Temperatura das erupções do Sol ajuda a entender a natureza do plasma solar
Texto: José Tadeu Arantes | Agência FAPESP
O movimento de rotação do Sol produz mudanças em seu campo magnético. E isso faz com que, a cada 11 anos aproximadamente, nossa estrela entre em uma fase de intensa atividade. Erupções na superfície do Sol (solar flares, em inglês) lançam para longe grande quantidade de partículas e liberam altos níveis de radiação.
Durante as erupções, a liberação de energia aquece a cromosfera, causando a ionização quase completa do hidrogênio atômico presente nessa região. Mas, como o plasma é muito denso, a taxa de recombinação do hidrogênio também é alta. Em consequência, estabelece-se um processo recorrente de ionização e recombinação de hidrogênio, produzindo um tipo característico de emissão de radiação, na faixa do ultravioleta, chamado de “Contínuo de Lyman” (LyC). A denominação é uma homenagem ao físico norte-americano Theodore Lyman IV (1874-1954).
Descrições teóricas sugerem que a chamada “temperatura de cor” do Contínuo de Lyman estaria associada à temperatura do plasma que originou a erupção. Dessa forma, a temperatura de cor poderia ser utilizada como um recurso para determinar a temperatura do plasma durante as tempestades solares.
Um novo estudo simulou as emissões de dezenas de erupções diferentes. E confirmou a associação entre a temperatura de cor do Espectro de Lyman (LyC) e a temperatura do plasma da região onde a emissão é originada. Também confirmou que a região atinge um equilíbrio termodinâmico local entre o plasma e os fótons que compõem o LyC. Artigo a respeito foi publicado em The Astrophysical Journal: “Formation of the Lyman Continuum during Solar Flares.
O estudo teve apoio da FAPESP e a participação do brasileiro Paulo José de Aguiar Simões, professor da Escola de Engenharia da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisador do Centro de Radioastronomia e Astrofísica Mackenzie. “Mostramos que o Contínuo de Lyman é bastante intensificado durante as erupções solares. E que a análise do espectro do LyC realmente pode ser utilizada para o diagnóstico do plasma”, diz Simões.
As simulações corroboraram um importante resultado observacional obtido no Solar Dynamics Observatory pelo astrônomo argentino Marcos Machado. Este mostrou que a temperatura de cor, que nos períodos calmos se situa no patamar de 9 mil kelvins, sobe, nos flares, para a faixa dos 12 mil a 16 mil kelvins. O artigo em que comunicou esse resultado, e que também teve a colaboração de Simões, foi o último publicado por Machado. Referência internacional em estudos do Sol, o astrônomo argentino morreu em 2018, durante a fase de revisão do texto.
Dinâmica solar
Cabe recordar aqui um pouco do que se sabe sobre a estrutura e a dinâmica solares. A enorme quantidade de energia que provê a Terra com luz e calor é gerada principalmente pela conversão de hidrogênio em hélio. Tal processo de fusão nuclear ocorre no interior da estrela, mas essa vasta região é inacessível à observação direta, porque a luz não atravessa a “superfície” do Sol. “O que conseguimos observar diretamente situa-se da superfície para fora. E a primeira camada, que se estende até uns 500 quilômetros de altitude, é chamada de fotosfera. Sua temperatura é da ordem de 5.800 kelvins. É nessa região que aparecem as manchas solares, nos lugares onde os campos magnéticos emergentes do interior inibem a convecção, mantendo o plasma mais frio – o que produz a aparência escura das manchas”, informa Simões.
Acima da fotosfera, a cromosfera estende-se por mais 2 mil quilômetros, aproximadamente. “Nessa camada, a temperatura aumenta, podendo chegar a mais de uma dezena de milhares de kelvins, e a densidade do plasma diminui. Devido a essas características, o hidrogênio atômico encontra-se parcialmente ionizado, com prótons e elétrons separados”, ensina o pesquisador.
No topo da cromosfera, em uma fina camada de transição, a temperatura sobe abruptamente, passando de 1 milhão de kelvins, e a densidade do plasma cai muitas ordens de grandeza. Esse súbito aquecimento na passagem da cromosfera para a coroa é um fenômeno contraintuitivo, pois seria de esperar uma diminuição da temperatura com o aumento da distância em relação à fonte. “Ainda não temos uma explicação para isso. Diversas propostas foram apresentadas pelos físicos solares, mas nenhuma foi aceita sem reservas pela comunidade”, pontua Simões.
A coroa estende-se rumo ao meio interplanetário, sem uma nova região de transição definida. Nela, a influência dos campos magnéticos é marcante, estruturando o plasma, especialmente nas chamadas regiões ativas, facilmente identificadas em imagens no ultravioleta, como a reproduzida na abertura desta reportagem. É nessas regiões ativas que as erupções solares ocorrem.
“Nessas tempestades solares, a energia acumulada nos campos magnéticos coronais é liberada de forma repentina, aquecendo o plasma e acelerando as partículas. Os elétrons, por terem massa menor, podem ser acelerados a até 30% da velocidade da luz. Uma parte dessas partículas, que viajam ao longo das linhas de força do campo magnético, é lançada no meio interplanetário. Outra parte segue o caminho oposto, da coroa para a cromosfera – onde sofre colisões no plasma de alta densidade e transfere sua energia para o meio. Esse excesso de energia aquece o plasma local, causando ionização dos átomos. A dinâmica de ionização e recombinação origina o Contínuo de Lyman”, detalha o pesquisador.
Os picos de atividade solar ocorrem em intervalos de aproximadamente 11 anos. Durante os períodos de alta atividade, os efeitos sobre a Terra são bastante nítidos: maior ocorrência de auroras boreais; blecautes nas comunicações por rádio; incremento do efeito de cintilação nos sinais de GPS; aumento da força de arraste em satélites, reduzindo suas velocidades e, consequentemente, a altitude de suas órbitas. O conjunto desses fenômenos, juntamente com as propriedades físicas do meio interplanetário próximo à Terra, é chamado de “clima espacial”.
“Além do conhecimento fundamental que proporcionam, os estudos da física das tempestades solares contribuem também para melhorar nossa capacidade de previsão do clima espacial. Esses estudos caminham sobre duas pernas: as observações diretas e as simulações baseadas em modelos computacionais. Dados observacionais nas diversas faixas do espectro eletromagnético nos permitem entender melhor a evolução das tempestades solares e as propriedades físicas do plasma envolvido no evento. Modelos computacionais, como os que empregamos no estudo em pauta, são usados para testar hipóteses e verificar interpretações das observações, uma vez que nos dão acesso a quantidades que não podem ser diretamente obtidas da análise dos dados observacionais”, resume Simões.
O artigo Formation of the Lyman Continuum during Solar Flares pode ser acessado livremente em: https://iopscience.iop.org/article/10.3847/1538-4357/acaf66.