Texto: Felipe Floresti/Revista Pesquisa Fapesp
Antes mesmo de surgirem as vacinas contra a Covid-19, cerca de 20% das pessoas escapavam praticamente ilesas dos efeitos do novo coronavírus. Infectadas, não apresentavam os sintomas típicos da doença, que matou mais de 700 mil pessoas no Brasil. Idade, ausência de doenças preexistentes e carga viral baixa são algumas das explicações possíveis para o quadro assintomático, mas não as únicas. Fatores genéticos também podem ter contribuído para proteger contra o Sars-CoV-2. Em um estudo publicado na quarta-feira (19/7) na revista Nature, o geneticista brasileiro Danillo Augusto, da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte, nos Estados Unidos, e colaboradores identificaram uma versão (variante) de um gene do sistema imune que, a partir do contato prévio com outros coronavírus, parece preparar as células de defesa para atuarem contra o causador da Covid-19.
“Nossa proposta foi olhar para um grupo de indivíduos assintomáticos e ver se essa resposta imune mais efetiva era mediada pelo HLA”, disse Augusto, por telefone, a Pesquisa FAPESP. HLA é a sigla em inglês de sistema de antígenos leucocitários humanos, um conjunto de proteínas codificadas por genes do cromossomo 6 do genoma humano. Essas proteínas ajudam um grupo de células de defesa, os linfócitos T, a distinguir as estruturas que integram o próprio corpo e devem ser preservadas daquelas que são estranhas ao organismo – ditas exógenas, como partes de vírus ou bactérias – e precisam ser destruídas. Um primeiro contato dos linfócitos T com proteínas exógenas desencadeia uma sequência de reações químicas e de ativação de células que combate o invasor. Mas isso pode levar dias. Depois dessa exposição inicial, células de memória guardam informação do invasor e, em um segundo contato, ativam uma resposta bem mais rápida e eficiente.
Em busca de indícios de que algum fator genético protegeria os assintomáticos, os pesquisadores acompanharam durante um ano cerca de 30 mil pessoas que integram o cadastro de doadores de medula óssea dos Estados Unidos. As características do sistema HLA dessas pessoas são bem conhecidas, algo necessário para evitar problemas de incompatibilidade nos transplantes. No início da pandemia, antes de surgirem as primeiras vacinas contra o novo coronavírus, os integrantes do cadastro foram convidados a baixar um aplicativo de celular e a registrar diariamente o resultado dos testes de Covid-19. Dos quase 30 mil participantes, 1.428 apresentaram resultado positivo para infecção por Sars-CoV-2 no período de seguimento, sendo que 136 deles não apresentaram sintomas da infecção.
Uma proporção importante dos assintomáticos (20%) tinha uma característica genética em comum. Eles traziam no genoma uma versão alterada do gene HLA-B, a variante HLA-B*15:01. “Entre as pessoas que tiveram sintomas, apenas 9% apresentavam essa variante. Ela não garante a ausência de sinais, mas reduz muito a probabilidade de eles aparecerem”, explicou Augusto. Indivíduos com duas cópias (dois alelos) da HLA-B*15:01 apresentavam uma probabilidade 8,5 vezes maior de não ter sintomas do que pessoas sem a variante.
O mecanismo que explica essa redução de sintomas parece ser uma resposta imunológica cruzada. Em testes com amostras de sangue coletadas muito tempo antes da pandemia, as células de defesa de indivíduos com a variante HLA-B*15:01 foram capazes de reconhecer fragmentos do Sars-CoV-2, sem nunca terem tido contato prévio com o vírus. A explicação para essa memória imunológica, segundo os autores do estudo, é que os linfócitos de T de pessoas com a HLA-B*15:01 reconhecem um trecho de uma proteína do Sars-CoV-2 muito semelhante ao encontrado na proteína dos coronavírus causadores do resfriado comum. Como consequência, quem tem o alelo HLA-B*15:01 e já havia sido infectado por algum coronavírus ficava ao menos parcialmente protegido contra o Sars-CoV-2, provavelmente por conseguir gerar uma resposta que o elimine antes de os sintomas surgirem. Segundo Augusto, esse achado pode levar à produção de vacinas mais específicas contra o patógeno da Covid-19.
“Ao indicar que o alelo HLA-B*15:01 pode estar associado à infecção assintomática por Sars-CoV-2 por causa da reação cruzada contra outros coronavírus endêmicos, o estudo dá uma explicação mais aprofundada para um fenômeno que imaginamos que poderia ocorrer, mas os mecanismos exatos não são totalmente compreendidos e mais pesquisas são necessárias para elucidar o fenômeno”, afirma o virologista Fernando Spilki, da Universidade Feevale, no Rio Grande do Sul, que não participou do estudo publicado na Nature. Ele lembra, no entanto, que é pouco provável que um único gene determine a gravidade do quadro de Covid-19. “Outros genes já foram associados a diferentes níveis de gravidade da doença. Além da genética, outros fatores, como infecções concorrentes ou a linhagem do Sars-CoV-2, podem influenciar a resposta imunológica”, explica o pesquisador da Feevale.
Artigo científico
AUGUSTO, D. G. et al. A common allele of HLA is associated with asymptomatic Sars-CoV-2 infection. Nature. 19 jul. 2023.