A franquia na internet fixa dos EUA mostra os problemas que teremos no Brasil

Em 2008, os EUA foram os primeiros a adotar esta prática, onde ela vem sendo aplicada em diferentes graus. Quais foram as consequências por lá?

O Brasil se encontra no meio de um debate sobre a implementação de franquias na internet fixa. Em 2008, os EUA foram um dos primeiros países a adotar esta prática, onde ela vem sendo aplicada em diferentes graus desde então. Quais foram as consequências por lá?

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Uma reportagem do Wall Street Journal investiga o impacto das franquias na internet fixa dos EUA. Basicamente, as pessoas ficam receosas em usar serviços de streaming, e se veem presas à TV paga.

A operadora Comcast começou a testar franquias mensais de 300 GB em algumas regiões dos EUA no ano passado. Ela domina 26% do mercado americano de banda larga fixa.

O resultado: o número de reclamações para a FCC (equivalente americana à Anatel) envolvendo franquias aumentou em nove vezes, saltando de 863 no primeiro semestre do ano passado para 7.904 no segundo semestre.

E isso mudou os hábitos das pessoas. Um entrevistado diz ao WSJ que para de fazer streaming na Netflix e Amazon quando chega próximo ao limite mensal, e passa a assistir TV a cabo: “eu não teria TV paga se não fosse pelo limite de dados”.

Uma enfermeira em Nashville afirma que isso causou brigas na família, porque ela tinha que restringir o filho de entrar no YouTube, e ficar de olho no uso de videogame do marido. Outro entrevistado parou de assistir Netflix antes de dormir.

Alguns clientes vão mais longe e cancelam serviços de streaming como Netflix, Sling TV e Sony PlayStation Vue. “Eu amo a Netflix… mas não faz sentido eu pagar pelo serviço quando vou ser cobrado o dobro ou o triplo [da assinatura] pela Comcast”, diz outro entrevistado.

A Comcast cobra US$ 10 adicionais para cada 50 gigabytes acima do limite, assim como a AT&T (que detém 17% dos assinantes de internet fixa). Tal como no Brasil, operadoras pequenas dos EUA não têm limite de consumo mensal, incluindo o Google Fiber.

Heavy users

O argumento da Comcast é que heavy users deveriam pagar mais que usuários comuns, porque 50% de sua largura de banda é consumida por apenas 10% dos clientes. É algo semelhante ao que o superintendente de Competição da Anatel, Carlos Baigorri, disse este ano: “não existe um único consumidor, então para quem está abaixo da média, consome menos, o limite é melhor”.

No início do ano, o CEO da Comcast comparou o consumo de internet à gasolina e à eletricidade: “quanto mais bits você usa, mais você paga”.

No entanto, muitos argumentam que essa comparação não é válida, porque os custos da Comcast são fixos: devido a seu tamanho, ela já é obrigada a manter uma infraestrutura enorme – se um usuário consumir 300 GB ou 400 GB, isso não afeta o lucro da empresa.

Eis o que a CCG Consulting diz sobre o assunto:

Pelo tamanho da Comcast, ou ela tem presença física direta em cada grande POP [ponto em que um provedor se conecta a outros], ou ela tem acordos com alguma operadora local. Devido ao seu tamanho, eu tenho que imaginar que o custo da Comcast para transporte por megabit é menor do que qualquer outra empresa na indústria – talvez com exceção da AT&T, que é uma das proprietárias da estrutura de internet.

… para a Comcast, este custo por cliente tem que ser minúsculo. E o custo é fixo. Depois de comprar o transporte para um mercado, não importa o quanto de banda você insere através do tubo. Portanto, este custo não aumenta devido ao uso dos clientes.

De fato, a associação que representa as operadoras de internet dos EUA confessou há anos que o objetivo das franquias não é evitar congestão na rede, e sim “rentabilizar de forma justa um alto custo fixo”. E recentemente, o vice-presidente de internet da Comcast disse no Twitter que as franquias são uma decisão de negócios, não de engenharia:

https://twitter.com/jlivingood/status/632177747469725696

Além disso, documentos vazados da Comcast mostram que atendentes não devem sequer mencionar o termo “congestionamento de rede”:

Diga: “Equidade e proporcionar uma política mais flexível aos nossos clientes.”
Não diga: “O programa é sobre gestão de congestionamentos de rede.” (Não é.)

Conflito com streaming

Existe outro aspecto importante: as operadoras de internet fixa também oferecem TV paga, portanto concorrem com serviços de streaming – e o conflito de interesses envolvendo as franquias é bastante explícito nos EUA.

Um cliente da AT&T conta ao WSJ que planejava cortar a TV a cabo, mas recebeu um aviso de que estava se aproximando da franquia de 250 GB. A operadora disse que ele poderia ter dados ilimitados todo mês… era só continuar assinando a TV paga. (Também é possível adquirir dados ilimitados por mais US$ 30 mensais.)

Outro problema: algumas operadoras de TV a cabo têm serviços próprios de streaming, e eles não descontam da franquia. É o caso do Comcast Stream, que custa US$ 15 e oferece acesso à HBO e a emissoras locais. (A operadora diz que o streaming passa “pelo sistema de TV a cabo, não pela internet”, mesmo sem exigir uma assinatura de TV ou mesmo uma set-top box.) Quem quer acessar a Netflix, no entanto, precisa ficar atento ao limite mensal.

Uma porta-voz da Netflix diz ao WSJ que “franquias restritivas de dados são uma forma ineficiente de gerir redes e têm o potencial de inibir a inovação na internet”. E para um executivo da Dish Network, empresa que detém o serviço de streaming Sling TV, as empresas de banda larga querem “sabotar serviços over-the-top, e as franquias de dados são uma ferramenta essencial para se conseguir isso”.

E não para por aí. Quem garante que a medição da operadora será exata? Um entrevistado diz ao WSJ que sempre estoura o limite mensal, mas não entende como isso está acontecendo. Ele mora com a esposa e três filhos adultos, mas evita usar serviços de vídeo e proíbe a filha de usar Netflix. Ainda assim, nem mesmo a Comcast sabe explicar onde está o “vazamento” de dados.

E no Brasil?

Nos EUA, a situação parece bem clara. Como resume o TechDirt, “a conclusão é que simplesmente não há justificativa financeira ou técnica para o que a Comcast está fazendo. A única razão pela qual a Comcast está impondo limites de uso é para aumentar preços em mercados não-competitivos de banda larga, favorecer injustamente os seus próprios serviços, e proteger do streaming as receitas vindas da TV paga”.

Vale lembrar que, até o momento, a maioria dos países não adota franquias na internet fixa. Como diz a Folha, “em mais de 70% dos países, os pacotes mais básicos de banda larga são ilimitados, segundo a UIT (União Internacional de Telecomunicações)”. Mesmo onde se adotam franquias, a prática é a exceção, não a regra: é o caso do Reino Unido, onde mais de 80% dos clientes têm internet fixa sem limite de dados.

Mas se realmente formos adotar as franquias no Brasil, merecemos saber como – ou se – as operadoras realmente estão sendo impactadas por heavy users. Este é o argumento principal da Anatel; no entanto, ela não mencionou nenhum estudo técnico para defendê-lo. Pior: ela só resolveu tomar uma atitude de verdade após ser notificada pelo Ministério Público Federal.

As franquias na internet fixa brasileira estão suspensas por tempo indeterminado para o conselho diretor da Anatel discutir o assunto.

[Wall Street Journal]

Foto por Fotocitizen/pixabay

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