Colunistas

A várzea, o templo espiritual do futebol brasileiro

Por que razão os clubes brasileiros ainda têm dirigentes tão despreparados que não conseguem nem mesmo aparecer em público sem dar vexame?
Imagem: André Borges/Agência Brasília

O saudoso CMTC Clube em São Paulo era o lugar onde se disputava o torneio amador mais importante do futebol paulistano, o “Desafio ao Galo”, criado em 1972. Era importante o suficiente para ter transmissão ao vivo nas TVs Record e Gazeta, nas manhãs do fim de semana. Lá, além de caneladas, frangos incríveis e defesas tipicamente brasileiras (onde o importante é o gol, mesmo que o do adversário), você também podia ver, eventualmente, os dirigentes amadores batendo boca ou até trocarem empurrões e sabe-se lá, uma bofetada perdida. Mais de 50 anos depois, parece que dirigentes que gerenciam orçamentos próximos ao bilhão de reais, tem um grau de amadorismo similar ao da finada competição.

As últimas semanas tiveram um surreal nível de amadorismo por parte de protagonistas que não entram em campo. Exatamente tentando superar a própria irrelevância, demonstraram um despreparo tamanho que até a mídia esportiva brasileira, que está acostumada ao ambiente do futebol de pelada, se surpreendeu. O episódio de Palmeiras e São Paulo trocarem proibições ao rival nos jogos nos seus estádios, a sensação total foi sempre a mesma: a de que o futebol no país gera bilhões, mas permanece a mesma várzea das manhãs do CMTC Clube.

Como é possível que um clube do tamanho do Corinthians tenha na direção um diretor que ataca a presidente do Palmeiras que, por sua vez, entra num bate-boca público com um dirigente são-paulino, e os dois clubes impeçam acesso a funcionários do rival quando jogando em casa? Crianças com a idade provável dos netos dos envolvidos teriam sido mais maduros depois de jogar bola na escola. Entre Gobbis, Leilas, Belmontes e Casares, os nomes na verdade pouco importam, porque o amadorismo que comanda o futebol no país é eterno, pouco importa o clube ou o ano.

Me lembro da surpresa que o economista Luiz Gonzaga Belluzzo revelou quando se tornou presidente do Verdão, 15 anos atrás. “O Palmeiras tem um orçamento de mais de R$300 milhões de reais, mas não tem nenhum dirigente remunerado”, disse, à época. A sorte ou azar de se ter um dirigente um pouco mais esperto (e honesto) define as fases de glória dos clubes no Brasil. Por que razão você não se lembra do dono do Manchester United na beira do gramado xingando o técnico oponente? Ou um diretor executivo do Bayern dando vexame bêbado socando o pau em algum rival randômico? Por uma razão simples: o futebol nas maiores ligas do mundo é profissional. Baixaria significa perder contratos porque nenhum anunciante quer sua marca viralizando na Internet por conta de um diretor amador desgovernado.

O nível de profissionalismo de uma indústria qualquer se mede pelo grau de especialização médio exigido pelo mercado para se contratar naquela indústria. No mercado financeiro, legal ou de engenharia, por exemplo, profissionais que não sejam altamente treinados e com experiência comprovada, jamais dirigirão um grande fundo. Em qualquer ramo da sociedade, quanto maior o dinheiro envolvido, menos Gobbis, Leilas e Casares. Contratos de patrocínio não são acertados em jantares da amigos, mas por times super-treinados para isso. A Premier League não é o melhor campeonato do mundo por fantasias do tipo tradição, “time grande” ou qualquer outra bobagem – é só uma questão de grana. Os melhores advogados do mundo estão em Londres e Nova York (e agora cada vez mais também na China), assim como os melhores administradores, engenheiros e cientistas. “Follow the Money”, só não funciona quando projetos sem noção como o futebol na China ou na Arábia Saudita torram dinheiro infinito de origem desconhecida. Mas isso nunca dura. No Brasil, o dinheiro segue aumentando, mas a escolha dos dirigentes e presidentes por conselheiros que literalmente não têm o que fazer garante que a várzea jamais nos deixará.

Mas o maior problema que o comportamento infantil e amador do perfil padrão do dirigente brasileiro (homem, branco, rico numa outra área comercial que não o futebol e com tempo suficiente para poder ficar exibindo a cara em vestiários e zonas mistas) é a irresponsabilidade. Eles não se dão conta da tensão que geram entre as torcidas dos clubes que eles dirigem porque são ricos ou bem-nascidos. Torcedores de São Paulo e Palmeiras têm uma razão estúpida a mais para a próxima vez que se encontrarem, trocarem socos ou coisa pior. As Leilas e os Casares não têm preparo para o posto que têm. Não estudaram para isso, não fizeram carreira trabalhando nessa indústria e quando acertam, é porque deram ouvidos a algum funcionário competente que pode ser o diretor financeiro ou o técnico. Charles De Gaulle, estadista francês não disse que o Brasil não é um país sério (apesar da lenda urbana dizer o contrário). Agora, se ele acompanhasse o futebol brasileiro, talvez pensasse duas vezes sobre o assunto. Da várzea viemos, à várzea voltamos.

Point Blank

Patriotismo I Não falta gente determinada a dizer que o futebol brasileiro não é pior do que as grandes ligas da Europa e que pensar o contrário é complexo de “colonizado”. Cara-pálida: também os melhores advogados, financistas, médicos, ginastas e nadadores são radicados no Brasil?

Patriotismo II Tom Jobim, que disse que “O Brasil não é para principiantes” supostamente teria dito sobre De Gaulle [e a frase de que o Brasil não é um país sério]: “Todo mundo já sabia”.

Tamanho profissional Um clube grande sem sócios, sede social ou nenhum outro penduricalho tem mais de mil empregados. O Manchester United, por exemplo, tem 1112 (junho de 2023). Não há conselheiros vitalícios com expertise zero, não tem diretor de piscinas ou campo de bocha.

Por outro lado…os clubes na Itália e Espanha têm estruturas menos profissionais do que os de Alemanha e Inglaterra. Na Série A e na Liga espanhola, reminiscências de clubes sociais ainda existem (mas os departamentos de futebol que não purgaram seus desocupados profissionais perderam o brilho de outros tempos).

Por que NY e Londres? Nova York e Londres têm sua força financeira determinada por uma coisa básica: bolsas de valores. Apesar das bolsas não gerenciarem necessariamente nas cidades, elas acabam movimentando muito mais dinheiro à sua volta. Frankfurt, na Alemanha, é uma exceção. O Eintracht jamais foi dominante. A cidade, porém, frequentemente tem a maior renda per capita do país. NY só é a capital global no wishful thinking dos locais.

Cassiano Gobbet

Cassiano Gobbet

Jornalista, vive na trilogia futebol, tecnologia e (anti) desinformação. Criador da Trivela, ex-BBC, Yahoo e freelancer em três continentes. Você o encontra no Twitter, Bluesky ou por aí.

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