Entendendo as mudanças no Marco Civil da internet brasileira
Esta semana, o deputado federal Alessandro Molon (PT-RJ) divulgou a versão final do Marco Civil que será votada na Câmara. Este projeto de lei quer criar uma espécie de Constituição para a internet brasileira, definindo direitos e deveres dos usuários, provedores, empresas e governo.
O Marco Civil da Internet (PL 2126/11) vem sendo discutido no país desde 2009, mas ganhou força após o escândalo de espionagem americana no Brasil. Por isso, ele recebeu algumas modificações para incluir temas polêmicos, como a exigência de data centers nacionais para empresas de internet – algo a que gigantes como Google e Facebook se opõem. Você pode ler o texto completo aqui, cortesia do Convergência Digital.
O que é o Marco Civil, e quais mudanças ele sofreu? O Giz explica.
O Marco Civil será a Constituição da internet brasileira…
Há cerca de um ano, explicamos o Marco Civil: este projeto de lei define princípios para usuários, empresas e governo. Ele dá regras mais claras que provedores de acesso e grandes sites podem seguir. E ele ainda garante em lei diversos direitos para você, como privacidade e neutralidade de rede.
A base do Marco Civil não mudou de um ano para cá; as mudanças apenas reforçaram seus três pontos principais:
- neutralidade de rede: o artigo 9 proíbe que os provedores de acesso prejudiquem qualquer tipo de tráfego. Por exemplo, eles não poderiam limitar a velocidade do YouTube, do BitTorrent ou de qualquer outro conteúdo – ou seja, seria o fim do traffic shaping.
- privacidade online: o Marco Civil proíbe que os provedores guardem um log dos sites que você visitou. Seu histórico de internet é apenas seu. No entanto, os provedores são obrigados a armazenar seu registro de conexão por um ano, mostrando quando você usou a internet, e por qual IP – não o que você fez ao navegar. A ideia é identificar o usuário caso ele esteja envolvido em alguma atividade que viole a lei.
- a responsabilidade pelo conteúdo: serviços online não podem responder por infrações cometidas por seus usuários. Por exemplo, se alguém postou algo ofensivo sobre você no Facebook, a rede social não será responsabilizada por isso. No entanto, a empresa de internet é a responsável caso a vítima obtenha uma ordem judicial para remover o conteúdo.
O projeto recebeu algumas mudanças importantes. Vamos a elas.
… que ganhou foco ainda maior em privacidade…
Depois que documentos vazados por Edward Snowden revelaram que o Brasil é alvo prioritário da espionagem americana, o Marco Civil foi alterado para proteger mais fortemente a privacidade dos usuários. A maior mudança está na seção que, antes restrita aos registros de conexão, agora trata de proteger seus dados pessoais e conversas privadas.
Sim, já havia uma cláusula garantindo o sigilo de “comunicações pela Internet”, mas dá para entender isso como a privacidade de conversas viajando entre você e seu remetente. E quando elas ficam guardadas em um servidor? Por isso, agora o projeto garante o “sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial”. Se a empresa colocar no contrato uma cláusula que viole o sigilo, ela não terá valor judicial.
Também se exige que as empresas peçam consentimento expresso ao usuário para coletar, usar e guardar seus dados pessoais. Isso afeta empresas de publicidade e marketing digital, como o Google: se ela quiser rastrear o comportamento dos usuários, precisa que o usuário permita isso de forma explícita.
As empresas ainda têm que deixar claro quais informações pessoais sobre você elas estão armazenando. Ele também define que seus dados privados só poderão ser obtidos sob ordem judicial, se a lei assim permitir.
Além disso, fica proibido às empresas de internet fornecer seus dados pessoais a terceiros; antes, o projeto só proibia fazer isso com “registros de conexão”. É mais uma medida para coibir a espionagem. Assim como antes, o projeto prevê a “exclusão definitiva dos dados pessoais… ao término da relação entre as partes”.
… e inclui temas polêmicos, como prever a obrigatoriedade de data centers no Brasil…
O artigo mais polêmico do Marco Civil prevê que o poder Executivo poderá exigir que empresas de internet tenham data centers no Brasil. Note que, por si só, ele não obriga Facebook e Google a instalar servidores nacionais: no entanto, ele abre caminho para tanto.
Além disso, ele não obriga todo e qualquer serviço a fazer isso: serão apenas os maiores, já que se considera “o porte dos provedores, seu faturamento no Brasil e a amplitude da oferta do serviço ao público brasileiro”. Facebook e Google são contrários à medida.
A proposta é polêmica pois é tecnicamente difícil separar os servidores nacionais dos estrangeiros. Além disso, para evitar a espionagem, não adianta guardar os dados no país: o importante é não direcionar o tráfego nacional por rotas no exterior. Isso pode ser feito ao se investir nos PTTs (pontos de troca de tráfego).
O texto também diz que empresas de internet estrangeiras terão que obedecer as leis brasileiras, protegendo a privacidade e entregando dados pessoais sob ordem judicial. Hoje, empresas podem se recusar a entregar dados aos tribunais se eles estiverem armazenados no exterior. É como o caso recente em que uma briga envolvendo um cão ameaçou o Facebook de fechar no Brasil: a rede social argumentou que não é responsável por gerenciar o conteúdo – isso cabe ao Facebook dos EUA.
Além disso, o contrato ao usuário terá que oferecer uma alternativa de tribunal brasileiro para resolver controvérsias. Caso você quisesse processar hoje o Facebook, por exemplo, seria necessário abrir processo em um tribunal de Santa Clara, EUA; e ele seria julgado de acordo com as leis da Califórnia. O Marco Civil quer mudar isso.
Caso alguma empresa de internet viole sua privacidade ou não queira fornecer dados exigidos pela justiça, ela receberá as seguintes sanções: primeiro, uma advertência; depois, multa de 10% sobre seu faturamento no Brasil; suspensão das atividades no país; e, em último caso, proibição de atuar por aqui.
… e reforça a neutralidade de rede…
O artigo 9, que trata da neutralidade de rede, praticamente não foi alterado. Na verdade, ele foi levemente reforçado: antes, ele era vago em proibir “prejuízos aos usuários”; agora, ele faz referência ao Código Civil, que obriga a empresa a compensar danos que tenha causado ao usuário.
No mais, tudo continua basicamente o mesmo, incluindo a proibição de “bloquear, monitorar, filtrar ou analisar” o tráfego de internet. Isso significa que provedores não podem fazer traffic shaping no país: ou seja, eles não podem limitar a velocidade de certos sites, como o YouTube.
… enquanto deixa certos assuntos para outras leis…
O Marco Civil não regula sozinho toda a internet brasileira: em certos pontos, ele se apoia em outras leis e decretos.
Por exemplo, como fica a violação de direitos autorais na internet? Isso não cabe ao Marco Civil responder. Antes, o projeto abria espaço para o “notice and takedown”: o detentor do direito podia enviar notificação extrajudicial ao site, e ele teria que remover o conteúdo.
Há agora um novo parágrafo que diz: “infrações a direitos de autor… dependem de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão”. Será a nova Lei de Direito Autoral, ainda a ser votada; enquanto ela não é aprovada, o Marco Civil esclarece que continua valendo a lei atual sobre direitos de copyright.
E quanto aos crimes digitais? Também não é um assunto para o Marco Civil: em novembro do ano passado, foram aprovados dois projetos de lei que tornam crime os delitos cometidos pela internet – como clonagem de cartão, furto de dados privados e outros. Os projetos eram conhecidos como Lei Azeredo e Lei Carolina Dieckmann.
… mas ainda não tem previsão de ser aprovado.
Apesar da pressão de Dilma Rousseff em fazer o Congresso votar e aprovar o Marco Civil, ele continua na pauta. No entanto, o projeto já tranca a pauta do plenário, ou seja, impede boa parte das outras votações na Câmara. (Apenas propostas de emenda à Constituição, por exemplo, podem ser votadas.)
Os deputados não conseguem chegar a um acordo. Segundo a Folha, a maior oposição vem de operadoras de telefonia, que são contra a total neutralidade de rede – pois queriam cobrar pelo excesso de tráfego gerado por sites como YouTube e Netflix. Além disso, elas queriam entrar no mercado de publicidade online; mas para isso, teriam que usar o registro de conexão dos usuários, o que o Marco Civil proíbe.
Além disso, a obrigatoriedade de servidores no Brasil continua polêmica. O PMDB diz que vai defender a versão original do projeto, de 2011, que não tratava da guarda de dados no país. Segundo a Folha, deputados indicam podem retirar do Marco Civil a previsão de obrigar empresas a instalar datacenters no Brasil.
O Marco Civil da internet brasileira ainda não tem previsão de virar lei; Alessandro Molon, relator do projeto, diz que fará esforços para vê-lo aprovado ainda este ano.