Texto: Marcos Pivetta/Revista Pesquisa Fapesp
Por sua proximidade e importância para a manutenção da vida na Terra, o Sol é a estrela mais pesquisada pelos astrofísicos. Esse status de objeto de estudo preferencial não significa que há pouco a se descobrir sobre o astro. Ao contrário. Alguns tipos de pesquisa, como as de longo prazo, só podem ser realizados porque nosso planeta está, sempre, nas vizinhanças do Sol. Assim, é possível observá-lo de forma contínua e perceber detalhes que não podem ser conferidos em estrelas mais distantes.
Foi justamente essa particularidade que permitiu um achado recente. Artigo publicado pelo brasileiro Bruno Arsioli e a italiana Elena Orlando em fevereiro deste ano no Astrophysical Journal relata que o Sol emitiu um excesso inesperado de raios gama de alta energia em seus polos. A maior concentração de radiação ocorreu durante seu último período mais ativo, o chamado máximo solar, em junho de 2014. Como a Terra, o Sol gira em torno de um eixo, cujas extremidades definem os polos. A rotação gera o campo magnético, de forma que os polos magnéticos coincidem com as pontas do eixo de rotação.
Segundo os autores do trabalho, o esperado era que, quando houvesse variações no nível das emissões de raios gama, tais flutuações se manifestassem com a mesma intensidade em todas as áreas do Sol, de forma mais ou menos homogênea – em vez de se concentrarem exageradamente nas zonas de alta latitude.
“Essa maior concentração de emissões de raios gama foi observada no momento em que ocorreu a inversão dos polos magnéticos do Sol”, explica Arsioli, autor principal do estudo. “Por isso, suspeitamos que a reconfiguração magnética esteja relacionada com a produção excessiva de radiação gama nos polos.” A troca faz com que o polo magnético do sul migre para o norte do disco solar e vice-versa. Tal inversão ocorre em média a cada onze anos, durante o máximo solar. Atualmente, Arsioli é pesquisador no Instituto de Astrofísica e Ciências Espaciais da Universidade de Lisboa, em Portugal, com financiamento do programa europeu Marie Curie.
Segundo Elena Orlando, da Universidade de Trieste, não há, por ora, uma explicação detalhada sobre como a inversão do polo magnético levaria ao excesso de emissão de raios gama nos extremos do disco solar. “Achamos que o campo magnético da estrela está de alguma forma envolvido nessa anomalia, mas não temos ainda uma explicação física para isso”, comenta Orlando, em entrevista a Pesquisa FAPESP. Arsioli iniciou o estudo com dados do Fermi em 2021, quando passou um ano associado ao grupo da italiana na Universidade de Trieste.
Inédito, o resultado foi obtido a partir da análise de dados referentes a 13 anos e meio de observação do Sol, entre agosto de 2008 e janeiro de 2022, pelo telescópio espacial Fermi. Operado pela Nasa (a agência espacial norte-americana), em colaboração com o Departamento de Energia dos Estados Unidos e parceiros europeus, o Fermi é dedicado a registrar emissões em frequências da radiação gama, a porção mais energética do espectro eletromagnético. Recentemente foi usado também para estudar uma misteriosa explosão de raios gama, a segunda mais intensa que se observou no espaço, ocasionada provavelmente pela rara fusão de duas estrelas de nêutrons.
O trabalho de análise das emissões do Sol foi feito em etapas. Primeiramente, Arsioli e Orlando dividiram os dados de quase 14 anos de observação, que abrangeram um ciclo solar inteiro, em intervalos menores, de 400 a 700 dias. Em seguida, com o emprego de ferramentas de análise de dados por eles desenvolvidas, compararam as emissões de raios gama com energia acima de 5 gigaelétron-volt (GeV) de cada subperíodo em todas as regiões do disco solar. Dessa forma, notaram a concentração de produção de emissões de altas energias nas zonas polares durante o máximo solar. A constatação é amparada por testes estatísticos, descritos no trabalho, que indicam a relevância dos sinais observados.
Considerado um astro comum entre as mais de 100 bilhões de estrelas da Via Láctea, o Sol se formou há cerca de 4,5 bilhões de anos. Diferente da Terra e da Lua, ele não é um corpo sólido. É uma bola de plasma quente (matéria ionizada, com partículas carregadas eletricamente), constituída pelos gases hidrogênio e hélio. O nível de atividade solar (produção de energia) varia ao longo do tempo de forma mais ou menos regular, em ciclos. Ora a estrela está menos ativa, ora mais. A duração média de um ciclo solar é de 11 anos, mas pode variar entre 9 e 14 anos.
A formação de manchas solares, pontos pretos associadas a áreas mais frias na superfície, é um termômetro da atividade solar. Ocasionalmente, as maiores manchas são visíveis da Terra sem a necessidade de recorrer a telescópios. Mais manchas sinalizam que o astro está funcionando em ritmo acelerado. A dinâmica energética do Sol também está associada a outros fenômenos, como a ocorrência de flares (erupções) e ejeções de massa.
Entre o momento de maior e o de menor atividade, a diferença de brilho – ou seja, de produção de energia – do Sol é muito pequena, de no máximo 0,1%. Por isso, os climatologistas descartam que variações na atividade solar possam influir de forma significativa no aumento do aquecimento global.
Segundo cálculos da Nasa, ao longo dos dois últimos séculos, o peso acumulado das emissões de gases de efeito estufa provenientes de atividades humanas sobre a temperatura média da Terra é pelo menos 270 vezes maior do que a possível influência de qualquer alteração de luminosidade do Sol. Ainda assim, as alterações em seu regime de funcionamento produzem impactos evidentes na aparência e no comportamento da estrela.
Distúrbios em GPS
Além de gerar conhecimento básico sobre a física estelar, os estudos sobre a atividade solar são úteis para entender os impactos reais que o astro pode ter sobre diferentes aspectos da vida cotidiana na Terra. Ao emitir mais radiação e matéria na direção do Sistema Solar, a estrela pode afetar os sistemas de navegação terrestre, como o GPS, e as telecomunicações no planeta.
Para o astrofísico Rodrigo Nemmen, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), que não participou do artigo, os dados do artigo de Arsioli e Orlando são importantes para melhorar o entendimento sobre o funcionamento da superfície do Sol. “A principal fonte de raios gama que o Fermi observa é o Sol”, diz Nemmen, que usa dados do satélite da Nasa para estudar emissões desse tipo de radiação nos jatos de matéria produzidos pelos buracos negros. “Alguns grupos de pesquisa já tentaram usar o Fermi para estudar de forma sistemática emissões de outras estrelas, mas não tiveram sucesso.”
Um dos desafios de Arsioli e Orlando é tentar observar novamente o pico de emissão de raios gama nas regiões polares do Sol durante o próximo máximo solar, que deve ocorrer em 2025. Se a estrela se comportar novamente como em junho de 2014, a ideia de que a produção excessiva de raios gama decorre da inversão periódica dos polos magnéticos se torna mais robusta. “Não há outra estrela similar e tão próxima quanto o Sol em que possamos testar nossa hipótese”, diz Arsioli. “Temos de repetir as observações nele mesmo.”
Artigo científico
ARSIOLI, B. e ORLANDO, E. Yet another sunshine mystery: Unexpected asymmetry in GeV emission from the solar disk. The Astrophysical Journal. 7 fev. 2024.