MTurk: quem são e o que fazem os brasileiros que estão na plataforma de “bicos” da Amazon

O treinamento de inteligências artificiais muitas vezes é feito por humanos, em plataformas como o MTurk, da Amazon. Trabalho precarizado e gambiarras resumem esse tipo de trabalho, mas é alternativa à desalentados.
Imagem: Unsplash

Para cada tarefa automatizada com o uso de inteligências artificiais (IA) é preciso de bancos de dados robustos e, em alguns casos, bastante treinamento humano. Ensinar um algoritmo a diferenciar um cachorro de um gato, por exemplo, pode demandar algumas horas de trabalho humano classificando cada uma dessas fotos. Parte desse treinamento pode ser contratado por empresas e pesquisadores em plataformas como o Amazon Mechanical Turk, também conhecido como MTurk.

O MTurk funciona como um marketplace (site como o Mercado Livre, por exemplo), em que são publicadas diversas tarefas oferecendo um determinado valor. Geralmente, são trabalhos tediosos com “micro-tarefas” que computadores teriam dificuldade de fazerem sozinhos inicialmente. Além do exemplo de classificação de imagens dado acima, algumas iniciativas contratam para moderar conteúdo – quase sempre para treinar uma IA que vai fazer tudo sozinha posteriormente.

Embora seja nativa dos Estados Unidos e com a maioria dos trabalhadores composta por norte-americanos, muitos brasileiros em busca de algum dinheiro viram no MTurk uma oportunidade para não ficarem parados ou complementar a renda. Foi o que descobriu uma pesquisa realizada por um grupo de pesquisadores do INOVA USP, Centro de Inovação da Escola Politécnica da USP.

Em um artigo entitulado “The Brazilian Workers in Amazon Mechanical Turk: Dreams and realities of ghost workers” (Os trabalhadores brasileiros no Amazon Mechanical Turk: sonhos e realidades de trabalhadores fantasmas, em tradução livre) que deve ser publicado no final do primeiro semestre de 2020, os pesquisadores Bruno Moreschi, Gabriel Pereira e Gustavo Aires com a orientação do professor Fabio Cozman, fizeram um perfil dos brasileiros que estão na plataforma.

O Gizmodo Brasil teve acesso a trechos do artigo e conversou com Bruno Moreschi, que é artista e fez residência no INOVA USP. “Meu trabalho envolve a realização de experiências na tecnologia para revelar processos ocultos. Quando eu entrei no INOVA USP percebi era recorrente o uso dos turkers para melhorar e treinar sistemas de IA. É comum em qualquer centro de tecnologia no mundo inteiro”, comenta o pesquisador.

“Queria entender um pouco melhor essas camadas humanas de trabalho precarizado que de certa forma possibilita o desenvolvimento de tecnologias avançadas. Aqui no InovaUSP estão sendo desenvolvidos muitos apps que são formatos em português. E a gente começou a ficar em dúvida sobre quantos brasileiros faziam parte da comunidade da Amazon – até mesmo para nos ajudar a entender a dinâmica de treinamento de máquina sob o ponto de vista brasileiro. Foi por esses motivos que comecei a pesquisa”, completa.

Justamente por serem consideradas tarefas pequenas e relativamente fáceis, a remuneração é baixíssima – um ótimo negócio, seja para empresas com muita grana para investir ou pesquisadores acadêmicos com baixo orçamento.

Como funciona o Amazon Mechanical Turk

A plataforma funciona como um intermediário entre uma entidade em busca de um trabalho e pessoas que estão dispostas a completar as tarefas, que são chamadas de HIT (Human Intelligence Task, ou Tarefa de Inteligência Humana, em tradução livre).

A companhia define um preço para a tarefa, de no mínimo um centavo de dólar. Já os trabalhadores podem escolher quantas tarefas quiserem, uma por vez.

Página inicial do Amazon Mechanical Turk

Página do Amazon Mechanical Turk destaca acesso a “força de trabalho global, sob demanda, disponível 24 horas, 7 dias por semana”. Imagem: Captura de tela/Gizmodo Brasil

Como se trata de um intermediário, a Amazon, dona da plataforma, leva uma fatia de cada trabalho publicado. Uma fatia bem gorda, inclusive: 20% de cada remuneração vai para a empresa, mas se a tarefa tiver mais de 10 passos ou atribuições, o corte passa para 40%.

O Mechanical Turk foi criado para resolver um problema interno da Amazon. Em 2001, tentando eliminar produtos duplicados publicados em seu site, a companhia registrou uma patente para “um sistema computacional híbrido entre máquina/humano que envolveria vantajosamente humanos para ajudar um computador a resolver tarefas particulares”.

O mTurk foi aberto ao público em 2005 com Peter Cohen, um executivo da companhia, afirmando que “as forças do mercado iriam definir o quão efetivo [a plataforma] seria para quem precisasse do serviço e o quão lucrativo seria para os trabalhadores.”

Brasileiros dependem de gambiarra para receber a grana

Reportagens nos Estados Unidos já apontaram a precariedade desse tipo de trabalho que não é regulamentado, uma vez que faz parte da chamada “gig economy” – pense nos motoristas do Uber, entregadores do iFood ou outros serviços em que os prestadores fazem um “bico” e não têm vínculo empregatício com ninguém. Os brasileiros, por sua vez, são ainda mais precarizados uma vez que a plataforma não faz pagamentos para contas bancárias de fora dos EUA – para receber a grana adquirida no mTurk, os trabalhadores brasileiros recebem gift cards (cartões de presente) que são válidos apenas na Amazon americana.

Para contornar isso, a pesquisa descobriu que a maioria deles leiloam os gift cards em sites como o eBay – desta forma, incidem ainda mais taxas de outras plataformas. Primeiro porque o processo de leilão é volátil e, dependendo da oferta de gift cards, os preços abaixam muito. No final das contas há ainda 6% de desconto do PayPal, plataforma utilizada para fazer a transferência do eBay para contas bancárias. Isso significa que o dinheiro recebido pelos brasileiros é bem menor do que outros turkers ao redor do mundo – além dos americanos, há muitos indianos na plataforma.

A pesquisa brasileira não traçou uma média de renda mensal de um turker assíduo, que trabalha todos os dias na plataforma. Uma estimativa como essa, inclusive, é muito difícil de se fazer – um levantamento de 2016 do Pew Research Center com 3 mil americanos revelou que mais da metade disse ter ganhado menos que US$ 5 (R$ 21) por hora trabalhada. Uma outra pesquisa, feita em 2018, mostra que o salário médio por hora trabalhada na plataforma é de US$ 1,77 (7,47) – apenas 4% dos turkers conseguiram ganhar mais do que o salário mínimo federal dos EUA, que é de US$ 7,25 (R$ 30,60) por hora.

Protestantes empilham caixas da Amazon com logo "triste"Imagem: Drew Angerer/Getty

No Brasil o salário mínimo em 2020 está em R$ 1.039 (US$ 246,20), ou R$ 4,72 (US$ 1,12) por hora. A legislação brasileira permite agora a contratação por hora, que é calculada dividido o mínimo mensal por 220 horas – que é o máximo de horas de trabalho por semana definido pela Constituição (44 horas) e seis dias de trabalho por semana (já que a lei determina no mínimo um dia de descanso por semana).

Se um brasileiro conseguisse ganhar a média apontada pela pesquisa do Pew Research Center (US$ 1,77 por hora) e trabalhasse 220 horas por mês, ele conseguiria juntar US$ 389,40 (R$ 1.642) em gift cards da Amazon americana – ou seja, esse valor poderia ser reduzido após os leilões e taxas bancárias.

Um turker brasileiro que conseguisse entrar nos 4% apontado pela consultoria americana, ganhando US$ 7,25 por hora, conseguiria juntar US$ 1.595 (R$ 6.720) nesse mesmo cenário.

Método da pesquisa

Para traçar o perfil dos brasileiros na plataforma de turkers da Amazon, os pesquisadores da Escola Politécnica da USP publicaram uma tarefa na plataforma: um questionário com 72 perguntas, algumas objetivas e outras mais subjetivas, direcionado aos brasileiros. Moreschi detalha que a tarefa remunerava US$ 4,50 (R$ 18,99 na cotação atual) e levava cerca de 15 minutos para ser completada – um valor bem mais alto do que a maioria dos outros trabalhos disponíveis e mais alto do que o salário mínimo pago nos EUA e no Brasil.

O método era promissor, mas americanos e indianos começaram a usar o Google Tradutor para poder responder às perguntas. Apesar de existir uma opção para restringir a localização das pessoas que podem aceitar uma tarefa, os pesquisadores não queriam deixar de fora brasileiros que moram fora ou que pudessem estar usando uma VPN para driblar esses filtros de localização.

No final das contas, uma das pessoas que respondeu ao questionário disse que conhecia vários outros turkers brasileiros que mantinham contato por meio de um grupo no WhatsApp.

“Nos deram acesso ao grupo e os participantes responderam ao questionário – usamos o ID de cada um deles no mTurk para remunerá-los”, explica Moreschi. No total, 149 turkers responderam a pesquisa, mas é difícil dizer se o número real de trabalhadores brasileiros é muito maior do que isso.

O grupo é bastante movimentado, segundo a pesquisa, com cerca de 1,5 mil mensagens trocadas diariamente, incluindo texto, imagens, áudios, figurinhas e memes. O objetivo é, principalmente, ajudar uns aos outros: o chat serve para tirar dúvidas sobre alguns trabalhos, pedir conselhos sobre tarefas que foram estornadas e zoar ou reclamar de trabalhos esquisitos.

De acordo com o site de análise Similar Web, o portal mTurk da Amazon teve 539 mil visitantes únicos em dezembro, o que nos permite ter uma noção de quantas pessoas conhecem a plataforma. O Brasil é o 3º país que mais acessa, depois dos EUA e Índia, representando 2,49% do tráfego – fazendo uma conta rápida, seriam cerca de 13 mil visitantes únicos brasileiros na plataforma.

Perfil dos turkers brasileiros

A pesquisa conseguiu traçar um perfil dos brasileiros que trabalham na Amazon Mechanical Turk: a maioria são homens (66,4%), brancos (64%) e tem, em média, 29 anos. Os pardos representam 21,5% dos turkers que responderam à pesquisa, e os negros 12,7%. A maioria mora no sudeste do Brasil.

Logo da AmazonImagem: David Ryder/Getty

Moreschi contou ao Gizmodo Brasil que o perfil de trabalhadores é variado, indo “desde pessoas que precisam do dinheiro, a outros que querem só uma grana extra para comprar algo na Amazon”. O artigo mostra, no entanto, que 43% dos entrevistados não tinham nenhum outro trabalho além desse – dentro desse grupo, 66% não teve outro emprego há pelo menos um ano.

“Esse alto número de turkers que estão desempregados há muito tempo mostra como o mTurk é uma opção para os chamados ‘desalentados’, uma massa crescente de brasileiros que, desestimulados pela contínua frustração de procurar emprego, desistem de procurar uma ocupação formal. Em maio de 2019, segundo o IBGE, os “desalentados” corresponderam a 4,9 milhões de pessoas no Brasil, a maior quantidade desde que começaram a ser rastreados em 2016″, destaca o artigo.

O pesquisador disse ainda que o número de brasileiros que estão começando a tomar conhecimento da plataforma tem crescido. “Muitos desempregados estão começando a descobrir esse trabalho e pode aumentar o número de turkers”.

As tarefas dos turkers

O tipo de inteligência artificial treinada pela plataforma mTurk é tão variada quanto qualquer um pode imaginar. A profusão de aplicações é um dos fatores que contribuem para o surgimento de tarefas bizarras, estressantes e até degradantes – o que inclui exposição a imagens violentas e pornográficas.

Ilustração de um robô Ilustração: Jim Cooke/Gizmodo

Uma das perguntas dos pesquisadores pedia para o turker descrever a tarefa mais incomum que já fizeram e as respostas foram muito variadas: analisar imagens de zebras, jogar videogame por uma hora, repetir o que a voz do Google Assistente ou Amazon Alexa dizia, assistir a vídeos e dar uma nota, identificar flores e frutas em plantas brasileiras, marcar partes do corpo de pessoas brigando, responder a verdadeiro ou falso para perguntas sobre maconha, marcar quais funcionários de uma foto estavam vestindo capacetes, fazer expressões faciais em frente à câmera do computador, tirar foto do olho de alguém, filmar 40 gestos com as mãos, dançar em frente a uma câmera, entre muitos outros.

Os pesquisadores destacaram no artigo algumas dessas respostas que indicavam trabalhos que poderiam causar danos à saúde mental dos turkers ou ferir condutas éticas. Entre elas estão: análise de imagens sexuais, moderar fotos de sites de encontros adultos, produzir vídeos entrando e saindo da casa de alguém, tirar fotos de calças, muitas vezes com ângulos que incluíssem partes íntimas, assistir vídeos pornô de até 30 minutos, jogar no celular enquanto filma o rosto, enviar fotos pessoais e até descrever imagens de pessoas mortas.

Os termos de uso da Amazon Mechanical Turk afirmam que não é permitido a transmissão de pornografia infantil ou qualquer imagem que ilustre atos de sexo não consensual. O conteúdo adulto, por sua vez, é permitido mas deve vir com um aviso claro. Uma reportagem do Gizmodo US relata o caso de um turker americano que disse que entrou numa tarefa com imagens pornográficas sem esse aviso, com uma remuneração muito baixa.

Uma das reclamações mais recorrentes entre os trabalhadores da plataforma é que o suporte dado pela Amazon é muito restrito e quase nunca resolve problemas como esse.

Uma das questões mais interessantes da pesquisa perguntou o nível de entendimento dos turkers em relação aos sistemas tecnológicos que eles estavam tentando desenvolver. Cerca de 10% disseram categoricamente que não conseguiram explicar como o seu papel de turker está associado à tecnologia. Os outros 90% responderam de forma bastante diferente, sugerindo diferentes níveis de compreensão do seu apoio aos sistemas tecnológicos. Um deles, por exemplo, se definiu como um “peão da tecnologia”.

Em uma escala de 1 (concordo totalmente) a 5 (discordo totalmente), a pesquisa perguntou o quanto os trabalhadores se sentiam responsáveis pela operação e implementação da IA no mundo – 28,9% concordam totalmente que eles são responsáveis, seguidos por 25,5% dos que concordam bastante.

Algumas respostas vieram com um tom otimista, como um turker que disse que “categoriza e ajuda máquinas de IA a examinar dados, ajudando o mundo a se tornar mais digital”. Apesar disso, são poucas as tarefas publicadas no mTurk que descrevem um objetivo com clareza e na maioria das vezes os turkers não sabem com o que estão colaborando ou o que será desenvolvido com aqueles dados ou treinamento.

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