagulação por meio de exames de sangue, sempre em ambiente hospitalar para não haver risco de sangramento, e a profilaxia de quatro a seis semanas em média após a alta, que é o tempo de o endotélio se refazer”, comenta.

A pesquisadora explica que esse protocolo com hidratação e o uso de anticoagulantes se dá porque, diferentemente das outras síndromes agudas respiratórias (SARS), nas quais o problema da falta de passagem de oxigênio dos pulmões para o sangue está principalmente relacionado com a inflamação nos alvéolos pulmonares, na COVID-19 grave inicial o dano endotelial dos capilares pulmonares é predominante.

“Era justamente essa diferença entre a COVID-19 e as outras síndromes respiratórias agudas graves que não se sabia lá no comecinho da pandemia. Por isso, inclusive, que tantos pacientes morreram nas UTIs [unidades de terapia intensiva] da Itália, por exemplo. O protocolo de tratamento usado naquele momento era outro”, lembra.

Antes do trabalho publicado no Journal of Applied Physiology, o grupo de Negri já havia observado, ainda em 2020, que o uso de heparina (um anticoagulante) melhorou a oxigenação de pacientes críticos. No ano seguinte, em colaboração com colegas de vários países, eles realizaram um ensaio clínico randomizado em que puderam demonstrar que o tratamento com heparina diminuiu a mortalidade em casos graves de COVID-19. Os resultados foram divulgados no British Medical Journal (leia mais em: agencia.fapesp.br/37076).

“O estudo contribuiu para mudar as diretrizes de tratamento da COVID-19 no mundo, pois pudemos demonstrar uma redução de 78% no risco de mortalidade quando a anticoagulação foi iniciada em pacientes que necessitavam receber oxigenação, mas ainda não estavam na UTI”, conta a pesquisadora.

Negri destaca que existe uma pressa em reverter a disfunção endotelial nos casos de COVID-19 grave com o uso de anticoagulantes. “É preciso tratar a coagulação o quanto antes, pois isso é crucial para evitar o desenvolvimento de síndrome respiratória aguda e outras decorrências da doença, como é o caso da chamada COVID longa”, diz.

Outro estudo recém-publicado na Nature Medicine por cientistas britânicos reforça o caráter de formação de trombos do SARS-CoV-2. No trabalho, os únicos marcadores de prognóstico para COVID longa identificados foram fibrinogênio e dímero D – duas proteínas associadas à coagulação.

“O estudo mostra que a COVID longa resulta de trombose que não foi tratada adequadamente. O problema na microcirculação pode persistir em diversos órgãos, inclusive no cérebro, coração e músculos, como se o paciente sofresse pequenos infartos”, explica Negri.

O artigo Ultrastructural characterization of alveolar microvascular damage in severe COVID-19 respiratory failure pode ser lido em: https://journals.physiology.org/doi/abs/10.1152/japplphysiol.00424.2023.

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