Ciência

Participação brasileira é fundamental para megaprojeto de estudo dos neutrinos

Pesquisadores da Unicamp e de outras universidades, além de 20 empresas nacionais, participam do experimento Dune. E respondem pelos processos de purificação do argônio e detecção dos fótons, sem os quais o empreendimento internacional seria impossível
Foto: Ryan Postel/Fermilab

Texto: José Tadeu Arantes | Agência FAPESP

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Com expressiva participação brasileira, acaba de ser concluída uma fase crucial do megaprojeto Deep Underground Neutrino Experiment (Dune), o mais ambicioso empreendimento já concebido para o estudo de neutrinos. No dia 15 de agosto, após três anos de trabalho, foram inauguradas as escavações subterrâneas para a construção da Long-Baseline Neutrino Facility (LBNF). Localizadas a mais de 1,6 quilômetro abaixo da superfície, em Lead, Dakota do Sul, Estados Unidos, as cavernas são estruturas gigantescas – as duas principais com mais de 150 metros de comprimento e altura equivalente a um edifício de sete andares. Cada uma das cavernas principais abrigará um detector de partículas, preenchido com 17 mil toneladas de argônio líquido puríssimo, resfriado a -184°C. As cintilações e cargas elétricas produzidas no argônio pela passagem do feixe de neutrinos informarão os cientistas sobre as transformações sofridas por essas partículas depois de viajarem 1,3 mil quilômetros debaixo da terra, desde sua fonte no Fermi National Accelerator Laboratory (Fermilab), no Estado de Illinois, até a LBNF, em Dakota do Sul.

A cerimônia de inauguração das cavernas, conduzida por Lia Merminga, diretora do Fermilab, reuniu várias autoridades políticas e científicas dos Estados Unidos e de outros países envolvidos no projeto – entre elas, uma comitiva de quatro representantes brasileiros: Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente da FAPESP; Antonio José de Almeida Meirelles (Tom Zé), reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); Maria Luiza Moretti, vice-reitora da Unicamp; e Pascoal Pagliuso, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW-Unicamp) e pesquisador principal do projeto científico de purificação do argônio e do projeto de construção da estrutura purificadora que será utilizada no experimento.

 Hema Ramamoorthi (Fermilab), Maria Luiza Moretti, Tom Zé e Pascoal Pagliuso nacerimônia de inauguração das cavernas (foto: Carlos Américo Pacheco/FAPESP)

Hema Ramamoorthi (Fermilab), Maria Luiza Moretti, Tom Zé e Pascoal Pagliuso na cerimônia de inauguração das cavernas (foto: Carlos Américo Pacheco/FAPESP)

Por meio de um fenômeno conhecido como “oscilação dos neutrinos”, os cientistas envolvidos no projeto pretendem responder a pelo menos três perguntas cruciais: por que a matéria predominou sobre a antimatéria na formação do Universo; como as explosões de estrelas supermassivas criam buracos negros; e se os neutrinos podem ser um componente importante na composição da chamada matéria escura, que responde por mais de 20% da composição do Universo.

Para tanto, os pesquisadores utilizarão o mais poderoso feixe de neutrinos até agora concebido, produzido no acelerador de partículas do Fermilab. Esse feixe deverá viajar 1,3 mil quilômetros debaixo da terra e passar por dois sistemas de detecção: o primeiro bem perto da fonte, no próprio Fermilab, no Estado de Illinois; o segundo, muito maior, situado na LBNF, em Dakota do Sul. Não será necessário construir nenhum túnel dessa extensão, porque, devido ao fato de não serem suscetíveis à interação eletromagnética nem à interação nuclear forte, os neutrinos são capazes de atravessar enormes extensões de matéria comum, mesmo os corpos mais compactos, sem que seu movimento seja barrado ou desviado: propagam-se em linha reta, viajam em velocidade próxima à da luz e conseguem ultrapassar qualquer obstáculo existente no caminho. As diferenças entre as medições realizadas no primeiro e no segundo sistemas de detecção informarão sobre o processo de oscilação dos neutrinos e possibilitarão, eventualmente, obter as respostas esperadas.

Purificação do argônio e detecção das cintilações

A colaboração Dune inclui mais de 1,4 mil cientistas e engenheiros de mais de 200 instituições em 36 países. A participação brasileira é fundamental, porque, sob a liderança da Unicamp, com robusto apoio financeiro da FAPESP (projetos 21/13757-9 19/11557-2) e do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), além da participação de mais de 20 empresas, o país será responsável pelo sofisticadíssimo sistema de purificação do argônio e pela engenhosa estrutura de detecção das cintilações luminosas, constituída pelo dispositivo X-Arapuca (leia mais em: agencia.fapesp.br/29775).

“O projeto de filtragem e refrigeração do argônio associa uma pesquisa científica extraordinariamente avançada com desafios tecnológicos para a produção de uma instrumentação científica muito sofisticada. Os trabalhos são liderados por físicos da Unicamp e outras instituições e agregam cerca de 20 empresas brasileiras. Disso vai derivar também a estruturação, em Campinas, de um hub de acesso ao experimento, que, no futuro, facilitará a interação da comunidade científica brasileira e latino-americana com dados produzidos pelo projeto, nos moldes da cooperação existente hoje entre o Cern [Organização Europeia para Pesquisa Nuclear] e o Fermilab, nos Estados Unidos. Ele complementa os avanços que já foram feitos no projeto e fabricação do X-Arapuca, também financiados pela FAPESP, que é o melhor detector de fótons já construído e que vai fazer parte da instrumentação de detecção de neutrinos que está sendo instalada em Dakota do Sul”, diz Pacheco.

O aporte financeiro da FAPESP para a purificação, criogenia massiva e regeneração do argônio é de cerca de R$ 88,6 milhões, com um montante equivalente sendo provido pelo FNDCT – um fundo que tem como objetivo financiar a inovação e o desenvolvimento científico e tecnológico no país. Sua gestão financeira é exercida pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

“O apoio do FNDCT ao projeto, que será entregue em duas parcelas, uma em 2024 e a outra em 2025, faz parte do nosso programa ‘Mais Inovação’, voltado à inovação para a industrialização do Brasil em bases sustentáveis. Vale lembrar que todo o processo relacionado com o argônio utilizado na LBNF será realizado por empresas nacionais”, afirma Carlos Alberto Aragão de Carvalho Filho, diretor de Desenvolvimento Científico e Tecnológico da Finep.

A integração do processo é exercida pelo IFGW-Unicamp e pelas empresas Akaer e Equatorial Sistemas Ltda., que se uniram ao Fermilab em um acordo científico para realizar pesquisa, desenvolvimento, testes, modelagem e prototipagem de menor escala com o intuito de prover, refrigerar e regenerar o argônio líquido puríssimo que será utilizado nas instalações subterrâneas da LBNF.

Impurezas abaixo de 100 partes por trilhão

“É superimportante ressaltar esse aspecto da pureza, porque, para o experimento funcionar, é necessária não apenas uma quantidade enorme de argônio, uma vez que os neutrinos interagem muito pouco com tudo, como também que esse argônio seja extremamente puro. Isso significa uma quantidade de impurezas menor do que 100 partes por trilhão. Não existe argônio assim tão puro no mercado. Por isso, tivemos de desenvolver um método muito original de purificação”, informa Pagliuso.

O processo é feito parte no estado gasoso e parte no estado líquido. Para isso foram projetados vasos de pressão por onde o gás ou o líquido devem passar, atravessando uma série de filtros. Tais filtros são bandejas em cima das quais é distribuído um material adsorvente extremamente sofisticado, constituído por pequenas esferas de material cerâmico, com base de alumina e dopadas por outros elementos químicos, que possuem poros microscópicos. Quando o gás ou o líquido são forçados a passar por esses materiais, impurezas específicas são capturadas por adsorção.

O projeto que possibilitou o desenvolvimento desse sistema foi contemplado com o Prêmio Nacional de Inovação (PNI) de 2023, concedido pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Pagliuso recebeu o prêmio, como líder da equipe, na categoria de pesquisador inovador trabalhando com empresas de médio porte.

As impurezas são basicamente água, oxigênio e nitrogênio. A água é mais fácil de tirar; já as capturas do oxigênio e do nitrogênio são bem mais difíceis. Por isso, o sistema desenvolvido na Unicamp foi altamente apreciado pelo pessoal do Fermilab.

“Tanto conseguimos desenhar o projeto conceitual do sistema de purificação como inovamos ao utilizar materiais comerciais para capturar o nitrogênio, com uma metodologia que eles não conheciam. Também desenvolvemos, nós mesmos, materiais alternativos para purificar oxigênio. Tudo isso nos qualificou como responsáveis pela produção do sistema real. E possibilitou ao Brasil e à Unicamp dar a terceira contribuição mais importante para o projeto, atrás apenas do Departamento de Energia [DOE, na sigla em inglês] dos Estados Unidos [que gerencia o Fermilab] e do Cern”, conta Pagliuso.

Vale repetir que a colaboração Dune agrega mais de 200 instituições de todo o mundo. Ficar em terceiro lugar no rol das contribuições, apenas depois de gigantes como o DOE e o Cern, é algo muito relevante para a comunidade científica brasileira. “Outra coisa importante de mencionar é que, para mostrarmos que os nossos métodos eram eficientes, desenvolvemos um protótipo, um criostato de purificação de argônio. Chama-se PuLArC [Purification Liquid Argon Cryostat] e está instalado no Instituto de Física da Unicamp. Tem sido utilizado em testes feitos por nossa equipe ou a pedido do pessoal do Fermilab. Baseado nos métodos que desenvolvemos, um segundo protótipo, com capacidade de 3 mil litros, o Iceberg, foi utilizado no próprio Fermilab para reproduzir os resultados do PuLArC. O PuLArC e o Iceberg demonstraram a eficiência do nosso método na captura de nitrogênio em argônio líquido”, relata Pagliuso.

E continua: “Vamos iniciar em setembro, com o apoio conjunto da FAPESP e do FNDCT, a segunda fase do projeto, que é a da construção propriamente dita”.

Retorno tecnológico para a indústria brasileira

O projeto demanda uma tecnologia avançadíssima de alto vácuo e baixas temperaturas, que vai ficar para as empresas brasileiras. Elas também serão certificadas para produzir material baseado nesses parâmetros para o mercado norte-americano e o Cern. Duas patentes, relativas a métodos e meios filtrantes inovadores para adsorção de oxigênio e nitrogênio, já foram depositadas em 2023: BR102023024694-0 e BR102023026705-0. Estima-se que toda essa movimentação vai gerar de 100 a 150 empregos diretos e talvez mais de 500 empregos indiretos. Tanto no setor industrial quanto nas universidades.

Mobilizadas por um evento realizado pela FAPESP e o Fermilab, em 2019, a Unicamp e a Akaer estão desempenhando papel estratégico no processo. O engenheiro Fernando Ferraz, vice-presidente de operações da empresa, afirma que a participação no projeto constitui um desafio muito maior do que o de montar uma caravela no interior de uma garrafa.

“Depois de desenvolver as soluções do lado de fora, é preciso descer a planta inteira, pedacinho por pedacinho, a 1,6 mil metros abaixo do solo. Apesar de rápido, o elevador leva mais de meia hora para fazer o percurso. Além disso, o volume de argônio para encher os tanques é gigantesco, equivalente a três anos da produção global. Deve apresentar um nível de pureza mil vezes mais restritivo do que o melhor padrão comercial existente hoje. E precisa ser mantido refrigerado, de maneira estável, a -184°C. Se essa massa colossal começar a esquentar ou esfriar, será muito difícil responder. Por isso, é preciso manter controles muito estreitos, muito apertados”, diz.

O engenheiro informa que a planta subterrânea é subdividida em blocos. Tem um de purificação, outro de condensação e um terceiro bloco de regeneração. Seguindo os parâmetros definidos na Unicamp e em outras universidades, sua empresa projetou os vasos de pressão por onde o argônio gasoso ou líquido deve passar para ser filtrado. “Para se ter ideia, estamos falando de algo como cem vasos de pressão e 14 ou 15 quilômetros de tubos ligando isso tudo. Esses equipamentos vão ser fabricados no Brasil. Depois têm que ser embalados por partes, colocados em contêineres e despachados para os Estados Unidos. Chegando lá, precisam ser transportados por caminhões até a entrada das cavernas e levados por elevador ao subsolo, onde vão estar as pessoas encarregadas da montagem, na posição correta, peça por peça. Cada contêiner foi projetado de forma a funcionar também como ferramenta de içamento para a colocação no elevador e ferramenta de posicionamento para o encaixe final”, detalha.

Ferraz compara o Dune ao Grande Colisor de Hádrons (LHC) do Cern. São plantas muito diferentes, para obter resultados distintos, mas que apresentam um grau de sofisticação tecnológica semelhante: o LHC desempenhando papel de vanguarda na pesquisa de hádrons (partículas sujeitas à interação forte) e o Dune desempenhando papel de vanguarda na pesquisa de léptons (partículas sujeitas à interação fraca). “É importante ressaltar que a pesquisa realizada no Cern demandou um vasto conjunto de soluções tecnológicas que, depois, se incorporam ao nosso cotidiano. O mesmo deverá acontecer com a pesquisa que será realizada no Dune”, sublinha o engenheiro.

E apresenta como um dos desdobramentos tecnológicos possíveis a refrigeração do hidrogênio verde para uso como combustível veicular. “Todo mundo fala que o Brasil tem um grande potencial para a produção do hidrogênio verde, mas será preciso armazenar e transportar esse produto, que, na forma gasosa, é altamente inflamável. Há diferentes soluções para isso. A que parece mais interessante, do ponto de vista do balanço energético, é a criogenia: resfriar o gás e transformá-lo em um volume muito menor de líquido, para que possa ser armazenado e transportado de forma otimizada e segura. O problema é que isso envolve uma temperatura extremamente baixa, de -253°C. O que estamos fazendo no projeto da LBNF nos capacita e nos leva muito mais perto dessa solução. É um efeito colateral que poderá ampliar de forma muito expressiva o lastro tecnológico e o espectro de atuação da empresa”, afirma.

X-Arapuca: fotodetecção altamente eficiente

Outra contribuição fundamental da ciência realizada no Brasil ao megaprojeto Dune será o dispositivo X-Arapuca, componente principal do sistema de fotodetecção. O X-Arapuca é basicamente uma pequena caixa, com paredes internas espelhadas, dotada de uma janela. Como o próprio nome sugere, consiste em uma armadilha para capturar a luz. Os fótons conseguem entrar no dispositivo, mas não conseguem sair. Foi idealizada de modo a proporcionar uma fotodetecção altamente eficiente em sistemas de grande escala, como os tanques de argônio líquido.

O dispositivo foi concebido pelo casal Ettore Segreto e Ana Amélia Bergamini Machado, atualmente sediados na Unicamp. Por seu trabalho, os dois foram premiados, em 2019, com o DPF Instrumentation Early Career Award. Concedido anualmente pela American Physical Society, o prêmio contempla contribuições excepcionais à instrumentação no campo da física de partículas. “Os neutrinos quase não interagem com a matéria. E, quando interagem, não podem ser percebidos diretamente, pois não possuem carga elétrica. Porém, ao atravessarem o argônio líquido, os neutrinos geram outras partículas, com carga, que fazem o material cintilar. A função do X-Arapuca é detectar essa cintilação. A luz produzida pelos átomos de argônio líquido tem comprimento de onda de 127 nanômetros. Utilizamos, então, na entrada do X-Arapuca um filtro constituído por materiais orgânicos que modifica o comprimento de onda para 350 nanômetros. Como a janela do X-Arapuca é transparente para esse comprimento de onda, os fótons conseguem entrar. Mas, uma vez lá dentro, usamos um segundo filtro para fazer o comprimento de onda mudar para 430 nanômetros. E os fótons não conseguem sair”, explica Segreto.

Os dispositivos X-Arapucas já estão em funcionamento. “No Short-Baseline Neutrino Program, um programa de menor escala para detecção de neutrinos do Fermilab, 192 X-Arapucas, com duas janelas, foram instalados e já estão fazendo suas primeiras detecções. Outros 160 X-Arapucas, com seis janelas, foram entregues ao Proto-Dune, um grande protótipo do Dune montado no Cern, na Suíça. Todas as unidades foram produzidas por empresas brasileiras e montadas e testadas na Unicamp”, conta Machado.

O X-Arapuca foi escolhido como o dispositivo de detecção de fótons para os dois detectores gigantes que serão instalados nas cavernas da LBNF. Cerca de 300 cientistas estão envolvidos no processo de desenvolvimento e fabricação. A construção começará ainda este ano no Brasil e a instalação em Dakota do Sul está prevista para 2026.

Centro de processamento de dados em Campinas

Tais realizações alçam a ciência e a engenharia brasileiras, e especialmente a Unicamp, a uma posição muito destacada no cenário internacional. “As ideias criativas do Ettore e da Ana Amélia para o processo de fotodetecção e, posteriormente, as contribuições do grupo do Pagliuso para a purificação e a criogenia nos colocaram nesse lugar. Todas essas iniciativas contaram com apoio da FAPESP. E existe agora também a contrapartida do FNDCT. Porque, cumprida a investigação na que convencionamos chamar de ‘primeira fase’, vamos, na ‘segunda fase’, coordenar a construção desse conjunto de equipamentos em escala. O rigor necessário é muito alto, porque manter o argônio líquido livre de oxigênio e nitrogênio, com um nível de contaminação inferior a 100 partes por trilhão, quando se vive em uma atmosfera que é constituída basicamente por oxigênio e nitrogênio, é um enorme desafio. Além disso, considere-se a criogenia. E a necessidade de levar o equipamento todo desmontado e remontá-lo a 1.600 metros abaixo da superfície”, pondera o reitor da Unicamp.

Tom Zé informa que há também um incentivo do Fermilab e do Departamento de Energia dos Estados Unidos para que a Unicamp, em parceria com o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), constitua um centro de processamento dos dados levantados no Dune. “Então, teríamos aqui um centro brasileiro e latino-americano com acesso aos dados primários levantados pelo experimento e que poderia disponibilizá-los a cientistas do Brasil e da América Latina. Quer dizer, podemos nos tornar um hub regional desse experimento de longo prazo. Numa primeira etapa, é a construção da estrutura experimental, mas essa estrutura e o acesso que ela nos dá ao experimento conduzido pelo Fermilab abrem amplas perspectivas para o desenvolvimento da física teórica. Jovens pesquisadores, pós-doutores e doutores terão horizontes de pesquisas muito promissores. O que, aliás, já está acontecendo com o Ettore, a Ana Amélia e o pessoal deles”, fala.

Todo esse processo, como enfatiza Tom Zé, contou com mão firme da FAPESP, não apenas no provimento de recursos, mas também na mobilização dos potenciais participantes. Depois que o projeto do Arapuca, posteriormente aperfeiçoado como X-Arapuca, já estava avançado, a possibilidade de aprofundamento da cooperação com o Fermilab fez com que uma delegação da FAPESP, composta por Pacheco, Marcio de Castro Silva Filho (diretor científico) e Sylvio Canuto (assessor da Diretoria Científica) visitassem a instituição nos Estados Unidos.

“Percebemos que havia mais possibilidades importantes”, afirma Canuto, que é professor titular do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), foi pró-reitor de pesquisa da USP e participa de várias instituições científicas no país e no exterior.

Ele foi encarregado de apresentar um projeto especial para o Conselho Superior da FAPESP, solicitando o apoio da instituição à instrumentação avançada necessária aos processos de purificação do argônio líquido e de fotodetecção para a LBNF-Dune. “A apresentação contemplou a importância do estudo de neutrinos para a ciência; como detectar neutrinos; a contribuição que São Paulo poderia dar a esse empreendimento; e os benefícios e perspectivas que daí adviriam. Foi muito bem recebida pelo Conselho Superior. E isso possibilitou que os trabalhos deslanchassem”, relata.

Por que neutrinos

A existência do neutrino foi postulada, pela primeira vez, em 1930, pelo físico austríaco Wolfgang Pauli (1900-1958), um dos grandes construtores da teoria quântica. O objetivo era fechar o balanço energético do chamado decaimento beta do nêutron. Hoje admite-se que, fora do núcleo atômico, o nêutron decaia em pouco tempo, dando origem a um próton, um elétron e um antineutrino. Mas, na época, a ideia do neutrino parecia um mero artifício matemático, e foi encarada com ceticismo pela comunidade científica. Um dos poucos que aderiram a ela desde o primeiro momento foi o então jovem físico brasileiro Mário Schenberg (1914-1990), que trabalhou com Pauli na Suíça, tomou contato com o conceito de neutrino em uma palestra dada pelo italiano Enrico Fermi (1901-1954) em São Paulo e, mais tarde, nos Estados Unidos, incorporou essa partícula para corrigir o balanço energético proposto pelo ucraniano George Gamow (1904-1968) para a explosão das estrelas supernovas.

A existência da partícula foi confirmada em 1956, em um experimento conduzido pelos norte-americanos Clyde Cowan Jr (1919-1974), Frederick Reines (1918-1998) e colaboradores. Em 1995, estando Cowan morto, a descoberta finalmente foi contemplada com o Prêmio Nobel, que Reines recebeu em nome dos dois. Hoje, o neutrino constitui um dos principais objetos de estudo da física.

Ele é a partícula material mais abundante do Universo e, no rol dos objetos estudados pela ciência, ocupa o segundo lugar em abundância, depois do fóton (a partícula responsável pela interação eletromagnética, ou, simplificadamente, a partícula de luz). Pelo fato de não ser suscetível à interação eletromagnética nem à interação nuclear forte, é capaz de atravessar enormes extensões de matéria comum, mesmo os corpos mais compactos, sem que seu movimento seja barrado ou desviado.

No chamado modelo-padrão da física de partículas, o neutrino faz parte da família dos léptons. E, para cada lépton eletricamente carregado (o elétron, o múon e o tau), existe um tipo de neutrino correspondente. Assim, há três tipos ou “sabores” conhecidos de neutrinos: o neutrino do elétron, o neutrino do múon e o neutrino do tau. A transformação de um tipo ou “sabor” em outro, chamada de “oscilação dos neutrinos”, prevista pelo físico italiano Bruno Pontecorvo (1913-1993), foi confirmada pelos experimentos realizados nos observatórios SNO (Canadá) e Super-Kamiokande (Japão).

Essa “oscilação” ocorre espontaneamente durante a propagação da partícula pelo espaço e poderia fornecer a chave para a compreensão de um fenômeno denominado “violação da simetria de carga-paridade dos léptons” (charge-parity violation ou CPV). Segundo o modelo hegemônico sobre a formação do Universo, foi essa “violação de simetria” que produziu, logo depois do Big Bang, um pequeno excedente de matéria em relação à antimatéria. E é esse excedente que compõe, atualmente, o Universo conhecido.

Os experimentos SNO e Super-Kamiokande confirmaram também outra antecipação de Pontecorvo, demonstrando que o neutrino tem massa. Na verdade, a oscilação só é possível devido à existência da massa, pois apenas partículas massivas podem oscilar. Embora a massa de cada neutrino seja muito pequena, existem tantos neutrinos no Universo que a massa total se torna bastante relevante. Por isso, os neutrinos são considerados, atualmente, candidatos a compor, junto com outras partículas exóticas, a chamada “matéria escura”.

A compreensão da violação da simetria de carga-paridade dos léptons e a investigação da composição da matéria escura são dois dos principais objetivos do megaprojeto Dune. Adicionalmente, o experimento poderá responder a muitas outras perguntas – entre elas, as relativas à formação dos buracos negros.

Um dos principais alvos do Dune no estudo da violação da simetria será comparar o padrão de oscilação dos neutrinos com o padrão de oscilação dos antineutrinos – as antipartículas dos neutrinos que se distinguem destes por seu spin ter sentido horário em vez de anti-horário, quando observado no eixo do movimento. Se esses padrões não forem rigorosamente simétricos, o experimento fornecerá aos pesquisadores uma prova concreta da violação. Por outro lado, existe também a possibilidade de o neutrino ser sua própria antipartícula, caso em que constituiria um exemplo concreto de uma classe hipotética de partículas denominadas “férmions de Majorana” (previstos teoricamente pelo grande físico italiano Ettore Majorana em 1937).

Oito curiosidades sobre os neutrinos

1- Neutrinos têm carga elétrica nula e massa muito pequena (pelo menos seis ordens de grandeza menor do que a massa do elétron).

2- Como consequência da baixíssima massa, sua velocidade é muito próxima da velocidade da luz.

3- Os três tipos de neutrinos conhecidos experimentam apenas a ação das forças fraca e gravitacional.

4- São as mais numerosas partículas com massa da matéria comum.

5- São produzidos em função do chamado decaimento beta por diversas fontes: aceleradores, reatores nucleares, estrelas etc. O ser humano também emite neutrinos!

6- Devido à baixa probabilidade de interação, é estimado que apenas um neutrino proveniente do Sol deva interagir com uma pessoa em toda a sua vida, apesar do fluxo dessas partículas na Terra ser da ordem de 100 bilhões por centímetro quadrado por segundo.

7- Atualmente são conhecidos três tipos (ou sabores) de neutrinos. Ao se propagar ao longo do espaço, o neutrino pode oscilar entre esses tipos.

8- Há hipóteses de que possa haver mais sabores. Em particular, há predições teóricas que apontam para a existência do chamado neutrino estéril, que só interagiria por meio da força gravitacional.

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