Nos animais vertebrados, a pele é a primeira linha de defesa contra patógenos e substâncias tóxicas. Os anfíbios têm a pele permeável, o que significa que as substâncias do ar e da água entram com facilidade. A microbiota cutânea, que é a comunidade de microrganismos composta por bactérias, vírus e fungos que vivem e prosperam na pele dos vertebrados, acaba sendo uma das únicas guaritas a separar o meio externo do interior do corpo.

Assim como as bactérias gastrointestinais, cuja importância para a saúde do organismo tem sido cada vez mais estudada, as cutâneas agem em grupo. Elas reconhecem a presença umas das outras e podem passar a secretar substâncias no meio que facilitam sua proliferação e proteção, formando uma camada conhecida como biofilme. Os pesquisadores da Ufop já tinham detectado a tolerância ao arsênio pelas bactérias em 2019, conforme descreveram em artigo na Herpetology Notes. Mas isso não significava necessariamente que sapos e pererecas também se beneficiavam. Faltava provar se o biofilme formado pelos microrganismos conferia o poder de bloquear a substância.

Abatedouro de beira de estrada

Moreira e a bióloga Isabella Cordeiro, estudante de doutorado em seu laboratório, precisavam selecionar representantes de espécies que estivessem presentes tanto no ambiente rico em arsênio quanto em área livre de poluentes. Esse era o caso de cinco espécies – quatro pererecas e um sapo – que existem tanto no Quadrilátero Ferrífero quanto em uma reserva de mata fechada do município de João Neiva, no Espírito Santo (ES), onde não há arsênio na água. Os dois viajaram então à reserva capixaba para recolher microrganismos da pele dos anfíbios.

Graças a um desses encontros fortuitos que podem acontecer quando se vai a campo, enxergaram, no caminho de volta, um criadouro de rãs-touro (Lithobates catesbeianus), espécie norte-americana criada comumente para alimentação. Os pesquisadores pararam para conversar com os ranicultores e descobriram que as peles das rãs eram descartadas após a retirada da carne. O proprietário se dispôs então a enviar o material, congelado, à universidade.

De volta ao laboratório e recebida a encomenda, os pesquisadores esterilizaram as peles de rã-touro e aplicaram quatro tratamentos diferentes às suas faces externas: bactérias tolerantes a arsênio da pele de anfíbios do Quadrilátero Ferrífero, bactérias presentes nos animais da área não contaminada e dois controles – um livre de bactérias e outro apenas com Escherichia coli, que não costuma habitar a pele (ver infográfico abaixo). Os resultados apoiaram a hipótese da capa protetora: a passagem do arsênio foi bloqueada apenas nas peles revestidas por bactérias recolhidas de anfíbios nas áreas naturalmente contaminadas do Quadrilátero Ferrífero.

Imagem: Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

Imagem: Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

O grupo observou também que as bactérias do experimento proliferaram na solução contida no tubo de ensaio, o que pode significar que estejam adaptadas a tirar vantagem do arsênio, obtendo energia a partir do processamento desse composto. Em outras regiões do mundo contaminadas por metais e semimetais pesados, pesticidas, herbicidas e outros tipos poluentes, já foram feitos estudos sobre a composição e a tolerância das bactérias da microbiota cutânea de anfíbios, mas, segundo os autores, ninguém havia ainda avaliado o papel das bactérias na permeabilidade da pele aos contaminantes.

Protetora sim, infalível não

“Os anfíbios continuam sendo excelentes bioindicadores de perturbações ambientais, mas há também de olhar para o contato com cada tipo de ameaça e entender se a evolução teve tempo de resposta”, sugere Moreira. No caso das áreas ricas em minério, onde o contaminante já estava presente antes mesmo da intervenção humana, o tempo prolongado de exposição pode ter permitido que os microrganismos se adaptassem.

Foi pensando no tempo evolutivo necessário e em tipos de adaptação que o ecólogo brasileiro Guilherme Becker, da Universidade Estadual da Pensilvânia (PSU), nos Estados Unidos, dedicou-se à pesquisa com anfíbios e répteis de diferentes países para entender como patógenos afetam a microbiota e como, na via inversa, os microrganismos afetam os patógenos. Seu grupo investiga também a influência de fatores do clima nessa interação.

Esse efeito é especialmente relevante no contexto de uma doença pandêmica preocupante entre os anfíbios, a quitridiomicose. O fungo Batrachochytrium dendrobatidis, também conhecido como quitrídio, ou apenas Bd, é responsável pela extinção de dezenas de espécies de rãs, sapos e pererecas, e por afetar outras centenas.

A perereca-de-pijama (Hypsiboas polytaenius) vive na vegetação em torno de áreas alagadas, onde deposita os ovos

A perereca-de-pijama (Hypsiboas polytaenius) vive na vegetação em torno de áreas alagadas, onde deposita os ovos. Imagem: Adriano Lima Silveira

Na PSU, o grupo coordenado pelo brasileiro, que é coautor do artigo sobre a tolerância ao arsênio, já descobriu, por exemplo, que períodos prolongados de seca diminuem a qualidade de proteção do microbioma cutâneo contra fungos, como descreve artigo publicado em janeiro na Ecology Letters. A invasão por outros patógenos, como vírus ou fungos (o quitrídio ou outros), pode diminuir essa proteção.

O contato pode ser nocivo ou benéfico. “É como a vacinação: com a exposição a concentrações pequenas, constantes e contínuas de vírus ou fungos ao longo do tempo, a tendência é de que a microbiota se torne mais combativa, com tipos de bactérias produtoras de substâncias antifúngicas, porque a exposição gradual altera a composição de espécies de bactérias que ‘moram’ no sapo naquele momento”, explica Becker, que publicou esses resultados em 2023 na revista Philosophical Transactions of the Royal Society B.

Alguns tipos bacterianos já foram identificados como bons contra o quitrídio, como algumas espécies de Pseudomonas, mas os pesquisadores ressaltam que nenhum deles, sozinho, garante proteção. A chave está na diversidade de espécies da comunidade de microrganismos vivendo e interagindo na pele. Quando um microbioma (ou uma floresta) é diverso, a invasão por novatos se torna mais difícil e o sistema como um todo tende a ser mais estável.

Se a diversidade é quebrada, a estabilidade também é, e o sistema se torna vulnerável, facilitando a entrada dos “inimigos”. Os estudos de Becker indicam que, além de patógenos e eventos de seca, outros fatores, como cobertura florestal e a radiação solar direta, podem causar essa desestabilização da diversidade em múltiplas escalas: da microbiota aos ecossistemas.

Em testes com anfíbios do Brasil e de Madagascar descritos em 2022 na revista Animal Microbiome, ele verificou que as espécies ameaçadas de extinção pelo quitrídio têm microbiotas muito menos diversas do que as não ameaçadas. Outra análise, em parceria com o herpetólogo Jackson Preuss, da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), descobriu que lagos com alta concentração de coliformes fecais também prejudicam a composição de espécies da microbiota, conforme artigo de 2020 na Environmental Science and Technology.

O cururu-pequeno (Rhinella crucifer) vive mais distante da água, com microbiota menos resistente

O cururu-pequeno (Rhinella crucifer) vive mais distante da água, com microbiota menos resistente. Imagem: Adriano Lima Silveira

O papel antifúngico da microbiota cutânea tem recebido maior atenção por causa do interesse em buscar soluções e desenvolver tratamentos probióticos para a doença, de acordo com a microbióloga mexicana Eria Caudillo, da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), que considera fundamental expandir o foco da exploração para outras funções, como fez o estudo da Ufop. “A quitridiomicose afeta cerca de 8% da biodiversidade de anfíbios no mundo, mas outros fatores são mais disseminados, como desmatamento, espécies invasoras e contaminação.”

Caudillo trabalha com o axolote, uma salamandra criticamente ameaçada de extinção, e destaca dificuldades também relatadas pelos pesquisadores brasileiros: a limitação a estudos em anfíbios vivos pela dificuldade de obter permissões dos órgãos ambientais e a necessidade de recursos e infraestrutura. “Essa é a beleza do experimento realizado com esses anfíbios tolerantes ao arsênio, o aparato inventado foi inovador, sem ser custoso e sem matar animais desnecessariamente.” Ela ressalta outros potenciais desse conhecimento, como o desenvolvimento de filtros biológicos com bactérias resistentes a poluentes.

O rápido ciclo de vida das bactérias faz com que sejam capazes de responder às pressões evolutivas muito mais depressa do que os animais. Isso talvez as torne as melhores combatentes ante as alterações ambientais causadas pela ação humana. Mas não são invencíveis. Quando há impactos grandes e repentinos, não há diversidade, ou capa defensora, que resista.

Artigos científicos
CORDEIRO, I. F. et al. Amphibian tolerance to arsenic: Microbiome-mediated insights. Scientific Reports. v. 14, 10193. 3 mai. 2024.
CORDEIRO, I. F. et al. Arsenic resistance in cultured cutaneous microbiota is associated with anuran lifestyles in the Iron Quadrangle, Minas Gerais State, Brazil. Herpetology Notes. v. 12. 30 out. 2019.
GREENSPAN, S. E et al. Low microbiome diversity in threatened amphibians from two biodiversity hotspots. Animal Microbiome. v. 4, 69. 29 dez. 2022.
PREUSS, J. F. et al. Widespread pig farming practice linked to shifts in skin microbiomes and disease in pond-breeding amphibians. Environmental Science and Technology. v. 54, n. 18, p. 11301-12. 26 ago. 2020.
BUTTIMER, S. et al. Skin microbiome disturbance linked to drought-associated amphibian disease. Ecology Letters. v. 27, n. 1, e14372. 26 jan. 2024.
SIOMKO, S. A. Selection of an anti-pathogen skin microbiome following prophylaxis treatment in an amphibian model system. Philosophical Transactions of the Royal Society B. v. 378, n. 1882. 31 jul. 2023.
GREENSPAN, S. E. et al. Low microbiome diversity in threatened amphibians from two biodiversity hotspots. Animal Microbiome. v. 4, 69. 29 dez. 2022.