Como a polarização burra deixa o país pior
“O que este texto está fazendo no Gizmodo?”, você pode se perguntar. Ele faz parte de uma série de posts que estamos produzindo sobre os principais debates do país. Ele é só o começo.
Adendo pós publicação do post: quer uma prova de que dá para debater com argumentos sem cair na loucura? Vá à área de comentários deste texto (sim, você leu certo. Vá à área de comentários). A conversa está ótima! Eu ainda não consegui responder todo mundo, mas li e fiquei bem feliz com muitos dos argumentos. Obrigado, pessoal, por compartilhar o tempo de vocês fazendo comentários tão bons!
No meio de janeiro, fui à casa dos meus pais, em Caieiras. A cidade é uma entre as oito que compõem o Sistema Cantareira. Já falta água lá faz tempo. Na casa dos meus tios, em Pirituba, na zona noroeste de São Paulo, a água vai embora cada vez mais cedo e volta cada vez mais tarde. Esse site mapeia onde está faltando água, apesar do governo de São Paulo continuar chamando o racionamento de outro nome.
Pois bem. Na semana passada, a Folha de São Paulo publicou essa reportagem: “Sabesp diminui pressão da água e, na prática, todos os bairros de SP estão em racionamento”. Sim, é aquele racionamento, que muita gente disse que não teria. É aquele, que já estava com data marcada para acontecer desde março (eu escrevi sobre isso no Gizmodo Brasil, nesta reportagem de abril de 2014: Copa em São Paulo? Vai ter. Água a gente não sabe. Entenda o problema do sistema Cantareira). É aquele racionamento que nunca aconteceria, segundo o governador do Estado de São Paulo, nestes links:
“Não há risco de racionamento de água em 2015”, diz Alckmin: http://goo.gl/ucPZJx
Não há necessidade de racionamento em SP, afirma Alckmin: http://goo.gl/xW5l36
Alckmin nega racionamento de água em SP: http://goo.gl/8IdWqC
Reeleito, Alckmin garante que não haverá racionamento em SP: http://goo.gl/jMuxaP
Alckmin diz que não vai ter racionamento após eleições:http://goo.gl/TCxf2J
Racionamento de água seria “atitude irresponsável”, diz Alckmin: http://goo.gl/SWQmni
E também é aquela crise que foi anunciada há 12 anos, como mostra a reportagem, também da Folha de São Paulo, de 2003.
E agora? Do meu lado, torço para que o governo de São Paulo resolva isso da melhor forma possível. Ninguém ganha com São Paulo seca. Torcer para o desastre não é só sintoma de falta de caráter. É estupidez.
Porém, essa crise também é nossa. Calma… Nós não passamos canos, não construímos represas, não temos a responsabilidade de fazer campanha contra o desperdício. Mas nós, cidadãos, interferimos nos debates que fazem com que os governos se apressem a colocar canos, a construir represas e a fazer campanhas de racionamento.
Quanto mais o debate de ideias no Brasil se torna estúpido e mesquinho, mais fácil para os governos. Seus especialistas em comunicação e administradores de crise conseguem domar, com facilidade, os debates desconfortáveis. Basta colocar a crise no colo do adversário político ou afirmar que qualquer menção à crise hídrica é claramente uma provocação do oponente. Pronto, feito. Já existe mais um ponto para a “Torcida Organizada XXX” enfrentar a “Torcida Unificada ZZZ”.
A polarização burra
A crise d’água é uma BELÍSSIMA lição não apenas sobre o que governos fazem para ganhar eleição. Também é sobre polarização burra. O lado bom de ter memória é que eu me lembro bem do que apoiadores do Alckmin escreveram no outono passado sobre a falta de água (ou a diminuição da pressão, como eles gostavam de dizer). Ah, e eu também lembro dos dilmistas, (e já escrevi sobre o ministério dela, que reúne o pior de FHC, Lula e da própria Dilma) e sobre como o governo escondeu a crise no setor elétrico. Não tenho compromisso com partido nem com pessoas de partidos. Só tenho compromisso com o que eu acredito, além de respeitar os fatos — um dos meus intelectuais favoritos, Tony Judt, dizia que quando os fatos mudam, é preciso mudar as ideias.
Porque, no final das contas, não é uma questão de petistas versus tucanos. Essa polarização deixou, faz tempo, de servir ao debate de ideias. Da forma como está hoje, serve apenas para que os dois lados unifiquem seus apoiadores contra o outro lado e mantenham seus feudos de poder sob controle. É mais fácil se manter forte quando você tem um inimigo claro. As tropas se mexem com mais facilidade. O debate é interditado simplesmente ao classificar o outro lado daquilo que você não é. E a gente acaba caindo direitinho na estratégia dos administradores de crise de cada lado… Quanto mais ódio e mais grito, mais vamos perdendo nossa capacidade de pensar por nós mesmo, de maneira independente.
Os exemplos
Mas vamos voltar à água — esse negócio cristalino que, se faltar, vai dar um problema gigantesco. Vou reproduzir algumas chamadas, com link. Não importa se quem escreveu é fulano ou ciclano, se saiu num lugar ou no outro. É o método, cada vez mais usado tanto por aliados quanto por adversários do blogueiro: em vez de responder ao problema, ataque quem revela o problema.
O problema? Deixa de existir porque a conversa muda.
30/07/2014 às 4:00
07/10/2014 às 20:08
MP Federal e Estadual querem tomar o lugar do governador de SP e decretar racionamento. É o fim da picada!
10/10/2014 às 20:54
“Absurdo! Liminar de juiz proíbe retirada de água da segunda parte do volume estratégico da Cantareira e manda impor racionamento”
15/10/2014 às 16:29
O terrorismo da água
16/10/2014 às 16:43
A crise hídrica e a questão eleitoral. Ou: Manchete só errada ou também irresponsável? Ou ainda: “Acabar” é verbo que não se conjuga pela metade
Já havia uma crise de água antes e durante a publicação de cada um desses textos. Mas esses textos mostram como é fácil ignorar a realidade (especialmente gritando e ofendendo adversários). Isso, claro, não é exclusividade de um dos lados no debate político brasileiro.
O PT fez uma quantidade monumental de bobagens, além de ter cometido (mais um) estelionato eleitoral. Dilma disse que não ia cortar gastos nem diminuir direitos. Fez os dois. Ela também montou um ministério cheio de personagens controversas (para não usar termos que podem me render um processo judicial).
Mas, como Alckmin, Dilma também tem à sua disposição pessoas capazes de produzir textos com títulos como “Dilma arriscou, mas pode ter montado o melhor ministério depois do primeiro de Lula” ou pessoas que preferem culpar outras pessoas por decisões que, no final das contas, são só de Dilma. São tuítes assim, por exemplo: Gente de estados em que a Dilma e a esquerda sofreram duríssimas derrotas, reclamando do ministério. Em que contribuíram para a vitória?.
Sem contar, claro, sites e apoiadores que ignoram seletivamente a realidade. Como esse texto: “Pepe Vargas descarta ameaça de racionamento de energia – Segundo o ministro das Relações Institucionais, Pepe Vargas, está descartada a possibilidade de que ocorra um apagão, como registrado durante o governo FHC”.
Isso tudo apesar de o próprio governo admitir, com ações, que há uma crise no setor elétrico. Sem contar, claro, uma questão simples: a falta de chuvas TAMBÉM afeta o setor elétrico. Como vai gerar energia hidrelétrica sem água? Simplesmente não dá para dizer que o racionamento de energia está descartado.
>>> Por que provavelmente teremos racionamento de energia em 2015
No caso específico da água, o PT também deixou uma rodovia presidente Dutra de caminhões pipa a desejar. Esse é um debate no qual a sigla poderia ter entrado faz mais tempo. O PSDB é governo em São Paulo há décadas (o conceito de alternância de poder não pega no Estado…) Mas o PT também é oposição pelo mesmo período e teria, mais do que ninguém, ciência dos problemas do governo estadual.
A bem da verdade e da justiça, PT, PSDB e tantos outros partidos não estão sozinhos nessa história de vencer eleições a qualquer preço. São só governos, querendo se manter no poder pelo máximo de tempo possível. Também estão longe de ser os únicos partidos a espalhar meia verdade para colher confusão a seu favor. Isso virou método de debate. Pior para o Brasil, pior para nós. Porque, hoje, o debate público virou rinha de grito. É um enorme nada cercado de berros por todos os lados. E a gente acaba caindo nessa, como se fôssemos um mundo de bois seguindo os berros do boiadeiro.
A grande beleza
A disputa política é necessária. Não existe sociedade sem conflito, sem debate de ideias (às vezes bem duros. Basta ver o Question Time, da BBC). Há vários embates que são difíceis de resolver. Nem sempre será possível conciliar os lados. Só que é preciso manter os princípios. Um deles é o respeito aos fatos acima das conveniências. Se os fatos contradizem as ideias, problema das ideias.
Porém, no Brasil e também nos EUA, muita gente segue um método simples. Aos amigos, tudo. Aos inimigos, o rigor da lei e a chicotada das palavras. Aí, fica fácil. Não há compromisso com as coisas. Basta que as coisas sirvam ao propósito que você tem ali, naquele momento. Depois, danem-se as coisas. Isso não é exatamente novo — apenas ficou mais visível.
Há um texto maravilhoso do George Orwell chamado “Política e Língua Inglesa”. Há uma tradução neste link. A Inglaterra de Orwell também tinha muita gente que gritava, distorcia, dissimulava. O Brasil não está sozinho nessa. O texto de Orwell mostra alguns recursos que os governos e seus apoiadores usam para distorcer o debate a seu favor. É bem didático. Leia e depois compare com os seus blogueiros favoritos (para amar ou para odiar).
Essa é uma das razões pelas quais não acredito que esses apoiadores defendam esses governos por dinheiro. Essa história de pena comprada é uma ótima tática para jogar cortina de fumaça no debate. Boa parte das pessoas, incluindo os autores dos links que distribuí ao longo desse texto, escreve o que escreve por convicção. Eles apenas encarnam um jeito de organizar debates no Brasil que, no final das contas, acaba servindo aos interesses dos dois maiores partidos do país.
A liberdade de expressão
E, no final das contas, é por isso que a liberdade de expressão é tão bonita. Ela serve não apenas para debater ideias. A liberdade de expressão também revela as pessoas e as estratégias que governos e seus apoiadores (voluntários e involuntários) usam para interferir no debate público. É direito deles interferir no debate, aliás.
Porém, é nossa obrigação, e direito, confrontá-los com debates que os deixem desconfortáveis. O governo deve servir às pessoas. Não podemos ser reféns ou temer aqueles que deviam nos servir — além disso, não podemos temer aqueles que defendem os governos. Não podemos ter medo das pessoas que debatem aos gritos.
Liberdade de expressão também é liberdade de criticar outras pessoas, governos e instituições— e de ser criticado por elas. Porque liberdade de expressão não é direito unilateral. Serve para todo mundo. Um país mais livre talvez não ficasse observando a torneira secar, acreditando na promessa do governo de que o racionamento nunca viria…
Cano? Não vai rolar. Mas quebrar as espirais que transformam problemas graves em picuinhas de gabinete está ao nosso alcance.
PS: Trabalhei na Veja e tenho amigos na revista. A revista tem direito a publicar o que quiser e a ter os colunistas que quiser. As pessoas também tem direito de criticar a revista e seus colunistas. Eu não gosto de algumas reportagens, gosto de outras. Do jogo. Mas, nessa época tão doida, é sempre bom reforçar o óbvio (que a cada dia anda menos óbvio…): A sociedade se faz com pluralidade de vozes. Quanto mais vozes na sociedade, quanto mais gente debatendo, levantando pontos relevantes, melhor. Aliás, também tenho vários amigos de esquerda que fazem coisas excelentes (há várias esquerdas e várias direitas…) As vozes podem ser criticadas, mas não podem ser caladas.