O problema em tratar a violência armada como um vírus
Violência armada se move pela cidade da mesma forma que um vírus anda pelo corpo: previsivelmente, com uma precisão inquietante. Novos pesquisadores sugerem que padrões de “vírus” podem ser localizados e possivelmente podem ajudar a prevenir tiroteios. Mas ainda existem dúvidas se isso pode ser feito de maneira ética e, mais importante, em quem podemos confiar para utilizar essa tecnologia preditiva.
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Um estudo recente publicado no Journal of the American Medical Association usa modelos de contágio para rastrear e adivinhar as próximas vítimas da violência armada. Os autores, o professor de sociologia da Universidade Yale e nascido em Chicago Andrew Papachristos, e os estudantes de Harvard Ben Green e Thibault Morel, estudaram nove anos de dados de violência armada em Chicago, totalizando 13.000 casos. Os registros de prisão, junto com a informação sobre violência armada foram retirados do Departamento de Polícia de Chicago (o conjunto de dados excluiu suicídios, disparos acidentais e tiroteios policiais). Os pesquisadores concluíram que as balas seguiam um caminho familiar, se espalhando em um padrão parecido com o de um vírus.
“[A violência entre gangues] parece mais com um agente patogênico transmitido pelo sangue do que com uma gripe”, Papachristos disse ao Gizmodo. “Você não leva um tiro da mesma forma que pega um resfriado, mas o poder dessa analogia está em pensar sobre a precisão com a qual essa violência se move pela população”.
Imagem: Modelo de contágio através de redes sociais para explicar e predizer a violência armada em Chicago, 2006 a 2014. Green B, Horel T, Papachristos AV.
Papachristos sugere que entrar em uma gangue significa herdar todos os rancores e afiliações das pessoas do mesmo grupo. Então nesse exemplo, uma visita ao 7-Eleven se torna fatal para o Indivíduo A porque ele chega junto com Indivíduo B, que tem um problema com membros da gangue rival que já estavam lá quando eles chegaram. O Indivíduo A não tem problemas com eles, e poderia não ter sido um alvo se ele tivesse ido sozinho.
Então nessa analogia, o Indivíduo B “infectou” o Indivíduo A com violência armada, o que quer dizer que a influência do Indivíduo B transformou o Indivíduo A em um alvo. Papachristos e seus colegas descobriram que a violência armada “andou” por Chicago como o HIV, aparecendo previsivelmente dentro de uma rede concentrada em interações sociais que envolvem comportamento “de risco”.
“Qualquer bom pastor, professor, policial, técnico de futebol, eles conhecem essas redes”, ele disse. “Eles vivem nessas redes. Mas eles só enxergam uma pequena parte dela. Nós só estamos dando um mapa inteiro”.
Para criar o mapa, os pesquisadores observaram pares de moradores de Chicago que foram presos juntos, criando uma rede social complexa de 138 a 163 indivíduos. Dentro dessa rede, a violência armada emanava de uma vítima, “infectando” as pessoas ao seu redor. Quanto mais perto você está de alguém que acabou de levar tiros, mais provavelmente você será baleado. Setenta por cento da violência armada não fatal pode ser rastreada até redes que contém menos de 5 por cento da população da cidade, as vítimas e autores dos disparos geralmente estavam em círculos sociais que se sobrepunham.
Imagem: Modelo de contágio através de redes sociais para explicar e predizer a violência armada em Chicago, 2006 a 2014. Green B, Horel T, Papachristos AV.
Em teoria, saber quem tem mais probabilidades de levar um tiro oferece a chance de intervir e salvar vidas. Papachristos diz que ele imagina um sistema de resposta rápida onde ONGs oferecem seus serviços para alguém que o sistema identifica. Mas outras pessoas mostraram sérias preocupações éticas no uso de modelos de predição, especificamente dentro do sistema policial. Jessica Saunders, uma criminologista sênior da ONG RAND Corporation que estuda a eficácia de tecnologias de predição, diz que pesquisadores que trabalham com dados vindos da polícia podem estar trabalhando com dados incompletos, alterando os resultados.
“Meu maior problema”, diz Saunders , “é que estamos pegando essas predições e alegando que elas estão predizendo a verdade real”.
Saunders aponta que quaisquer vieses da polícia que serviram para compilar os dados criminais provavelmente estão incorporados nos modelos estatísticos e nas extrapolações resultantes. (Esses vieses, que incluem perfil racial e ao policiamento exacerbado de bairros negros e latinos, podem ser observados na análise das prisões do NYPD e CPD, além dos dados do pare-e-fale. A predisposição também fica evidente na maior probabilidade da violência policial contra pessoas de cor, justamente o tipo de violência que não entra nesse estudo).
Dados incompletos viram um problema sério conforme a tecnologia preditiva se torna cada vez mais comum.
“Pelo menos 40 por cento dos crimes não são relatados”, ela disse. “Então se você construir esses modelos complexos e sofisticados, se baseando em dados incompletos, o que você está de fato fazendo é repetir os vieses que estavam lá quando os dados foram inseridos”.
Sem a segurança que previna que os vieses entrem nos modelos estatísticos, ou maneira de prevenir o mal uso das informações que esses modelos entregam, o que “poderia” acontecer é assustador. Jay Stanley da ACLU imagina um futuro distópico aos moldes de Black Mirror onde todos os cidadões recebam uma pontuação de propensão à criminalidade, que policiais poderiam ver com o Google Glass através da realidade aumentada. Parece uma invasão de privacidade vinda direto de um pesadelo, mas a tecnolocia para fazer isso virar realidade existe: realidade aumentada é bem comum, fabricantes de câmeras já estão explorando tecnologias de reconhecimento facial (o Google proibe seu uso no Google Glass), e temos o potencial calculado de Minority Report que nos dá as chances de alguém cometer um crime no futuro.
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Papachristos reconhece a possibilidade do exagero, mas diz que ele prevê o uso de seus modelos em ONGs para criar uma abordagem holística para prevenir a violência armada que inclui oferecer recursos a vítimas potenciais como assistência médica, empregos e educação com um grau muito maior de precisão.
“Estamos tentando transformar o diálogo sobre como salvar as vidas desses jovens homens, a maioria deles com registro criminal, como o foco ao invés de, por exemplo apenas aumentar os recursos policiais em volta deles”, Papachristos disse.
Apesar das tecnologias preditivas apresentarem certa visão do futuro, os detalhes de como elas vão se desenvolver ainda não são claros. Observando as muitas barreiras para a igualdade e transparência que nós vemos nas provas presentes, ainda tem muito trabalho pela frente para prevenirmos abusos. É inútil predizer vioência armada se essas predições só servirem como justificativa estatística para abusos policiais.
Tanto Saunders quanto Papachristos são contra a policia usar dados estatísticos para focar em alguém, mas nenhum deles pode dizer se não farão isso. Como Papachristos colocou, “Eu não posso controlar o que as pessoas vão fazer com a rede que fizemos”.
Ilustração: Jim Cooke/Gizmodo.