Um crime contra a natureza: as implicações ambientais da compra de animais silvestres pelo comércio ilegal
Reportagem: Camila Neumam/Instituto Butantan
Os bichos chegam apertados dentro de embalagens, em condições terríveis. Os que dependem muito de umidade ficam tão desidratados, por terem ficado dias trancados, que acabam morrendo ou adquirindo sequelas para vida toda. As serpentes, por exemplo, são geralmente encontradas dentro de recipientes apertados, como tubos, amarradas dentro de malas ou em caixotes apertados.
É após serem resgatados nessas condições que muitos animais vítimas de tráfico chegam ao Butantan. O diretor do Centro de Desenvolvimento Cultural do Instituto, Giuseppe Puorto, relembra de uma grande apreensão de serpentes, lagartos, anfíbios e artrópodes ocorrida no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, em 2021.
Os animais, que sairiam ilegalmente do país, foram apreendidos e enviados ao Butantan pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que solicita ajuda colaborativa nestes casos. “As aranhas estavam pressionadas em uma tampa e não se mexiam; os mais de 20 lagartos estavam amarrados em um pano. Quando abrimos, tinha bicho torto, agonizando e morto. Aquele dia eu chorei de dó dos animais, da condição deles”, relembra.
Em uma outra apreensão, em 1999, sete periquitamboias (Corallus batesii), também conhecidas como cobra-papagaio, foram apreendidas em São Paulo e enviadas ao Instituto. Nesta apreensão, todas estavam amarradas em fronhas e bastante debilitadas. “Elas foram morrendo uma a uma em poucos dias e apenas uma sobreviveu”, recorda Giuseppe, que coordena o setor de Recepção de Animais do Instituto.
Nos aeroportos, os animais traficados tendem a ser identificados dentro de malas durante a passagem pelo raio-x. Quanto mais bem embalados, maior a chance de passarem despercebidos. O tempo sem comer durante o transporte não é o grande problema, já que serpentes se alimentam uma vez por mês e lagartos uma vez por semana.
“O que aumenta o risco de morte é o estresse e a desidratação. Elas tendem a aguentar viagens não tão longas desde que estejam em recipientes com alguma ventilação, embora isso não impeça de chegarem debilitadas”, explica a herpetologista Kathleen Grego, diretora pesquisadora do Laboratório de Herpetologia do Instituto Butantan.
Impactos ambientais
Algumas espécies que hoje compõem a exposição permanente do Museu Biológico do Butantan se tornaram célebres, como a naja de Brasília e a víbora-dos-lábios-brancos apelidada de Rita Lee, ambas apreendidas em ações policiais em 2021 e em 2023. Mas por pouco esses belos exemplares não tiveram outros fins.
A naja, típica do continente asiático, fora comprada ilegalmente por um homem que, ferido por ela, a abandonou perto de um shopping da capital federal em 2021. A víbora-dos-lábios-brancos, típica da Indonésia, foi encontrada com outros 59 animais durante uma apreensão na Bahia em 2023. A serpente azul, que homenageia a cantora paulistana, viajava com outro exemplar da espécie, morto dias depois devido a uma forte desidratação.
O que elas têm em comum, além de serem belas e exóticas? Foram traficadas e comercializadas como animais de estimação. Esse mercado ilegal cresce à medida que o comércio legalizado de animais silvestres envolve altos preços, e diversas espécies passam a ser vendidas, ilegalmente, pela internet a preços bem menores. O que pode parecer uma pechincha é, na verdade, um mercado bilionário que não se preocupa com o bem-estar dos animais e gera sérios impactos ambientais.
“As serpentes são topo de cadeia alimentar, ou seja, a maioria delas, peçonhentas ou não peçonhentas, se alimentam de pequenos mamíferos, como os ratos. Quando elas são mortas ou retiradas de seu ambiente, é comum aumentar a população desses bichos. O mesmo ocorre com as serpentes que se alimentam de anfíbios e de outros animais comercializados ilegalmente”, esclarece a herpetóloga.
Alguns bichos, como aranhas e os pequenos lagartos conhecidos como geckos, mobilizam o mercado clandestino justamente por serem considerados “bonitinhos” e poderem ser facilmente transportados, devido ao tamanho. Segundo Giuseppe, os animais mais recebidos no Butantan são aranhas, porque muitas pessoas gostam de tê-las em terrários, mas também são recebidos serpentes, escorpiões e quelônios traficados. “As aranhas e os escorpiões são importantíssimos porque comem moscas, mosquitos, baratas. Quando eles são mortos ou saem de seu ambiente natural, aumenta a população de moscas e baratas”, explica o diretor.
Comércio legalizado
Por outro lado, o comércio legalizado de alguns animais silvestres ou exóticos é permitido no Brasil e regularizado pelo Ibama. É possível comprá-los de forma autorizada em criadouros e estabelecimentos comerciais devidamente licenciados e legalizados. Estes locais vendem jiboias, iguanas e papagaios, entre outras espécies.
A diferença, nestes casos, é que o animal deve vir com marcação individual (anilha ou microchip), certificado de sexagem (para aves) e nota fiscal de venda contendo as seguintes informações: nome popular e científico do animal adquirido, data de nascimento, sexo do indivíduo, tipo e número de marcação (a marcação informada na nota fiscal deve coincidir com a marcação real do animal), de acordo com o Ibama.
“Não sou contra ter animal silvestre como pet, contanto que se compre de um lugar autorizado, com microchip, e que se dê bem-estar e qualidade de vida para ele”, ressalta Kathleen.
Animais de estimação
Para Giuseppe, o grande problema de se ter animais silvestres como animais de estimação é o estímulo à caça predatória.
“O mercado pet é muito grande e funciona assim: não basta querer ter um cachorro, se eu posso ter uma cobra cor-de-rosa. O problema é que se essa espécie existe somente em um lugar no mundo, se inicia um movimento predatório e um comércio da espécie. Quando é regularizado, tende a ser muito caro, o que abre espaço para o comércio ilegal, com preços menores, mas com entrega do animal em condições terríveis e sem qualquer responsabilidade”, afirma.
O tráfico é caracterizado pela captura criminosa de animais silvestres do seu hábitat natural e sua destinação ao comércio ilegal. Ele é considerado a terceira maior atividade ilegal do mundo, atrás apenas do tráfico de armas e de drogas, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). A fauna brasileira é um grande alvo por ser considerada uma das mais diversas do planeta. No país, o tráfico de animais silvestres é crime previsto na Lei de Crimes Ambientais (9.605/98), por isso as apreensões são feitas geralmente pela polícia.
Em 2023, foram apreendidos 56,3 mil animais silvestres no Brasil advindos do tráfico, segundo dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Essa é uma parcela minúscula dos 38 milhões de animais silvestres retirados da natureza brasileira todos os anos, crime que movimenta US$ 2 bilhões por ano no país, de acordo com a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas).
As maiores vítimas são as aves silvestres como araras vermelha e azul e papagaios. “A nossa biodiversidade é muito valorizada no mundo inteiro e foi relatada nas cartas de Pero Vaz de Caminha. Quando os europeus chegaram ao Brasil e começaram a explorar as riquezas naturais, muitos exemplares da nossa fauna foram enviados para a Europa. Isso ocorre até hoje porque tem muitos interessados em ter aves e outros animais exóticos, o que confere status”, explica a pesquisadora científica e diretora do Museu Biológico do Butantan Erika Hingst-Zaher.
Erika lembra também que é algo cultural manter pássaros em gaiolas, sem entender que isso também pode causar impactos. As aves são polinizadoras e dispersoras de sementes, o que é essencial para manter o equilíbrio na fauna e na flora.
“Para quem gosta de apreciar a beleza das aves e, por isso, pensa em manter uma dentro de uma gaiola, pensa como seria vê-la na natureza, passando pela sua janela? Com isso, em vez de estar contribuindo para a extinção de uma espécie, você estará contribuindo para a conservação”, conclui a pesquisadora, que há anos estuda aves e suas populações na natureza.
Para a bióloga Danusa Maia, que cuida dos lagartos que chegam ao Museu Biológico do Instituto Butantan, é importante as pessoas terem consciência que os animais, mesmo que fiquem no ambiente doméstico, devem ser tratados como seres vivos que têm especificidades.
“O ideal é não ter o animal em casa se você não possui condições de cuidar da forma correta, já que cada espécie requer um ambiente com temperatura e umidade controladas e uma alimentação específica. Além disso, no comércio legal, o custo é alto porque requer documentação. Muita gente quer ter e não compra de forma legalizada para pagar menos, mas o tráfico de animais é muito cruel. Pense nisso antes de ter um animal”, conclui.