Cientistas usam raio-X para ler carta escrita há mais de 300 anos sem abri-la

Carta é uma troca de informações sobre um parente falecido de dois primos, há cerca de 324 anos.
Uma representação gerada por computador do desdobramento virtual passo a passo da carta. Imagem: Cortesia do arquivo do Unlocking History Research Group.
Uma representação gerada por computador do desdobramento virtual da carta. Crédito: Cortesia do arquivo do Unlocking History Research Group

Em julho de 1697, um homem chamado Jacques Sennacques, que vivia na região de Lille, na França, escreveu uma carta a seu primo comerciante, Pierre le Pers, que estava em Haia, Holanda. O assunto da correspondência era uma certidão de óbito de um parente, um tópico que os primos haviam discutido anteriormente, mas le Pers acabou não dando continuidade. A carta era uma versão Renascentista do nosso famoso “conforme o e-mail anterior” e foi lida pela primeira vez recentemente, depois de 324 anos.

Mas, embora tenha sido lida, a carta permanece fechada. Ela é descrita como “letterlocked “(“carta bloqueada”, em tradução livre), um termo cunhado por Jana Dambrogio, especialista em conservação do MIT, para cartas que usam dobras e fendas específicas para se selar, sem a necessidade de um envelope. A técnica era a forma mais comum de lacrar mensagens antes de os envelopes começarem a ser produzidos em massa. A rainha Elizabeth I da Inglaterra, inclusive, tinha pelo menos cinco variações diferentes para proteger sua correspondência.

Em uma aplicação única da tecnologia, a equipe de Dambrogio “desdobrou” a carta de Sennacques virtualmente, usando o método de microtomografia de raios-X, o que permitiu aos pesquisadores contornar o processo prejudicial de uma abertura manual de carta. A pesquisa foi publicada nesta terça-feira (02), na revista Nature Communications.

X-Rays Help Scientists Read 'Letterlocked' Renaissance Mail

Um desdobramento virtual da carta centenária. Gif: Cortesia do arquivo do Unlocking History Research Group.

“Lembro-me de um sentimento de exaltação, do tipo ‘meu Deus, finalmente conseguimos’”, disse a coautora Rebekah Ahrendt, musicóloga da Universidade de Utrecht, por e-mail ao Gizmodo. “Tendo trabalhado com esta coleção por vários anos, o efeito de ‘provavelmente sou a primeira pessoa a ler isto desde que foi escrito’ se dissipou um pouco…Dito isto, esta carta é um exemplo maravilhoso das preocupações naturais das pessoas naquele momento.”

Não se sabe por que le Pers nunca recebeu a carta, mas dada sua profissão, ele pode ter se mudado. Contudo, a correspondência lacrada permaneceu sob os cuidados dos chefes dos correios de Haia, Simone de Brienne, e de sua esposa, Marie Germain. O casal não descartou o assunto familiar selado, porque naquela época as cartas eram compradas por destinatários, não pagas por seus remetentes. Alguns agentes dos correios guardavam cartas não reivindicadas para o caso de alguém eventualmente aparecer para comprá-las.

Assim, o casal encarregado do posto de Haia ou eram colecionadores ou resolutamente otimistas, porque guardaram todas as cartas até a morte. Inclusive, milhares delas foram preservadas em um velho baú e 600 deste total são mensagens “letterlocked”. É um montante incrível de conversas europeias perdidas no tempo, agora chamadas de Brienne Collection. Atualmente, elas estão no Museu do Som e Visão de Haia.

O disparo de raios-X através da carta escrita por Senaques revelou a difusão de tinta rica em ferro que ele usou em cada dobra do papel. A intensidade dos raios-X aplicados corresponde a um terço daquela usada pela mesma máquina para seu propósito original – imagens de dentes e ossos.

Os resultados legíveis com a marca d’água tênue da carta no centro. Imagem: Cortesia do arquivo do Unlocking History Research Group.

“Começamos com uma tomografia computadorizada de alta resolução da carta dobrada, basicamente uma imagem de raio-X 3D”, disse a coautora do estudo Amanda Ghassaei, engenheira de algoritmos e líder do projeto que já trabalhou na simulação de dobras em origamis. “A partir daí, nosso algoritmo detecta camadas individuais de papel na digitalização e reconstrói a geometria dobrada. Esta sequência computacional nos permite observar a escrita, marcas d’água, selagens, dobras internas e qualquer outra informação escondida dentro da carta sem causar nenhum dano ao artefato original.”

Mas isso não foi suficiente. A equipe também teve que descriptografar a carta dobrada, para descobrir onde cada caractere estaria na versão desdobrada. Para isso, eles empregaram um script de nivelamento computacional para desconstruir a carta sem tocá-la. Embora parecesse uma mistura imperceptível de caracteres, embutidos no papel cáqui, quando vista de fora, a equipe de pesquisa foi capaz de extrair a mensagem sem problemas.

Os pesquisadores também não precisaram descrever nenhum dos layouts dobrados da carta de Sennacques em código, já que o algoritmo fez o levantamento geométrico.

O baú da Renascença contém cartas de todo o mundo enviadas para Haia. Foto: Cortesia do arquivo do Unlocking History Research Group.

“A mensagem e a complexa mecânica interna dessas cartas só são conhecidas por nós porque foram virtualmente reconstruídas”, disse a coautora Holly Jackson, uma graduanda do MIT e engenheira de algoritmos do projeto. “Nossos métodos são totalmente automáticos, imparciais para ler a orientação e não requerem nenhum conhecimento prévio sobre a geometria dobrada de uma carta.”

Assim, para escrever o artigo, a equipe usou raios-X para detectar o layout de tinta em um pedaço de papel centenário. Eles construíram e implantaram um algoritmo capaz de desdobrar esse papel virtualmente, além de descrever o conteúdo dessa carta junto com um dicionário complexo das diversas técnicas de letterlocking que eram amplamente utilizadas antes dos envelopes.

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O resultado desses esforços é claramente uma estratégia que será utilizadas com os outros 600 itens que restam no baú. Talvez, iremos encontrar mais intrigas entre primos, brigas conjugais ou até mesmo segredos de estado, vai saber.

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