Rita Lee com Os Mutantes: um top 10 para a vida
Momentos de descoberta arrebatadora de um som marcam sua formação musical pelo resto dos dias, especialmente quando ocorrem com pouca idade. Essa abertura de cabeça te leva a conhecer mais coisas parecidas. E mais sons nada parecidos nos anos seguintes. Para este que lhes escreve, uma dessas descobertas se deu através de Rita Lee (1947-2023) e Os Mutantes.
Em fins de 1978, o jornaleiro de confiança deixou separado o fascículo nº 59 da coleção “Nova História da Música Popular Brasileira”, publicada pela Abril Cultural (selo de enciclopédias da Editora Abril). Essa série tinha biografias sobre um ou mais artistas da MPB e incluía um mini-LP de 10 polegadas com oito faixas.
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Minha mãe comprou os primeiros fascículos em 1976. E persistiu até completar a série, com a ajuda do jornaleiro camarada. E assim chegou em casa a tal edição nº 59, dedicada a Rita Lee, Os Mutantes e Secos & Molhados, nomes de sucesso do rock brasileiro. Eu tinha 11 anos e já devorava música cada vez mais.
Rita Lee me era bem conhecida. “Ovelha Negra” e “Jardins da Babilônia” tocaram bastante em rádio, e “Arrombou a Festa” foi o grande sucesso no Brasil em 1977. Além disso, seus LPs eram promovidos em comerciais na Rede Globo, já que sua gravadora era a Som Livre, do mesmo grupo.
Sobre os Mutantes, até então eram para mim um grupo de quatro homens cabeludos que tocavam um rock progressivo com algum peso. E isso só porque também eram da Som Livre e tinham comerciais na TV Globo.
Nem fazia ideia de que os Mutantes tinham uma encarnação anterior e que Rita Lee fez parte dela. Parte, não. Foi co-fundadora e co-criadora com os irmãos Arnaldo e Sérgio Dias Baptista.
O texto do fascículo me informou sobre isso. E fui ouvir o disco. A terceira faixa era “2001”, parceria de Rita Lee com o tropicalista experimental Tom Zé, que fez a letra. Foi lançada pelos Mutantes em seu álbum de 1969.
Se eu esperava o rockinho progressivo dos Mutantes de 1978, me veio outra coisa. Transformadora para mim. Começa com uma viola caipira e uma autêntica dupla sertaneja paulista de raiz (chamada para a gravação) canta o refrão. Na parte do meio, entra um rock tocado pelos Mutantes.
O revezamento entre caipiras e Mutantes dura até o solo, um buraco negro cheio de efeitos eletrônicos sugerindo o que se chamava na época de “rock espacial”. No retorno para o encerramento, as posições se invertem: os caipiras cantam a parte do meio, os Mutantes ficam com o refrão com embalo de rock pauleira.
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Travei. Era tudo imprevisível, criativo, diferente, engraçado, sério, bem cantado, bem tocado. Havia ideias bem executadas ali. Havia a originalidade de fazer o que outros nem sonham. Certamente, ouvir “2001” aos 11 anos teve muito a ver com outros sons que caíram no meu gosto nos 45 anos seguintes.
Meses depois, Rita deixaria de ser a principal roqueira brasileira para se transformar numa mega-estrela pop que vendia mais de um milhão de cópias de álbuns que tinham hits como “Mania de Você”, “Banho de Espuma” ou “Baila Comigo”. Admirável.
Mas, para prestar tributo após sua morte na noite de 8 de maio (anunciada publicamente apenas no dia 9), fico com momentos que Rita Lee criou com os Mutantes. Deu para montar esta listinha:
1- O’Seis (pré-Mutantes) – “Apocalipse” (compacto, 1966)
Lado B do compacto que os três membros dos Mutantes lançaram em 1966 como integrantes do grupo O’Seis (pronuncie como “Ocêis”, com sotaque paulistano). O lado A tinha a surf music/iê-iê-iê “Suicida”, meio tosca. Mas “Apocalipse” é interessante.
O ritmo é de bossa nova à moda americana, o clima é romântico, mas a letra parece uma HQ maluca de ficção científica criada por Stan Lee para a editora Marvel nos anos 1960. Rita Lee lamenta num verso: “Só eu sei que o mundo vai sumir”.
2- “Panis et Circenses” (álbuns “Tropicália” e “Os Mutantes”, 1968)
Introdução com as trombetas imponentes do programa “Repórter Esso” (1952-1970), da TV Tupi, principal jornal televisivo no Brasil até surgir o “Jornal Nacional” da Globo em 1969. Harmonias vocais angelicais. Canto individual firme. Andamentos e ritmos diferentes.
Um trompete tresloucado que parece fugir de uma briga em “Penny Lane”, dos Beatles. O som de um disco de vinil parece parar de rodar na vitrola. O encerramento épico é cortado abruptamente por sons de uma família comendo na sala de jantar…
Esta obra-prima dos Mutantes com arranjo do maestro Rogério Duprat tem de tudo para quem não quer mais do mesmo.
3- “Adeus, Maria Fulô” (álbum”Os Mutantes”, 1968)
O baião tristonho do sanfoneiro Sivuca (com letra de Humberto Teixeira, parceiro de Luiz Gonzaga em “Asa Branca”) torna-se uma batucada de morro com destaque para a cuíca. E os vocais dos Mutantes dão colorido ao sertão em seca que os versos retratam. Baião, samba… e ainda assim é rock.
4- Le Premier Bonheur Du Jour (“Os Mutantes”, 1968)
Cover de uma canção de 1963 da francesa Françoise Hardy, musa pop discreta daqueles tempos. Os Mutantes bancam meninos de coral na abertura e atrás dos vocais principais de Rita (em francês). A ideia espetacular é a percussão. O que parece pratos de bateria abafados é na verdade o som do borrifo de uma bomba de Flit, um inseticida fedorento muito popular na época.
5- Baby (álbum “Os Mutantes”, 1968)
A composição de Caetano Veloso é mais célebre nas versões dele mesmo e, principalmente, de Gal Costa. Mas a versão satírica e mais rock dos Mutantes, com Rita Lee cantando em “paulistanês” é muito boa. Afinal, as outras não tem um som de “slurp!” após o verso “você precisa tomar um sorvete”.
6- “Não Vá Se Perder por Aí” (álbum “Mutantes”, 1969)
Country-rock debochado levado por um pesado (no som) violão com cordas de aço, bateria a la Ringo Starr e um solo de rabeca. Antes de tudo isso, a abertura com o relincho “e aí?…”, feito por um cavalinho que, curiosamente, tem voz igual à de Rita Lee.
7- “2001” (álbum “Mutantes”, 1969)
A música citada na primeira parte deste post. Mas não na versão de estúdio. Neste vídeo, os Mutantes cantam “2001” no FIC (Festival Internacional da Canção, da Rede Globo) de 1968.
8- “Fuga Nº II (álbum “Mutantes”, 1969)
Uma canção tão misteriosa e delicada sobre uma moça que foge de casa e conta com violões e violinos para acompanhar a voz de Rita Lee não pode ficar de fora.
9- “Hey Boy” (“A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado”, 1970)
Aquele talento para criar crônicas e zoar personagens cotidianos que Rita Lee demonstraria anos depois em “Orra Meu” e “Papai Me Empresta o Carro” já estava presente nesta faixa de 1970. “Hey Boy” é uma sátira com ritmo de rock-doo-wop dos anos 1950 que tira sarro de um boy cheio de pose.
10- “Vida de Cachorro” (“Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets”, 1972)
Uma música belíssima de amor a um cachorro conduzida por um violão que é primo em algum grau do de Paul McCartney em “Blackbird”, dos Beatles. Uma joia de Rita, que adorava animais, em seu último álbum com os Mutantes.
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Bônus – “Rita Lee” (álbum “Mutantes”, 1969)
Rita foi protagonista de uma música de sua própria banda, creditada aos três Mutantes. Arnaldo Baptista canta no começo que “Rita Lee” é triste porque não tem ninguém que a ame e termina celebrando que ela está feliz porque “encontrou seu par”. No caso, ele mesmo.
Rita e Arnaldo foram namorados e depois se casaram oficialmente. Começou em 1968 e terminou em 1972, coincidindo com a expulsão de Rita dos Mutantes porque os rapazes queriam tocar rock progressivo “sério”. Não precisamos falar dessa fase pós-Rita aqui.