Ciência

Companhia de teatro ressalta mulheres cientistas

Websérie no YouTube e peças de teatro incluem pesquisadoras brasileiras e estrangeiras
Imagem: Ligia Jardim

Texto: Letícia Naísa/Revista Pesquisa Fapesp

Quando a bióloga e pedagoga Elaine Ferreira Machado recebeu pelo Facebook uma mensagem da atriz Thaís Medeiros, em 2019, não imaginou que se tratava de uma proposta para ver seu objeto de pesquisa ganhar vida em um palco de teatro e em um episódio de websérie no YouTube. Fazia cinco anos que Machado estudava a vida e a obra de Maria Sibylla Merian (1647-1717), uma naturalista e ilustradora científica alemã do século XVII que publicou livros sobre plantas e insetos com riqueza de detalhes científicos. A forma como arte e ciência se uniam nas pinturas foi um dos fatores que encantaram a pesquisadora, que escreveu sua dissertação sobre o potencial da obra de Merian para o ensino de ciências em escolas. Mais tarde, também atraiu as atrizes da Companhia Delas de Teatro, fundada em 2001 por Medeiros e seis amigas. Juntas, elas decidiram adaptar as histórias de Merian e de outras mulheres da ciência para os palcos e para o YouTube de uma forma que fosse acessível não só para adultos leigos em ciências biológicas, mas também para crianças.

Olho mágico é uma websérie que só nasceu por causa da pandemia de Covid-19. Inicialmente, todas as histórias haviam sido pensadas para o teatro – uma trilogia de biografias de cientistas europeias contadas pela Companhia Delas. Duas peças já tinham chegado aos palcos quando a pandemia forçou o fechamento dos teatros, em 2020. O projeto foi então parar no YouTube com um formato bem diferente, e cresceu. Com o sucesso dos primeiros vídeos, as três biografias viraram 10: três sobre europeias, quatro sobre brasileiras e três a respeito de pesquisadoras de nacionalidades diversas selecionadas por serem ecologistas. “A pesquisa surgiu no teatro e a primeira de todas, Mary Anning, foi uma inglesa porque queríamos inscrever a peça em um edital da Cultura Inglesa”, conta Medeiros. “Depois que estreamos episódios baseados na nossa pesquisa teatral, a convite do Sesc Consolação, veio a ideia de falar sobre mulheres reconhecidas por ação ambientalista, e o Itaú Cultural nos convidou para falar sobre as brasileiras”, relembra a atriz.

As atrizes Thaís Medeiros, Julia Ianina e Cecília Magalhães encenam a peça Mary e os monstros marinhos, sobre a caçadora de fósseis inglesa Mary Anning

As atrizes Thaís Medeiros, Julia Ianina e Cecília Magalhães encenam a peça Mary e os monstros marinhos, sobre a caçadora de fósseis inglesa Mary Anning. Imagem: Maria Tuca Fanchin

No universo das pesquisadoras brasileiras foram escolhidas a arqueóloga Niède Guidon, a bióloga e ativista feminista Bertha Lutz (1894-1976), a oceanógrafa Marta Vanucci (1921-2021) e a socióloga e psicanalista Virgínia Leone Bicudo (1910-2003). “Estávamos contando histórias do mundo e percebemos que as brasileiras são pouco divulgadas, então escolhemos algumas e decidimos quebrar um padrão de homenagear mulheres que já haviam morrido: abrimos a série com a Niède, que está viva”, lembra Medeiros. Além de criar e roteirizar histórias, o trabalho da Companhia Delas de Teatro também está atrelado à pesquisa. Para alguns dos episódios de Olho mágico, as atrizes buscaram a ajuda de especialistas.

Fósseis cenográficos usados em peça são verossímeis: vieram do laboratório de réplicas da USP

A websérie estreou com Caroline Herschel (1750-1848), uma astrônoma que foi a primeira mulher a ser paga como cientista na corte britânica. A história da inglesa Mary Anning (1799-1847), “a maior caçadora de fósseis do mundo”, segundo a companhia, também foi adaptada para a série a partir da peça de teatro que montaram em 2018. Ela viveu no século XIX e, aos 12 anos, descobriu o primeiro fóssil de ictiossauro, um réptil marinho de 250 milhões de anos, e dedicou a vida a descobrir outros fósseis. “A história dela parecia um conto de fadas, era muito incrível e teatral”, conta Julia Ianina, atriz e uma das fundadoras da Companhia Delas.

Tudo foi gravado individualmente com cada atriz em sua casa durante o período de isolamento mais crítico em 2020, em formato pensado para a veiculação pela internet. A websérie foi inscrita em um edital emergencial da Secretaria Municipal de Cultura. “Optamos por um modelo diferente daqueles em que as pessoas abriam a câmera e saíam contando as histórias. Era o mais simples de fazer, mas decidimos por uma produção com edição, trilha sonora e efeitos visuais”, comenta a atriz Cecília Magalhães, outra fundadora da companhia.

O formato e a linguagem são os diferenciais da websérie, que foi premiada pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) e virou objeto de análise do Grupo de Pesquisa em Arte, Ciência e Tecnologia (GPACT), de Machado, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). No artigo, os pesquisadores classificaram Olho mágico como um “theaweb”, um conceito criado pelo próprio grupo de pesquisa para uma obra feita para a internet, mas que emprega conhecimento, técnicas e cultura do teatro – a classificação de websérie só foi adotada mais tarde. Eles também consideraram o trabalho como uma obra de divulgação científica que pode ser utilizada como material didático para jovens em idade escolar. “Não tínhamos a pretensão de fazer divulgação científica, mas vimos que estávamos fazendo quando cientistas começaram a ver nossas histórias e nos procuravam para comentar”, conta Medeiros.

Personagens brasileiras da websérie Olho mágico: a socióloga e psicanalista Virgínia Leone Bicudo (1910-2003); Marta Vannucci (1921-2021), especialista em manguezais; Bertha Lutz (1894-1976), bióloga e ativista feminista; e Niède Guidon, arqueóloga

Personagens brasileiras da websérie Olho mágico: a socióloga e psicanalista Virgínia Leone Bicudo (1910-2003); Marta Vannucci (1921-2021), especialista em manguezais; Bertha Lutz (1894-1976), bióloga e ativista feminista; e Niède Guidon, arqueóloga. Imagem: Reprodução

Antes da emergência sanitária, as histórias de Maria Sibylla Merian e Mary Anning ocuparam os palcos de teatro em São Paulo. Mary e os monstros marinhos estreou em 2018 e foi premiada no 22° Cultura Inglesa Festival. Medeiros, Ianina e Cecília Magalhães fazem o papel da caçadora de fósseis, cada uma em uma fase da vida. Para dar vida à personagem, elas assistiram a aulas do paleontólogo Luiz Eduardo Anelli, da Universidade de São Paulo (USP), que depois acompanhou ensaios e revisou o conteúdo científico da peça. “Nossas escolhas são artísticas, então algumas metáforas são parte da liberdade poética, como chamar um fóssil de ‘tempo petrificado’ ou de ‘carta do passado para o futuro’”, diz Ianina. Os fósseis usados no cenário são rigorosamente verossímeis: vieram do laboratório de réplicas da USP.

Com o sucesso de Mary Anning no teatro, o grupo montou uma nova peça, inspirada em Merian. A naturalista foi uma das primeiras mulheres a estudar ciclos de vida de insetos e o processo de metamorfose de borboletas, além de ser pioneira em uma expedição científica para o Novo Mundo. Em 1699, ela viajou para o Suriname, na América do Sul, acompanhada pela filha mais nova, Dorothea Maria, para observar, coletar e registrar espécies – 132 anos antes de Charles Darwin (1809-1882). “Havia pouquíssimo sobre ela em português, toda a sua obra original é em alemão”, conta Elaine Machado. Com a ajuda de um colega fluente no idioma, ela escreveu a dissertação sobre a cientista-artista e publicou, em 2018, o artigo encontrado por Medeiros na revista científica História da Ciência e Ensino, que foi o pontapé para a montagem de Maria e os insetos. Ela atuou como consultora para a montagem da peça de teatro e pôde revisar os conceitos científicos antes da apresentação.

“Elas conseguiram transformar um artigo científico em arte, fiquei muito emocionada de ver”, diz a bióloga, que se dedica a estudar a linguagem artística sobre as ciências biológicas e o ensino da biologia no GPACT. Machado viu a estreia de Maria e os insetos na capital paulista em 2020. “Elas colocam poesia, música e trejeitos na personagem que de forma alguma desmerecem o conteúdo científico, não caem em um estereótipo sobre o conhecimento científico e sobre cientistas.”

Para Machado, é importante que a divulgação de ciência e da biografia de pesquisadores seja feita de forma mais acessível. “A linguagem da ciência é escrita para o público de pares, que consegue entender um artigo científico, mas não é acessível para pessoas leigas naquela ciência, crianças ou adolescentes”, observa. Segundo Ianina, a linguagem teatral ajuda a abordar assuntos espinhosos e complexos de um jeito mais fácil.

O grande trunfo de trabalhos como o da Companhia Delas e de outros grupos que abordam temas científicos na arte é aproximar a figura do pesquisador e da ciência de um público mais amplo. “Seja um filme, uma série ou uma peça de teatro, os atores conseguem personificar o cientista, mostrar os dilemas humanos daquela figura”, diz Daniel Moura, físico e arte-educador no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), que se dedica à criação e ao estudo do teatro científico há quase 20 anos. “Existe muita ciência na arte e vice-versa, não consigo separar tanto as coisas”, opina.

Segundo Moura, obras como as da Companhia Delas fazem parte de uma educação não formal: “Mesmo que o produtor da peça não esteja preocupado em ensinar ou educar, uma pessoa pode aprender mais com ela do que em uma sala de aula”. Por isso, o pesquisador vê muito valor na representação da diversidade dentro do teatro científico. “É uma linguagem muito rica, que pode ser trabalhada em várias dimensões e mostrar, por exemplo, que a ciência é diversa e não feita apenas por pessoas brancas e europeias.” Escritor e ator de mais de 10 peças, Moura, que é negro, já interpretou o físico Isaac Newton (1643-1727) no palco. “Um Newton negro não aconteceria no cinema, mas o teatro permite essa interpretação.”

Com Olho mágicoMaria e os insetosMary e os monstros marinhos e outras criações, a Companhia Delas espera inspirar mais meninas e mulheres a seguir carreiras tanto em áreas ainda muito mais ocupadas por homens, como a produção e o ensino de ciência, quanto nas artes, como o teatro ou o audiovisual. “Essas histórias precisam ser contadas porque são histórias de injustiça”, diz Medeiros. “Essas mulheres não tiveram reconhecimento em vida e realizaram grandes feitos no passado, viveram para a pesquisa e merecem esse espaço.” Mesmo com a websérie encerrada, a Companhia Delas continua trabalhando em prol de levar mais ciência, arte e histórias de mulheres cientistas para meninas e mulheres. O foco, agora, está nos palcos de teatro e, em breve, no formato de podcast. O canal do YouTube da companhia abriga, além da websérie premiada, outra mais recente chamada Pergunte à cientista.

Artigos científicos
MACHADO, E. F. et alO theaweb “Olho Mágico”: Potencialidades para a divulgação científica e ensino de ciências. Educação Pública – Divulgação Científica e Ensino de Ciências. On-line. mar. 2022.
MACHADO, E. F. et alMaria Sibylla Merian: Uma mulher transformando ciência em arte. História da Ciência e Ensino. On-line. 30 jun. 2018.

fique por dentro
das novidades giz Inscreva-se agora para receber em primeira mão todas as notícias sobre tecnologia, ciência e cultura, reviews e comparativos exclusivos de produtos, além de descontos imperdíveis em ofertas exclusivas