As histórias de terror do Amazon Mechanical Turk

O Gizmodo realizou uma pesquisa na plataforma Amazon Mechanical Turk, utilizada para o treinamento de inteligências artificiais, e descobriu algumas histórias tristes desses trabalhadores.
Ilustração: Angelica Alzona/Gizmodo

Trabalhadores do Mechanical Turk (também abreviado como mTurk), a plataforma de micro-tarefas sob demanda da Amazon, dizem ter se deparado com corpos mutilados, vídeos de cirurgias mal feitas, e o que parecia ser pornografia infantil. Eles relataram ainda que algumas solicitações de trabalho envolvia transcrever números de cartão de Segurança Social (equivalente ao CPF) e outros dados pessoais de terceiros.

Às vezes seus chefes temporários, “solicitantes” na linguagem da Amazon, supostamente pediam que os “funcionários” enviassem de forma anônima fotos de suas roupas íntimas, tirassem fotos de seus pés, ou até mesmo de seus genitais. Muitos dizem que foram pagos para recontar casos traumáticos em suas vidas – diagnóstico de câncer, depressão grave ou a morte de um ente – geralmente por menos de US$ 1.

Essas são algumas das 1.100 respostas que duas pesquisas que o Gizmodo fez recentemente aos usuários do Amazon Mechanical Turk pedindo para que contassem suas experiências usando a plataforma. Ao contrário das dificuldades que trabalhadores dos estoques da Amazon passam, que foram bem documentadas, as experiências dos trabalhadores do mTurk são muito menos visíveis.

Contar as histórias dessa força de trabalho discreta e praticamente anônima pode ser difícil, e é por isso que o Gizmodo recorreu à própria plataforma.

“Alguém me pagou uns 50 centavos de dólar para recordar a memória mais dolorosa da minha vida, fiquei mal o dia todo.”

A primeira pesquisa, realizada no mTurk em dezembro, perguntou aos trabalhadores (também conhecidos como turkers) especificamente por suas piores e mais estranhas experiências na plataforma. A segunda pesquisa, que fizemos no início de janeiro, perguntou de forma mais geral sobre a experiência deles trabalhando no Mechanical Turk, positiva e/ou negativa. No total, o Gizmodo gastou um pouco mais de US$ 500 nas duas pesquisas.

Incluímos opções de contato em nossas pesquisas para que qualquer turker nos procurasse fora da plataforma, mas nenhum o fez. E os termos de serviço do Mechanical Turk nos proíbe, compreensivelmente, de pedir informações pessoais dessas pessoas. Desse modo, não conseguimos dar seguimento na apuração de cada resposta.

No entanto, os amplos pontos em comum entre as histórias e a amplitude das experiências pintam um quadro raro, ainda que incompleto, da vida dentro deste ecossistema de trabalho online de salários baixos e condições precárias.

No geral, o Mechanical Turk é um marketplace para “micro-tarefas” tediosas que os computadores têm dificuldade em completar, como classificar imagens ou treinar inteligências artificiais usadas para moderar conteúdo na internet. Como a plataforma oferece acesso a um grande número de trabalhadores a baixo custo, o mTurk é frequentemente atraente para acadêmicos e organizações de pesquisa sem fins lucrativos que operam com um orçamento baixo ou grandes empresas de tecnologia que recorrem à plataforma para treinar suas ferramentas de moderação.

A premissa é simples: um solicitante coloca uma tarefa, conhecida como HIT (Human Intelligence Task), no mTurk e estabelece um preço de no mínimo US$ 0,01 por micro-tarefa. Os trabalhadores podem escolher completar as tarefas que acham que valem o seu tempo e trabalho. Tanto os trabalhadores como os solicitantes são tecnicamente clientes da Amazon, que cobra uma fatia para cada tarefa.

As respostas às pesquisas do Gizmodo pintam um quadro sobre a realidade de viver com esse tipo de trabalho. Por um lado, turkers descrevem uma plataforma na qual os trabalhadores parecem não ter nenhuma maneira de reclamar sobre pagamentos, erros técnicos ou abusos gerais nas mãos dos patrões temporários. Segundo eles, a Amazon frequentemente ignora seus contatos.

No entanto, um grande número de trabalhadores diz serem gratos pelo trabalho e flexibilidade que a plataforma lhes proporciona em uma economia precária.

De acordo com o serviço de análise Similar Web, o site do Mechanical Turk teve quase 540 mil visitantes únicos em dezembro, o que nos dá uma noção de quantas pessoas potencialmente procuram trabalho na plataforma. E, como você pode imaginar, essas pessoas se voltam para o Mechanical Turk por uma variedade de razões, como nossas pesquisas revelaram.

Embora a maioria dos entrevistados não tenha explicado o motivo pelo qual começaram a usar a plataforma, 10% mencionaram que usam o mTurk para complementar sua renda de outro emprego em tempo integral ou parcial. Outros 5% mencionaram que começaram a usar o Mechanical Turk depois de terem sido demitidos de outro emprego. E 4% disseram que têm uma condição médica que os impede de ter um emprego em tempo integral.

“Adoro trabalhar no mturk…”, escreveu uma pessoa, “…sou deficiente, por isso o mturk me devolveu a auto-confiança, e não dependo mais da minha filha para cada coisinha agora, consegui comprar os presentes de Natal dos meus netos.”

Outro trabalhador disse: “Não consegui manter um emprego tradicional devido à minha saúde, mas devido a circunstâncias atenuantes, não me qualifico para cotas de deficiência. Por isso, quando descobri o Mechanical Turk, foi uma dádiva de Deus. O Mechanical Turk permite que eu possa trabalhar dentro das minhas limitações, o que está realmente ajudando a conseguir minha confiança de volta. Eu sei que não estou ganhando um salário que se possa viver fazendo isso, mas tudo bem. É muito melhor do que nada.”

Para aqueles que buscam algum dinheiro extra, a plataforma parece ser um sucesso. “Minha experiência em geral tem sido bastante positiva”, disse outro participante da pesquisa. “Trabalho em tempo integral como professor, por isso faço pesquisas por dinheiro extra, mas isso nem me garante muita grana, nem me faz perder nada. Tenho conhecimentos técnicos e não estou desesperado, por isso não faço trabalho em lote por centavos”.

Outro participante, que descreveu sua experiência mTurk como “principalmente positiva”, disse que vê o trabalho como um “bico” que “paga pela minha comida, gasolina e dinheiro para pequenas coisas toda semana, o que me permite poupar mais dinheiro do meu trabalho regular em tempo integral”.

Em uma pesquisa, 38% dos entrevistados disseram gastar bastante da plataforma. “Eu amo o Amazon Mechanical Turk. Trabalho com o mTurk há cerca de 5 anos”, escreveu um participante. “Minha experiência positiva é trabalhar em casa de pijama e completar o HITs sempre que eu quiser. Sou capaz de fazer uma renda mais decente agora do que quando eu comecei”.

Muitos dos turkers que disseram usar a plataforma como uma forma de trabalho em tempo integral, porém, expressaram uma sensação de desesperança e desmoralização, e o pagamento insuficiente foi uma queixa comum entre os entrevistados da nossa pesquisa.

“Sou deficiente e tenho dificuldade em encontrar ou manter outro trabalho, por isso, na maior parte das vezes, é tudo o que tenho para sobreviver, e não é suficiente”, disse um deles.

Eles acrescentaram que, durante o período de festas de final de ano, se sentiram “sortudos por receber US$ 5 por dia” e tiveram que “recorrer aos amigos para pagar o aluguel”.

Alguns disseram que a plataforma “explora” dizendo que “plataformas como essa, existem para manipular pessoas que não têm outra alternativa… É deprimente, e faz com que seja difícil sentir que vale a pena levantar de manhã”.

“[…] Não dependo mais da minha filha para cada coisinha agora, consegui comprar os presentes de Natal dos meus netos.”

Pior do que ser mal pago é não receber pagamento algum. Centenas de entrevistados relataram pelo menos um caso de não terem sido pagos pelo seu trabalho.

Com base nas respostas às nossas pesquisas, isso geralmente ocorre de três maneiras: rejeições injustas, negligência, ou questões técnicas.

As rejeições injustas, que 14% dos entrevistados relataram, ocorrem quando o solicitante rejeita o trabalho de um trabalhador, sem justificativas. Quando um HIT é concluído por um turker, o solicitante pode aprovar ou rejeitar o que o trabalhador apresentou; como diz de forma sucinta a Documentação do Amazon Mechanical Turk, “quando você aprova um trabalho, o trabalhador é pago; quando você rejeita um trabalho, o trabalhador não é pago”.

Como um solicitante pode “aprovar resultados individualmente ou de uma só vez”, como explica a Amazon, turkers dizem que é possível que os solicitantes rejeitem um trabalho depois de a maior parte dele ter sido completado e, assim, não pagam nada aos trabalhadores. Além disso, os solicitantes continuam tendo acesso aos dados parcialmente completados.

A Amazon, por sua vez, recebe sua taxa no momento em que um trabalho entra em funcionamento na plataforma.

Vários entrevistados mencionaram ter completado centenas de HITs para um solicitante, investindo horas de seu tempo, apenas para que o solicitante rejeitasse em massa todo o trabalho.

“Os trabalhadores não têm direito de apelar de rejeições, e os solicitantes podem rejeitar o que quiserem”, alegou um dos usuários. “Isto afetou negativamente a minha taxa de aprovação, e conseguir trabalhos nesta plataforma depende de uma taxa elevada”.

Um trabalhador teve 200 dos seus HITs rejeitados sem nenhuma razão e “isso me deixou sem uma taxa de aprovação suficiente. […] É imperdoável tratar os trabalhadores assim.”

Às vezes, trabalhadores não são pagos por negligência do solicitando. Como muitos pesquisadores acadêmicos preferem realizar pesquisas usando plataformas como Qualtrics ou Survey Monkey, a Amazon oferece HITs com links para sites externos. No entanto, para que os respondentes sejam pagos, a plataforma precisa combinar as respostas das pesquisas em sites externos com os IDs dos trabalhadores do mTurk, para que eles obtenham os créditos pela conclusão do trabalho.

Isso normalmente é feito com um código de conclusão da pesquisa, que o trabalhador insere na plataforma da Amazon assim que terminar a pesquisa.

O problema é que 20% dos entrevistados relataram incidentes em que, após passar horas em respondendo pesquisas, não foram pagos devido ao fato de não terem recebido nenhum código no final. Como um entrevistado nos disse: “Quanto mais longa a pesquisa, pior. Eles também recebem todas as informações que queriam sem pagar e eu perco meu tempo e tenho meu trabalho roubado de mim. A Amazon não deveria deixar que isso acontecesse.”

Muitos turkers alegam que tanto as rejeições em massa como esse tipo de negligência dos requisitantes são esquemas que permitem àqueles que publicam os HITs capitalizar os dados gratuitos sem sequer pagar ao trabalhador a remuneração que muitas vezes já é pequena.

A Amazon poderia evitar esses problemas ao proibir que o trabalho rejeitado seja utilizado pelo solicitante. Mas até agora, pelo menos, a companhia deixou a brecha em aberto.

“São as vidas das pessoas em jogo e é uma pena que uma empresa tão lucrativa nos trate assim”, disse um turker em resposta a uma das nossas pesquisas.

A Amazon não respondeu aos múltiplos pedidos de comentários do Gizmodo.

Os turkers podem “denunciar um HIT” quando acreditam que um solicitante violou as regras. Mas os trabalhadores alegam que a Amazon geralmente é lenta e não está disposta a responder quando reclamam que estão sendo enganados em relação ao pagamento.

“O que eu mais odeio nesta plataforma, de longe, é que a Amazon está completamente inacessível sobre o mau comportamento dos solicitante”, disse um entrevistado. “Não há prestação de contas na própria plataforma, a Amazon fica feliz em pegar [sua] fatia do bolo e não sujar as mãos quando os solicitantes enganam os trabalhadores honestos aqui”.

Outro turker disse não conseguir ajuda com a Amazon “eles não se importam e o solicitante está sempre certo. Esta é a minha única fonte de renda e eu [fico] horrorizado todos os dias. Eu não estou ganhando o suficiente para viver”.

Mesmo quando a plataforma funciona como deveria, os trabalhadores frequentemente ficam sujeitos a uma variedade de horrores, provavelmente devido ao fato de serem frequentemente encarregados de treinar inteligência artificial que é usada para moderar conteúdos ofensivos.

Em nossa segunda pesquisa, 11% dos entrevistados relataram que sua pior experiência na plataforma envolvia ter visto uma imagem ou vídeo extremamente explícito. Dois entrevistados afirmaram ter visto imagens de decapitações, 10 entrevistados relataram ter assistido representações de abuso de animais, 22 disseram ter visto imagens de acidentes de carro grotescos e 9 afirmaram ter visto pornografia infantil.

“A pior coisa que já vi no Mechanical Turk foi um trabalho para avaliar vídeos de cirurgia médica por um salário inferior ao mínimo”, afirmou um entrevistado.

“Eu tive que olhar para os rostos das pessoas que atiraram na cabeça tentando cometer suicídio, e que sobreviveram. Estavam irreconhecíveis como humanos. […] Eu nunca vou esquecer esses rostos. Foi horrível e me deixou mal”, disse outro turker. “Também tive HITs com imagens de algo parecia ser pornografia infantil, espero que as pessoas envolvidas sejam maiores de idade. Não faço a menor ideia.”

A Política de Uso do Mechanical Turk, naturalmente, proíbe estritamente a transmissão de pornografia infantil ou qualquer coisa que represente atos sexuais não consensuais. O conteúdo adulto é permitido desde que o título inclua: “(AVISO: Este HIT pode conter conteúdo adulto. O critério do trabalhador é aconselhado.” No entanto, um entrevistado disse: “Não houve aviso de que eu teria de olhar para imagens sensíveis, e o trabalho pagava US$ 0,25.”

Apesar de os solicitantes confiarem nos trabalhadores da mTurk para treinar ferramentas de moderação de conteúdo, a Amazon parece estar tendo dificuldade em moderar sua própria plataforma.

Dezenas de entrevistados relataram casos de HITs que pareciam ser golpes, violações de privacidade e outras violações da Política de Uso do Mechanical Turk.

Embora a política declare claramente que um usuário “não pode usar, ou incentivar outros a usar, o mTurk para qualquer atividade ilegal, prejudicial, fraudulenta, infratora ou censurável”, os entrevistados detalharam vários exemplos de atividade que, em conjunto, violaria cada um dos 18 princípios citados pela Amazon em sua própria Política de Uso.

Por exemplo, enquanto a política proíbe os solicitantes de “coletar informações pessoalmente identificáveis”, “tentar derivar qualquer informação pessoalmente identificável sobre trabalhadores”, ou “colocar HITs que contenham informações pessoais de terceiros”, dezenas de pessoas relataram ter sido solicitadas a enviar suas próprias informações pessoais ou transcrever dados íntimos de outras pessoas.

De acordo com um entrevistado, “eu vi um HIT que mostrava as informações de identificação pessoal de clientes de uma concessionária de carros”, incluindo “número do Seguro Social [equivalente ao CPF] , endereço residencial, e números de cartão de crédito”.

A Amazon possibilita que turkers entrem em contato a empresa para denunciar supostas violações de suas regras, e não ficou claro, a partir das respostas às nossas pesquisas, se os trabalhadores fizeram isso em cada um dos casos que eles detalharam para o Gizmodo.

“A Amazon não deveria deixar que isso acontecesse.”

Embora as definições de “prejudicial” e “censurável” sejam subjetivas, dezenas de entrevistados escreveram sobre experiências bizarras em que foram solicitados informações pessoais para fins questionáveis. Quatro turkers disseram ao Gizmodo que viram um HIT em que era preciso fazer desenhos de seus genitais por razões desconhecidas, e mais de uma dúzia deles afirmaram ter sido solicitados a tirar fotografias de seus pés com um propósito não revelado.

Entrevistados contaram que estavam trabalhando para um solicitante que queria “muitas imagens de pés em diferentes posições com meias e sem meias”. Como o solicitante supostamente nunca pagou, nunca respondeu aos questionamentos dos trabalhadores, mas mesmo assim recebeu as imagens antes de rejeitar o trabalho, eles concluíram que o HIT era provavelmente um golpe. “Mas eu sempre me pergunto o que aconteceu a todas aquelas imagens de pés que ele teve acesso.”

Categorizar vídeos ou imagens explícitas pode ser traumático, mas muitos entrevistados disseram que completar pesquisas acadêmicas pode ser ainda pior. De acordo com uma pesquisa do Pew Research Center de 2016, mais de 800 estudos – desde pesquisa médica até de ciência social – foram publicados usando dados obtidos via mTurk, somente em 2015.

De fato, o tráfego web que sai do Mechanical Turk para sites externos de pesquisas como o Qualtrics indica que, nos últimos seis meses, a plataforma teve tarefas de dezenas de universidades, incluindo a New York University, Columbia, Cornell, Stanford e Yale.

Por mais inofensiva uma pesquisa acadêmica possa parecer, 12% dos entrevistados alegaram que suas piores ou mais estranhas experiências no Mechanical Turk estava relacionada ao que eles descreveram como solicitações desconfortáveis de dados pessoais em que o trabalhador relatou se sentir emocionalmente traumatizado por uma pesquisa acadêmica.

Um turker alegou que depois de ter que preencher uma pesquisa relacionada com suicídio, ele teve “sentimentos intensamente negativos”, apesar de ter passado 10 anos desde a última vez que se sentiu deprimido, enquanto outro trabalhar disse “foi às lágrimas” relembrando o diagnóstico de câncer de um ente querido.

“Alguém me pagou uns US$ 0,50 para recordar a memória mais dolorosa da minha vida”, recordou outro entrevistado, “Fiquei mal o dia inteiro.”

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