Por erro de tradução, comer múmias foi “remédio” por 500 anos na Europa

Tradutores europeus confundiram substância natural usada pelos árabes para curar doenças com o ato de comer as múmias do Egito
Por erro de tradução, múmias foram usadas como remédio por 600 anos na Europa
Imagem: Harvard Art Museums/Deutsches Apothekenmuseum Heidelberg/Museum für Hamburgische Geschichte/Reprodução

O fato de não existirem muitas múmias hoje em dia tem motivo: além dos saques de ladrões em tumbas, a população da Europa passou pelo menos 500 anos com o costume de comer corpos embalsamados. 

A bizarrice tem explicação. A partir do século 11, múmias se transformaram em remédios para doenças cotidianas, como febre, dor de cabeça, de estômago e até câncer. Mas, segundo o historiador Karl Dannenfelt, tudo começou por causa de uma série de erros de tradução.  

Em artigo na National Geographic, Dannenfelt relata que tudo começou por causa de uma substância com qualidades curativas encontrada na encosta de uma montanha árabe chamada “mum”. Em persa, a palavra significa “cera”. 

A substância, que ficava no asfalto de uma rocha negra, serviu por séculos para curar doenças, o que lhe rendeu a reputação nas comunidades árabes de preciosa e eficaz. 

É aí que começa o problema: nos séculos 11 e 12, europeus que começaram a traduzir textos do mundo islâmico se depararam com “mum”. Eles, então, entenderam que o remédio vinha de uma substância liberada pelas múmias egípcias.  

Parte da confusão vem do fato de que algumas múmias antigas eram embalsamadas com asfalto. Por isso, a conclusão “lógica” foi que os árabes se curavam com corpos mumificados – e não com a substância extraída das rochas da montanha persa. 

Por erro de tradução, múmias foram usadas como remédio por 600 anos na Europa

Vendedor de múmias de rua egípcio, em 1875. Imagem: Félix Bonfils/ Wikimedia

Como era o tratamento

As múmias, então, começaram a ser usadas para curar todos os tipos de dores e até ataques cardíacos. Com a demanda, não demorou até que comerciantes começassem a recrutar saqueadores para invadir tumbas egípcias e roubar os corpos para vendê-los como medicamento.

Mas isso também fez com que começasse um comércio de múmias falsas. Ou seja, ladrões passaram a mumificavam cadáveres que tinham acabado de morrer em uma tentativa de lucrar ainda mais. 

Segundo Dannenfelt, criminosos roubavam corpos de pessoas enforcadas à noite e embalsamavam com sal e outras substâncias. Depois, “secavam” em um forno e moíam em pó para que, mais tarde, usá-los como remédios caseiros

Mesmo com múmias falsas, o pensamento da época era que o corpo humano continha propriedades que poderia curar outros seres humanos – uma crença falaciosa hoje conhecida como “canibalismo médico”. 

Por erro de tradução, múmias foram usadas como remédio por 600 anos na Europa

Pintura de Harriet Cheney, “Unwrapping the Mummy” (Desembrulhando a Múmia, na tradução literal), mostra grupo de pesquisadores explorando o corpo de uma múmia em um apartamento em Paris, entre 1815 e 1825. Imagem: The Art Institute of Chicago/Reprodução

Foi até o século 19 

É daí que vem a ideia de que “sangue de gladiadores cura a epilepsia” e do uso de gordura humana em remédios caseiros, uma prática bastante comum na Europa Ocidental medieval. Com as múmias, os médicos acreditavam que ali estava uma nova fonte de cura a partir do corpo humano. 

Com o passar do tempo, a exportação de antiguidades do Egito foi proibida e a ciência avançou. Mesmo assim, europeus continuavam a procurar múmias para satisfazer a curiosidade e usar componentes em remédios. 

Na Inglaterra da era vitoriana, por exemplo, um dos “passatempos” mais populares da aristocracia era “desembrulhar” múmias. Por isso, o costume de usar –  e comer – múmias como medicamentos só parou em definitivo no final do século 19, diz Dannenfelt. 

Julia Possa

Julia Possa

Jornalista e mestre em Linguística. Antes trabalhei no Poder360, A Referência e em jornais e emissoras de TV no interior do RS. Curiosa, gosto de falar sobre o lado político das coisas - em especial da tecnologia e cultura. Me acompanhe no Twitter: @juliamzps

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