Decisão do Sri Lanka de bloquear redes sociais após ataque não é tão simples quanto parece
Poucos países na Terra têm uma relação com o Facebook tão complicada quanto a do Sri Lanka.
No espaço de um único ano, a maior rede social do mundo esteve ligada a conflitos religiosos, bem como a uma resistência democrática bem sucedida, que ajudou a derrotar um golpe inconstitucional.
Agora, após os ataques terroristas na manhã de Páscoa, que mataram mais de 300 pessoas, o governo está bloqueando o acesso a redes sociais para se antecipar ao tipo de discurso de ódio que alimentou a violência nos eventos ocorridos ano passado. Em breve, o país do sul da Ásia se preparará para uma eleição presidencial, de olho no que a mídia social significará no próximo Sri Lanka.
Esses acontecimentos destacam a complexidade de maneiras pelas quais as redes sociais desafiam e mudam a história de países inteiros.
Em 26 de outubro de 2018, um golpe de estado teve início. No Sri Lanka, uma nação de 21 milhões que raramente atrai a atenção de olhos ocidentais, a informação era a arma. O presidente Maithripala Sirisena demitiu inconstitucionalmente o primeiro-ministro do país e substituiu-o por Mahinda Rajapaksa, antigo governante autoritário do país.
Os defensores do golpe assumiram fisicamente as principais emissoras de televisão do país. Eles forçaram os jornais a abandonar o controle. Um dos maiores opositores da liberdade de imprensa no mundo, Rajapaksa estava de volta ao poder e também ao controle de informações dentro do país. Quer dizer, da maior parte das informações.
Rajapaksa, que já governou o país por uma década, assumiu com sucesso o controle de todas as alavancas de poder que importavam quando se tornou presidente do Sri Lanka em 2005. Mas, em 2018, ele não conseguiu tomar o controle do espaço mais importante: as redes sociais.
Jornalistas sofreram intimidações físicas, ameaçando o livre exercício da profissão. O Facebook e o Twitter, então, se tornaram o lugar onde críticos, comunicadores e ativistas podiam falar livremente e organizar uma resistência que se manifestava em protestos e, mais tarde, seria responsável pela publicação de fitas vazadas que provavam a corrupção dos partidários do golpe.
“O único espaço que havia era o ativismo e a defesa de direitos no Facebook e no Twitter”, disse Sanjana Hattotuwa, pesquisador sênior do Center for Policy Alternatives (CPA), um think tank local. “Ele abrangeu desde a produção de críticas materiais do presidente até a organização de manifestações físicas e manifestações às denúncias de corrupção. Foi um meio que o governo não conseguiu controlar. ”
Quando a mídia tradicional foi dominada pelo golpe, a mídia social foi o meio por onde provas de um esquema multimilionário de corrupção — esquema este que levou ao golpe — foram publicadas e espalhadas pelo país. Notícias e organização de protestos percorreram o Facebook e o WhatsApp.
O golpe nunca foi normalizado com sucesso graças às contínuas críticas online em um espaço que o governo não tinha controle. O Twitter e, acima de tudo, o Facebook são o coração da história de como a população do Sri Lanka derrotou com sucesso um golpe inconstitucional no final de 2018.
A história lembra como, no início da década, a mídia social e o Twitter, em particular, desempenharam um papel importante nos protestos e contra os governantes autoritários do Irã. Apesar de os protestos do país persa não terem sido bem sucedidos, eles chamaram a atenção e permanecem no imaginário ocidental, sendo discutidos até hoje.
O Sri Lanka raramente é manchete no Ocidente, e nem o golpe nem seu desmantelamento receberam atenção significativa do público, mesmo que o impacto das mídias sociais esteja sendo debatido em todo o mundo.
Embora a tentativa de golpe do ano passado tenha sido frustrada em parte devido às mídias sociais, as plataformas também serviram para alimentar o ódio, como acontece nos EUA e em outras partes do mundo. No início de 2018, no Sri Lanka, o Facebook era o local de falsos rumores e discursos de ódio que provocaram violência e tumultos fatais, em que turbas queimaram mesquitas, lojas e casas de muçulmanos locais.
As principais redes de mídia social foram bloqueadas no Sri Lanka logo após os ataques terroristas de Páscoa matarem mais de 300 pessoas. Para combater a desinformação e o potencial de mais violência, o governo do Sri Lanka bloqueou as redes sociais, incluindo Facebook, WhatsApp, YouTube, Instagram, Snapchat e Viber, segundo o grupo de monitoramento NetBlocks.
“Esta foi uma decisão unilateral”, afirmou Harindra Dassanayake, conselheiro presidencial no Sri Lanka. O objetivo declarado é evitar que o discurso de ódio e a desinformação causem mais violência, semelhante aos incidentes de um ano atrás.
No Ocidente, é praticamente consenso que as redes sociais estão falhando em todo o mundo para enfrentar terríveis desafios globais. Excluir sua conta do Facebook é um tema constante de conversas entre amigos. Mas os sentimentos globais, incluindo os do Sri Lanka, são mais complexos.
“O movimento Delete Facebook, que começou como uma consequência do Cambridge Analytica, simplesmente nunca conseguiu se destacar no Sul e no Sudeste Asiático por uma simples razão: o Facebook está entrelaçado ao DNA da economia, sociedade, política”, disse Hattotuwa. “Não houve nada parecido em nossos países e não acho que será substituído em breve, independentemente das notícias sobre consequências negativas. Bilhões de pessoas usam isso. A economia depende disso, os políticos usam, as mulheres usam para negócios domésticos. ”
Como aconteceu em muitos países asiáticos, o Facebook ganhou terreno no Sri Lanka com programas como o Free Basics, um aplicativo crucial para os planos de expansão global da empresa na última década. Ele traz recursos do Facebook normalmente reservados para smartphones a aparelhos mais simples, os feature phones, mais comuns em nações menos desenvolvidas. O país avançou tecnologicamente desde o lançamento do Free Basics, e os smartphones com acesso total à internet são hoje muito mais comuns.
O Free Basics tem sido criticado como uma forma de “colonialismo digital” que viola os princípios da neutralidade da rede. Nos países da Ásia, ele ajudou a rede social a entrar em novos mercados — estivesse ou não a empresa realmente preparada para estar lá.
No ano passado, depois de motins fatais alimentados por desinformação e discurso de ódio online, o governo do Sri Lanka bloqueou as redes de mídia social por uma semana inteira. Os tumultos eram literalmente organizados nas mídias sociais. Desta vez, não temos indicações sobre o papel que as redes podem ter desempenhado na mais recente tragédia. Em vez disso, o governo parece estar bloqueando a mídia social preventivamente para evitar uma repetição da violência do ano passado.
Embora às vezes pareça que essa questão pode ser simples — e, cada vez mais, de fato é –, a realidade é mais complexa, a ponto de não permitir dizer que a mídia social é, no fim das contas, positiva ou negativa. Os fatos mudam todos os dias, de país para país. E, mesmo dentro de um único país em um ano, a mesma plataforma pode ser responsável por ampliar tanto o discurso de ódio mortal quanto a elevação dos valores democráticos.
“O Facebook e o Twitter foram parte integrante da pressão democrática contra a tentativa frustrada de golpe contra o presidente”, disse Hattotuwa. “Enquanto a grande mídia e todos os meios de comunicação estatais foram rapidamente dominados, o único espaço para qualquer tipo de dissidência, ativismo da sociedade civil, democracia, planejamento de manifestações físicas e produção de conteúdo contra o movimento do presidente foi a mesma plataforma que, alguns meses antes, havia contribuído para a violência. A situação é complexa. Você não pode simplificar isso.”