O racismo escancarado com atores negros de “A Pequena Sereia”, “Anéis de Poder” e “A Casa do Dragão”

Desde que atores negros ganharam destaque em "A Pequena Sereia", "Os Anéis de Poder" e "A Casa do Dragão", a internet foi inundada por comentários e até ataques racistas. Com ajuda especializada, o Giz Brasil analisa um a um
Racismo
Imagem: Divulgação/Disney/Amazon/HBO

O tema do momento é: atores negros em papéis de destaque fora dos estereótipos padronizados pela indústria da cultura. Séries como “Senhor do Anéis: Os Anéis de Poder” e “A Casa do Dragão”, spin-off de “Game Of Thrones”, além do live-action de “A Pequena Sereia” da Disney, incluíram pessoas pretas interpretando personagens principais.

A grande novidade e evolução na consciência dos estúdios, no entanto, também chegam acompanhadas de críticas e comentários racistas.

As adaptações de “Os Anéis de Poder” e “A Casa do Dragão” foram aclamadas pela crítica especializada e pelo público, mas geraram uma chuva de comentários negativos por colocar atores negros em papéis de destaque.

Já o live-action de “A Pequena Sereia” ainda nem estreou, mas vem sendo alvo de críticas por ter uma atriz “não branca” no papel de Ariel.

Para quem ainda está fora do assunto ou não se aprofundou, vamos dissecar caso por caso. O Giz Brasil escutou a pesquisadora Camila Soares, uma especialista no assunto, para analisar o contexto todo. Acompanhe:

“Os Anéis de Poder”

Os dois primeiros episódios de “O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder” chegaram ao Amazon Prime Video no início de setembro, sob elogios e aclamação da maioria dos fãs das obras de J.R.R. Tolkien.  No entanto, alguns “fãs” se uniram para diminuir a nota da série no Rotten Tomatoes e Metacritic, dois dos mais conhecidos quando falamos sobre sites de avaliações de séries e filmes.

O motivo? Racismo! A maioria dos comentários veio cheio de ódio, racismo e sexismo e também contra a diversidade étnica mostrada na série. Reclamam da inclusão de “todas as minorias” na trama, afirmando que não existiam elfos negros e latinos na obra de Tolkien nem nos filmes que adaptaram “O Senhor dos Anéis”. Para estes, a Terra Média da fantasia é baseada na Europa medieval, onde a população era majoritariamente branca, e a série peca por incluir outras raças na história.

Anéis de Poder: Astro de O Senhor dos Anéis posta foto em apoio a ator da série

Imagem: Divulgação/Prime Video

E não tem como negar que a série realmente tem um elenco bastante diverso. O inglês Lenny Henry, que vive o pé-peludo Sadoc Burrows, é filho de jamaicanos, enquanto o elfo Arondir é interpretado pelo porto-riquenho Ismael Cruz Cordova.

Há ainda a Sophia Nomvete como a divertida princesa anã Disa, além de uma rainha negra vivida por Cynthia Addai-Robinson, sem falar dos atores que ainda vão aparecer nos próximos episódios.

Por isso, o elenco de “O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder” precisou se pronunciar oficialmente contra os ataques racistas que a série e parte de seus atores vem sofrendo nas redes sociais. “Nós, o elenco de Anéis de Poder, nos unimos em solidariedade e contra o racismo, as ameaças e o assédio e o abuso incansáveis a que alguns de nossos colegas não brancos estão sendo submetidos diariamente. Nós nos recusamos a ignorá-los ou tolerá-los”, diz o comunicado, divulgado nas redes sociais da série.

Confira o texto completo:

Além disso, Elijah Wood, Dominic Monaghan e Billy Boyd, atores da trilogia cinematográfica “O Senhor dos Anéis”, vestiram camisetas estampadas com orelhas características das criaturas da Terra Média das mais variadas etnias, com os dizeres “vocês todos são bem-vindos aqui” em élfico. E como forma de combater futuras campanhas de bombardeio de críticas, a Amazon suspendeu todas as avaliações de usuários por 72 horas após a estreia.

E não para por aí! Mesmo com tamanhas críticas e comentários racista, “O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder” quebrou recordes de audiência. A trama foi vista por 25 milhões de espectadores em todo o mundo nas primeiras 24 horas em que os dois primeiros episódios da série estavam disponíveis para streaming, em 240 países e territórios.

“A Casa do Dragão”

E assim como “Os Anéis de Poder”, “A Casa do Dragão”, spin-off de “Game Of Thrones”, também passou por uma situação parecida. A trama se passa 200 anos antes da série original e, claro, terá um novo elenco e personagens. Com isso, uma surpresa para alguns fãs dos livros de George R. R. Martin foi a “mudança” de etnia de Lorde Corlys Velaryon, também conhecido como a Serpente Marinha, vivido por Steve Toussaint.

Descendente de uma linhagem valiriana tão antiga quanto a dos Targaryen, ele é considerado o melhor marinheiro que os Sete Reinos já viram, tão brilhante quanto inquieto, tão aventureiro quanto ambicioso. Na trama de “A Casa do Dragão”, o personagem é um dos homens mais ricos em Westeros.

Ele entra para o clã Targaryen ao se casar com a princesa Rhaenys (Eve Best), a quem se costuma chamar de “A Rainha que Nunca Foi”. Logo no início do primeiro episódio de “A Casa do Dragão”, ele aparece durante a nomeação de Viserys (Paddy Considine) como herdeiro do Trono de Ferro e depois segue como parte do Pequeno Conselho.

Imagem: Divulgação/HBO Max

O personagem não é descrito como negro em nenhum dos livros onde é mencionado. Porém, também não é dito como uma pessoa branca. Por uma questão de que a maioria dos personagens de “Game of Thrones” são brancos — assim como boa parte das histórias de “alta fantasia” —, imaginaram que ele também seria branco.

Além disso, quando Martin começou a definir quem era quem em Westeros, supostamente enxergava os Velaryon como negros de cabelos prateados. Em entrevista para a Entertainment Weekly, os criadores de “A Casa do Dragão”, Ryan Condal e Miguel Sapochnik, comentaram a procura por um elenco diverso.

“O mundo está muito diferente agora do que há dez anos atrás quando Game of Thrones começou. E é diferente de vinte anos atrás quando Peter Jackson fez O Senhor dos Anéis. Esses tipos de história precisam ser mais inclusivas do que foram originalmente”, explicou Condal. “Era muito importante, para mim e Miguel, que criássemos uma série que não fosse apenas várias pessoas brancas na tela, para ser franco”.

Steve Toussaint sofreu ataques racistas nas redes sociais por ser escolhido para interpretar o personagem. “Eu não percebi que [estar no elenco] era uma grande coisa até que sofri racismo nas redes sociais”, contou o ator ao The Hollywood Reporter. “Sim, essa m*rda aconteceu. Eu fiquei tipo, ‘Oh uau’, e então eu pensei: ‘Ok, então isso significa muito para algumas pessoas, mas não posso permitir que isso me incomode’.”

O ator ainda pontua que, apesar de ser uma fantasia, a obra de George R. R. Martin ainda reflete o mundo real. “Adorei Game of Thrones, mas minha única ressalva foi: ‘Onde estão os outros neste mundo?’”, disse na entrevista. “Porque o mundo que Martin criou é diverso se você olhar [para além de Westeros], e acho que essa série se aproxima disso”. E para terror dos racistas, “A Casa do Dragão” também quebrou recordes de audiência e já foi renovada para a 2ª temporada.

“A Pequena Sereia”

Recentemente, foi revelado o primeiro trailer da versão live-action de “A Pequena Sereia”, que terá Halle Bailey como Ariel. Enquanto muitos se encontraram e se viram representados com uma protagonista negra vivendo a jovem sereia, outros criticaram a escolha da atriz como a intérprete da personagem.

Por isso, o vídeo divulgado no canal da Disney, virou alvo de uma avalanche de dislikes no YouTube. Vale lembrar que o filme tem sido alvo de ataques on-line desde que Halle Bailey foi anunciada como Ariel. A atriz e cantora negra, desagradou parte dos fãs que esperavam uma versão mais fiel a do desenho animado de 1989. A nova versão do filme tem estreia prevista para 26 de maio de 2023 nos cinemas.

A Pequena Sereia

Imagem: Reprodução/Disney

O caso de racismo foi tão grave, que levou um usuário do Twitter a ser suspenso por promover uma suposta inteligência artificial capaz de “embranquecer” a protagonista de “A Pequena Sereia”. A Disney e os envolvidos no projeto vêm defendendo a escolha da artista desde o anúncio oficial feito ainda em 2019, lembrando aos críticos de que sereias não existem de verdade. Além disso, muitos fãs também se mobilizam na internet para defender Halle para o papel, apontando como uma das cantoras mais promissoras de sua geração.

Análise especializada: “é uma adaptação”

Camila Soares é produtora, curadora e pesquisadora em cinema, técnica em Cinema formada pela Escola de Cinema do Maranhão e mestranda em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas. É pesquisadora em cinema negro brasileiro com enfoque na trajetória do cinema político de Adélia Sampaio.

Ela explica que cinema é poder, e a partir do momento que se descentraliza esse poder e traz maior representatividade, isso mexe com o ego dos “fãs” da saga que seguem o original. No entanto, Camila ainda explica que o nome mesmo já diz: “é uma adaptação”.

“A gente tá falando de animações da Disney, que é uma indústria que mexe até hoje com as crianças e adultos. Então são esses adultos que foram criados assistindo a Disney estão incomodados com um ser mitológico que não existe, sendo representado na ficção por uma mulher negra. Estamos falando de uma cultura que além de racista, se mostra muito misógina, e ainda se vive uma onda conservadora muito grande”, explica Camila.

“Às vezes as pessoas acreditam que não, que isso é uma onda nova, mas na verdade existe um poder na internet com que essas vozes sejam escutadas. A tecnologia permite isso, essa modernidade e esse período novo onde a informação corre muito rápido. Ela te permite várias coisas, como uma Ariel negra nos cinemas, diferente dos quadrinhos, mas também permite que as pessoas tenham espaço para conseguir atores porque não aceitam que um ser mitológico possa ser negro”, completa a pesquisadora.

“Isso está muito ligado a isso, ao poder que o cinema dá de construir histórias”, conta a Pesquisadora, afirmando que ao colocar atores não brancos nesses papéis de destaques, mexe em muitas camadas no audiovisual. “Estamos falando de adaptação, o nome eu creio que já diz tudo”, explica Camila.

“Você pega uma narrativa, um filme, uma música, uma literatura, e você pode adaptar aquilo para o audiovisual. Você adapta tanto em forma, em técnica, quanto em espaço e territorialidade. Se você adaptar uma coisa do século passado, ela vai trazer elementos de 2022”, explica Camila, que ressalta o poder da imagem, do audiovisual e do cinema. “Então quando você traz essa diversidade, você está adaptando também as discussões atuais”.

Rayane Moura

Rayane Moura

Rayane Moura, 26 anos, jornalista que escreve sobre cultura e temas relacionados. Fã da Marvel, já passou pela KondZilla, além de ter textos publicados em vários veículos, como Folha de São Paulo, UOL, Revista AzMina, Ponte Jornalismo, entre outros. Gosta também de falar sobre questões sociais, e dar voz para aqueles que não tem

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