A quem cabe decidir qual opinião é legítima ou não?

É legítimo pressionar anunciantes a cancelarem patrocínios para um veículo do qual você discorda? E se o veículo for um claro propagador de violência política e dissenso? E quem decide qual é a diferença entre o que é apenas uma opinião divergente e o que é violência política?
Foto: Andrew Medhat/Unsplash

Durante muitos anos no Brasil houve quem dissesse que o “modelo americano” para as opiniões políticas dos jornais devia ser reproduzido no Brasil. Por “modelo americano” entendia-se a prática comum dos jornais de declararem apoio a candidatos não só nas eleições nacionais como nas locais. Desta forma, sempre se soube que o New York Times tinha uma tendência democrata, embora sua prática de reportagem nunca tenha deixado de investigar candidatos e políticos do partido.

A prática brasileira nunca foi essa — eu por algum motivo achei que a Folha em 2018 tinha rompido esta tradição no segundo turno mas não achei o editorial de apoio que eu julgava ter acontecido (como é notório, o rival Estadão disse que a escolha era “difícil”). Jornais sempre tiveram sua linha política e econômica clara, mas nunca apoiaram candidatos abertamente. Tem a ver com uma série de coisas, mas principalmente com a cultura política do Brasil, em que não só não se espera que um jornal apoie candidatos como a própria cultura partidária é quase inexistente.

Assim como no Brasil, na Inglaterra existe uma tradição de se pregar a busca pela “isenção” e pela “imparcialidade”. Embora todos saibam que o Guardian é um jornal de esquerda e portanto ligado aos Trabalhistas, o jornal não assume a defesa de candidaturas, ainda que tenha colunistas que por vezes o façam. Acrescente-se a isso o fato de que o maior veículo de imprensa do país, a BBC, é uma empresa pública, e que portanto nem poderia ter um lado político.

Esta tradição, porém, começou a ser desafiada há uma semana, com o lançamento do GB News, que mesmo antes de ser lançado já havia sido apelidado de “Fox News do Reino Unido”. O canal promete uma cobertura “balanceada” e que cubra “uma variedade de temas e opiniões”, os mesmos códigos que vêm sendo utilizados por todos os veículos ligados à extrema-direita. E promete programas como o “Woke Watch”.

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Quando foi lançada, a Fox News americana era mais ou menos isso também. Embora os veículos americanos tenham a tradição de se posicionar politicamente, a busca pela imparcialidade sempre foi um pilar importante do jornalismo no país. O canal de Rupert Murdoch nunca se propôs a ser imparcial, portanto nunca se propôs a fazer jornalismo. É neste sentido que se posiciona o GB News.

Há diferenças, é claro, e elas são motivadas principalmente por diferenças culturais. Há, sem dúvida, um número enorme de pessoas estúpidas no Reino Unido, como há no mundo todo, mas não há um Texas de pessoas estúpidas (explicando a piada, que talvez ninguém entenda a não ser eu mesmo: por ser um estado grande, o Texas é usado com frequência como sinônimo de coisas grades nos EUA. É, além disso, um lugar onde bizarrices políticas crescem como erva daninha).

O que a Fox News fez com o jornalismo americano, e por consequência com a política do país, hoje é claro. Pois bem: os ingleses não querem pagar pra ver se o GB News vai ter o mesmo impacto: desde antes do lançamento do canal, grupos como o Stop Funding Hate vêm promovendo uma campanha junto a anunciantes para que não se envolvam com o GB News. Até a última quinta-feira, onze grandes marcas, como Nivea, Ikea e Bosch, já haviam anunciado que tinham desistido de patrocinar o canal.

Tanto a campanha como as decisões abrem espaço para um debate que é bastante moderno: é legítimo pressionar anunciantes a cancelarem patrocínios para um veículo do qual você discorda? E se o veículo for um claro propagador de violência política e dissenso? E quem decide qual é a diferença entre o que é apenas uma opinião divergente e o que é violência política?

Não pode haver dúvida de que a Fox News é uma propagadora de violência e dissenso, assim como não pode haver dúvida de que um veículo que emprega Alexandre Garcia e Caio Coppola não pode alegar compromisso com o jornalismo por mais que também empregue dezenas de jornalistas sérios, capazes e competentes. Mas há numerosos casos em que a linha não é clara.

Falamos há algumas semanas nesta coluna sobre a campanha para se cancelar assinaturas de jornais que não cobriram as manifestações anti-Bolsonaro em maio — incidentalmente: tanto Globo, com bastante destaque, como Estadão, envergonhadamente, deram o devido destaque às novas manifestações neste sábado (19). Até que ponto teria sido legítimo pressionar marcas a não mais anunciarem nos dois jornalões por causa disto?

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O problema deixa de ser simples na medida em que uma nova geração de consumidores ativistas de mídia parece não enxergar nenhum tipo de meio-termo ou compromisso entre visões diferentes. Há duas semanas, por exemplo, a escritora Chimamanda Ngozi Adichie, uma das mais importantes vozes negras na cultura do planeta, foi pesadamente criticada por ter dito que uma mulher trans, que passou boa parte da juventude e dos anos formativos sendo homem, não pode alegar a mesma experiência que uma mulher que nasceu mulher. Adichie não disse em nenhum momento que a mulher que nasceu homem não poderia se tornar mulher, nem tampouco desvalorizou a experiência desta mulher, apenas disse que ela era diferente da de outras mulheres. Foi o suficiente para que uma leva de ativistas considerasse que ela devia ser “cancelada”.

O novo ativismo entendeu há tempos que o que cala as vozes que são contra os interesses da sociedade é a interrupção do fluxo financeiro, e o melhor exemplo disso é o perfil Sleeping Giants, que constrange marcas a deixar de apoiar personalidades ou veículos racistas ou negacionistas. O risco de delegar ao ativismo a função de “policiar” a mídia, entretanto, é que isto só acentua as divisões na sociedade.

É importante que vozes dissonantes tenham espaço e possam ser ouvidas. O problema é quando estas vozes amplificam desproporcionalmente um só tipo de discurso, ou, pior, quando amplificam mentiras e ódio. Se não há uma maneira clara de impedir isto, precisa haver, e é a sociedade como um todo que deve prover isso — a Inglaterra, por exemplo, tem o Ofcom, que em tese faz este papel.

É uma discussão que só aparece porque hoje os consumidores de mídia têm acesso a amplificadores de suas vozes por meio das redes sociais que permitem a eles concorrer em alcance com os próprios meios que consomem. É uma situação nova, sobre a qual precisamos conversar e que ainda estamos no meio do caminho de entender.

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A dica desta semana, surrupiada da Margem (newsletter do Thiago Ney já recomendada aqui) é um perfil de J. Kenji López-Alt, um cara que estuda e escreve sobre comida de um jeito original. Lopez-Alt é o cara que escreveu esse artigo aqui no qual, entre outras coisas, arremessou uma panela pesada em cima de hambúrgueres salgados em momentos diferentes do preparo pra ver qual seria a “reação” de cada um deles. Spoiler: não salgue seu hambúrguer com antecedência. O perfil está aqui.

* Caio Maia é Diretor de Redação da F451, que  publica o Gizmodo Brasil, e escreve sobre mídia.

Caio Maia

Caio Maia

Caio Maia é o publisher da F451 e do GizBr. Escreve a cada duas semanas sobre mídia, e quando os editores deixam escreve sobre outras coisas também. Passou pela Folha e depois fez Trivela, revistas ESPN e Sustenta! e uma lista longa de blogs, sites e podcasts.

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