Da Austrália à Europa, passando por Ásia e Américas, um movimento começou tímido, mas ganhou força nos últimos meses: o boicote à Copa do Mundo no Catar. A escolha do país vem acumulando polêmicas e controvérsias desde 2010, quando Doha venceu a eleição da Fifa para sediar o Mundial que começa no próximo domingo (20).
As polêmicas incluem um suposto pagamento de propina para orientar a escolha da Fifa, além de críticas sobre como o país lida com direitos humanos e trabalhistas — inclusive na construção dos estádios para o torneio.
Os líderes do movimento de boicote à Copa do Catar sabem que não conseguirão impedir a realização do torneio, mas pedem que as pessoas sejam “criativas” ao criticar o país-sede.
Alguns exemplos de protesto incluem não assistir à Copa e não frequentar estabelecimentos que transmitam os jogos. Outro modelo é afirmar nas redes sociais os motivos para não compactuar com a disputa.
Várias cidades da Bélgica, Espanha e França se recusaram a exibir os jogos, enquanto atletas rejeitaram viajar ao país para acompanhar os jogos. É o caso de Philipp Lahm, ex-jogador e capitão da seleção alemã na Copa no Brasil, em 2014. Em agosto, Lahm disse que não irá ao Catar como parte da delegação oficial ou como torcedor.
A Federação de Futebol da Dinamarca também anunciou protestos. As famílias dos jogadores não acompanharão os atletas, como geralmente acontece. “Não queremos contribuir para criar lucro ao Catar”, disse o gerente da federação, Jakob Hoyer.
Além disso, a Dinamarca jogará com uniformes completamente negros em sinal de luto às vítimas das violações aos direitos humanos no país.
Mas qual é a razão para esse movimento? O que está por trás da decisão de não participar de um dos eventos mais legais da atualidade, que só acontecem a cada quatro anos? A resposta não é uma só. A seguir, detalhamos quais são.
Polêmica desde a escolha
Em 2014, uma reportagem do jornal britânico The Sunday Times apontou que o Catar pagou mais de US$ 5 milhões (quase R$ 27 milhões no câmbio atual) em propinas para garantir o apoio da Fifa à sua candidatura como país-sede do Mundial.
Os jornalistas tiveram acesso a e-mails que detalhavam os supostos pagamentos. A suspeita de que o pagamento realmente aconteceu ganhou força a partir de relatórios da Fifa, que classificaram o Catar – um país com pouca ou nenhuma tradição em futebol – como um local de “alto risco” para sediar a Copa.
O motivo: por lá o calor é intenso, com temperaturas que passam os 50ºC. Por isso, o torneio foi adiado para novembro, excepcionalmente.
Quatro anos depois, já em 2018, o mesmo jornal lançou outra investigação que acusava o Catar de realizar uma operação para disseminar propaganda contra os EUA e a Austrália, seus principais rivais na candidatura à Copa.
Tanto o Catar quanto a Fifa rejeitaram veementemente todas as acusações, mas já foi o suficiente para que as autoridades abrissem o olho sobre possíveis irregularidades no processo de escolha para a sede da Copa de 2022.
Depois, tanto o Departamento de Justiça dos EUA quanto o Ministério Público da França começaram a investigar essas alegações. Em abril de 2020, Washington afirmou que o Catar estava, sim, envolvido no suborno de delegados da Fifa para que escolhessem o país. De novo, os dois negaram.
Catar e os direitos humanos
Quando dizem que vão boicotar a Copa, os movimentos manifestam sua contrariedade ao fato de todos os países frequentarem o país para o torneio, mas fecharem os olhos para a forma como o Catar lida com os direitos humanos.
Há inúmeros relatos de violência e repressão aos direitos das mulheres, da comunidade LGBT e dos migrantes. No final de outubro, um relatório da HRW (Human Rights Watch) alertou que as forças de segurança do Catar prenderam e torturaram pessoas LGBT. A homossexualidade é ilegal no país muçulmano.
Os direitos das mulheres também são alvo frequente de críticas. O que rege no país do Golfo é a lei de tutela masculina. Ou seja, mulheres só podem casar, viajar para o exterior e obter alguns tratamentos de saúde reprodutiva (como anticoncepcionais) com a autorização de seus maridos, pais ou irmãos.
Além disso, o país está longe da sustentabilidade ambiental: nos jogos, todos os estádios funcionarão com centenas de ar-condicionados ligados.
“Os direitos humanos devem desempenhar um papel importante na organização dos torneios”, disse Lahm. “Se um país que se sai mal nessa área é premiado [virando sede], então é preciso repensar em quais critérios essa decisão foi baseada”.
Atentados contra migrantes
Desde 2010, quando o Catar se tornou candidatou a país-sede da Copa, pelo menos 6,5 mil trabalhadores que construíam os estádios no país morreram, segundo levantamento do jornal britânico The Guardian. A grande maioria – ou todos eles – eram migrantes. O país árabe só assume 37 dessas mortes.
Não é novidade que migrantes que trabalham no Catar, seja na construção civil ou nos trabalhos domésticos, vivem em condições precárias, incluindo inúmeros relatos de escravidão moderna.
Nas fileiras da construção dos estádios, os operários recebiam apenas 1,30 euro por hora de trabalho. É uma profunda discrepância entre a renda do país, que é o quarto mais rico do mundo. Só a Copa mobilizou US$ 220 bilhões em investimentos.
Em resposta, o governo catari disse que revisou as leis trabalhistas e introduziu um salário mínimo. As organizações de direitos humanos dizem que os abusos continuam e que as reformas trabalhistas não foram concluídas.
O que dizem a Fifa e o Catar
Em entrevista à Reuters, o xeque Mohammed bin Abdulrahman Al-Thani disse que está “incomodado com os padrões duplos” dispensados ao país árabe. Segundo ele, o Catar enfrentou uma campanha sistemática que nenhum outro enfrentou desde a seleção como sede da Copa.
“É irônico quando esse tom é usado em países da Europa que se autodenominam democracias liberais”, afirmou. “Parece muito arrogante, francamente, e muito racista”.
Em outubro, a ministra do Interior alemã, Nancy Faeser, visitou o Catar e disse que recebeu a garantia de que todos os visitantes LGBT serão bem-recebidos durante o torneio.
“Os organizadores disseram repetidamente que todos os visitantes terão respeito, independentemente de sexualidade ou gênero. Casais não casados poderão compartilhar acomodações”, relatou Faeser.
Na semana passada, a Fifa enviou uma carta aos países participantes da Copa do Catar advertindo-os de “foquem no esporte”, e não em outras questões, como o boicote.
“Sabemos que o futebol não vive em um vácuo e estamos igualmente cientes de que existem muitos desafios e dificuldades de natureza política em todo o mundo. Mas, por favor, não deixem que o futebol seja arrastado para todas as batalhas ideológicas ou políticas que existem.”, diz um trecho.
Apesar das denúncias e movimentos de boicote, nada mudou nos últimos 12 anos e a Copa começará no próximo domingo (20), a partir das 13h (horário de Brasília).