Aplicativo do Ministério da Saúde é um teste do BuzzFeed de mau gosto
Na semana passada, o Ministério da Saúde divulgou uma nova ferramenta chamada TrateCov, que teria como objetivo ajudar os profissionais de saúde a coletar informações sobre sintomas de pacientes com COVID-19. De acordo com a descrição no site do governo, “a plataforma traz ao médico cadastrado um ponto a ponto da doença, guiado por rigorosos critérios clínicos, que ajudam a diagnosticar os pacientes com mais rapidez”.
No entanto, esses “rigorosos critérios clínicos” logo foram questionados quando alguns testes e uma análise no código fonte do aplicativo revelaram que o questionário parece mais um daqueles quizzes da internet que atribuem pontos a cada resposta que você marca e apresentam o resultado com base na soma total.
As informações solicitadas no formulário incluem os dados de identificação do paciente (nome, idade, sexo), dados clínicos (como o início dos sintomas, peso e altura), comorbidades, quantas vezes frequentou locais públicos e manifestações clínicas de COVID-19 (sintomas). De acordo com o sistema, o diagnóstico de COVID-19 é baseado em três pontuações calculadas com base nas respostas do paciente:
- Alta probabilidade de Covid-19: pontuação maior ou igual a 6
- Média probabilidade: 4 a 5
- Baixa probabilidade: 2 a 3
Porém, ao fazer alguns testes, descobrimos que a partir de quatro pontos já é recomendado o “tratamento precoce”, que não tem eficácia cientificamente comprovada e que, hoje, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, nega ter recomendado. Essa pontuação corresponde, por exemplo, a pacientes que tiveram contato domiciliar com caso confirmado de COVID-19, mas não apresentam nenhuma comorbidade ou sintomas.
A discussão começou quando Leandro Demori, do Intercept Brasil, havia notado que o sistema receitava o “tratamento precoce”. O jornalista independente Rodrigo Menegat observou, pelo código fonte, receitava medicamentos como cloroquina em diversas situações.
Na sequência, o desenvolvedor web Joselito Júnior compartilhou um print no Twitter mostrando o código. Ele também fez parte do grupo que conseguiu obter os dados de casos e óbitos por Covid-19 de volta quando o Ministério da Saúde retirou-os do ar no ano passado.
vedo o código fonte do “TrateCov”: https://t.co/lyNbW5Dmje está claro que cloroquina e derivados sempre vao aparecer se houver a possibilidade de seleção de tratamento precoce, independente dos dados anteriores
faça essa informação chegar no seu jornalista favorito pic.twitter.com/mQHYLHmuoG
— joseli.to (@breakzplatform) January 20, 2021
Em declaração ao Gizmodo Brasil, o desenvolvedor diz que um dos principais problemas do TrateCov é o fato de que “textualmente, tudo já está lá, apenas escondido. Não se trata de um formulário que faz uma requisição e analisa os dados ou algo do gênero. Ele só faz aparecer o que já estava escrito ali, mudando a dosagem usando alguns pontos”.
Flávio Oota, consultor de tecnologia do Gizmodo Brasil, confirma que o código fonte mostra os medicamentos que são exibidos por padrão na plataforma sempre que o tratamento precoce é recomendado. A partir dessas opções, o médico pode selecionar quais serão receitadas ao paciente e a dosagem de alguns deles.
Captura de tela: Flávio Oota/Gizmodo Brasil
Para verificar como a plataforma funciona, simulamos um paciente recém-nascido, sem quaisquer comorbidades ou contatos com locais públicos e pessoas com Covid-19. Informamos que os sintomas incluíam apenas tosse seca, congestão nasal e diarreia, que podem ser comuns a uma gripe. O resultado do escore de gravidade calculado pelo sistema foi de 9 pontos, e a recomendação foi “Iniciar Tratamento Precoce para Covid-19”.
Captura de tela: TrateCov/Gizmodo Brasil
Abaixo da recomendação, aparece a pergunta “Paciente receberá o tratamento precoce?”. Quando o médico seleciona “Não”, outras quatro alternativas são exibidas para que ele justifique a decisão: Recusa do paciente, Contraindicação médica, Falta de medicamentos, Outros. Ao selecionar “Sim”, a lista de opções de medicamentos apresentada é:
- Difostato de Cloroquina 500mg – 6 comprimidos. Tomar 1 comprimido de 12/12 horas no primeiro dia. Após, tomar 1 comprimido ao dia, até completar 5 dias.
- Hidroxicloroquina 200mg – 12 comprimidos. Tomar 2 comprimidos de 12/12 horas no primeiro dia. Após, tomar 2 comprimidos ao dia, até completar 5 dias.
- Ivermectina 6mg – Tomar 0 comprimidos ao dia por 5 dias.
- Azitromicina 500mg – 5 comprimidos. Tomar 1 comprimido ao dia, por 5 dias.
- Doxiciclina 100mg – 10 comprimidos. Tomar 1 comprimido 12/12 horas, por 5 dias.
- Sulfato de zinco(30mg ou 50mg) – 14 comprimidos. Tomar 1 comprimido de 12/12 horas por 7 dias.
- Dexametasona – selecionar a posologia
Fizemos outra simulação para uma pessoa de 22 anos, fumante, que frequentou o trabalho e transporte público 12 dias nas últimas semanas, teve contato com pessoas com Covid-19, e que apresentava apenas sintomas de sinusite e dor de cabeça há sete dias. No caso, o escore de gravidade foi 11 e foram recomendados os mesmos medicamentos listados para o paciente recém-nascido. A única diferença foi a Ivermectina, em que a posologia indicada foi de 5 comprimidos ao dia por 5 dias.
Por fim, simulamos um paciente de 88 anos, com diabetes e hipertensão, que não saiu de casa nas últimas semanas, mas teve contato com pessoas com Covid-19. Os sintomas incluíam febre, fadiga, fraqueza, tontura, diarreia e dor de cabeça e no corpo, além de falta de ar. O escore de gravidade foi de 37, mas a recomendação do sistema foi exatamente a mesma indicada para o recém-nascido e para o paciente de 22 anos. Novamente, a diferença foi em relação à Ivermectina – no caso do idoso, a posologia era de 4 comprimidos ao dia por 5 dias.
Captura de tela: TrateCov/Gizmodo Brasil
Conforme explica Joselito Júnior, “não importa se você é um bebê ou idoso, se tem uma comorbidade (escore 6) ou todas (escore 33). O tratamento preventivo é o mesmo. Apenas alguns dados de peso e altura são utilizados pra regular a dosagem”.
O Ministério da Saúde já havia sido alertado até mesmo pelo Twitter sobre o perigo de promover o “Kit Covid”, que inclui os medicamentos listados acima. Além de não haver nenhuma comprovação científica sobre a eficácia desses remédios no tratamento contra Covid-19, eles também podem colocar a saúde de muitos pacientes em risco. Alguns dos efeitos colaterais da hidroxicloroquina ou da cloroquina incluem, por exemplo, reações cardiovasculares, como paradas cardíacas, e alterações no sistema nervoso central, resultando em convulsões e até mesmo coma.
O TrateCov está sendo testado em Manaus, que está enfrentando um pico de mortes por Covid-19 e um colapso no sistema de saúde. Segundo o comunicado do Ministério da Saúde, 342 profissionais de saúde já foram cadastrados na plataforma e “assim que terminar o processo de cadastro e capacitação, o TrateCov entrará em ação para auxiliar os médicos de todas as unidades de saúde do município. Depois desta experiência, o aplicativo poderá ser ampliado para outras regiões do país”.