Paulo Mendes da Rocha: situação dos rios em São Paulo “é um desastre”

O projeto Cidade no Tietê –que você conheceu na primeira parte da nossa série “Do outro lado do rio“– foi feito por ninguém menos que o arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Vencedor do prêmio Pritzker –considerado o Nobel da arquitetura– de 2006 pelo conjunto de sua obra, o arquiteto é um dos grandes nomes do […]

O projeto Cidade no Tietê –que você conheceu na primeira parte da nossa série “Do outro lado do rio“– foi feito por ninguém menos que o arquiteto Paulo Mendes da Rocha.

Vencedor do prêmio Pritzker –considerado o Nobel da arquitetura– de 2006 pelo conjunto de sua obra, o arquiteto é um dos grandes nomes do brutalismo paulista, escola dos anos 50 que foi responsável por obras de concreto exposto sem qualquer tipo de acabamento e linhas retas. Entre seus projetos, estão o Mube (Museu Brasileiro da Escultura), o Estádio Serra Dourada, em Goiânia (GO), e a reforma da Pinacoteca do Estado de São Paulo, além de muitas outras.

Antes, caso você ainda não tenha visto, confira as três primeiras partes de nossa série especial:

Do outro lado do rio: as ideias do passado para recuperar o rio Tietê, em São Paulo
Do outro lado do rio: retificações, canalizações e projetos abandonados dos rios de São Paulo
Do outro lado do rio: o que está sendo feito hoje para recuperar o Rio Tietê

Paulo Mendes da Rocha recebeu o Gizmodo Brasil em seu escritório e falou um pouco sobre a Cidade no Tietê e a situação dos rios e das cidades brasileiras.

O desastroso abandono dos rios

“Não sei se posso propriamente analisar [a situação atual dos rios de São Paulo], mas posso te dizer o que você já deve ter ouvido de todo mundo: é um desastre. Nunca se fez um plano como as águas exigem, porque não adianta você querer tratar detalhes ou trechos de um rio. Não faz sentido.

Eles fazem parte de um sistema que é, enfim, a rede hídrica, fluvial, de uma região. Entra aí coisa que você não tá vendo, lençol freático, águas subterrâneas… O rio flui, portanto você não pode tratá-lo bem no trecho que ele atravessa uma cidade como fato isolado. Portanto, há muito tempo que está entre nós esboçado o desastre, por falta de atenção, não por falta de saber.

São Paulo, por contradição, até que foi muito feliz, com o governo de um professor da [Escola] Politécnica que é justamente especialista em hidráulica, Lucas Nogueira Garcez, que salvou, em parte, o Rio Tietê, fazendo o que se chama um estudo de aproveitamento integrado de toda sua bacia, mas de São Paulo em diante, digamos assim. Isso foi feito daqui até as barrancas do Paraná, onde ele deságua.

Só pra você ter uma ideia, vamos continuar com esse raciocínio do Garcez, se fez a sucessão de barragens com a seguinte virtude, além de tudo: nas bacias de acumulação, como se chama, nos lagos constituídos pelas barragens, você navega plenamente, coisa que o Tietê, in natura, não era navegável — é uma contradição: diz que é o rio das canoas, que penetraram… mas isso é uma canoa; navegação útil, hoje, de carga e etc, não passa em algumas corredeiras e coisas assim.

Portanto, agora você pode navegar praticamente de São Paulo até o rio Paraná com essa sucessão de barragens que já foram construídas e tal, num plano fantástico da Cesp.”

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O atraso e os projetos que nunca saíram do papel

“São Paulo sofre como a América toda, por uma tradição quase infame, de política colonial. Antes desses planos já conduzidos por outra experiência, São Paulo diz que deve seu progresso à energia produzida pela Light, não é verdade? Companhia Light que é canadense.

Ora, o que que a Light fez? Ela usou o rio Pinheiros pra sugar as águas do Tietê e jogar no mar, numa avalanche de 700 metros de altura, com as turbinas lá embaixo, e joga a água no mar. É a maior infâmia que você pode produzir, porque a graça do quilowatt é você beber a água depois. Se você joga a água fora, não há dinheiro que pague esse quilowatt, se você joga a água no mar.

Até hoje o Brasil é assim: se você for lá para cima, ver o que está se fazendo na Bacia Amazônica, Tocantins, Araguaia, Tapajós, aqueles rios todos, é tudo improvisado, mal feito; não há um plano conjunto pra tudo isso. Essa questão do planejamento da bacia toda é tão interessante quanto, além de tudo, a própria mecânica dos fluídos exige, mas principalmente se você considerar que a bacia fluvial do Brasil, o quadro fluvial do Brasil é riquíssimo, e grande parte desses rios entra e sai do Brasil, passa por outros países, o que nos obriga a imaginar uma verdadeira associação entre os países da América Latina pra tratar essa questão.

Existe um projeto aqui da engenharia paulista, um sonho, que é o seguinte: se você imagina que a Bacia Paraná-Uruguai, onde aquilo se origina no coração do Brasil, e corre pro sul, a Bacia Paraná-Uruguai sai lá embaixo, no [Rio do] Prata; há uma outra bacia chamada Tocantins-Araguaia, que nasce mais ou menos no mesmo lugar e corre pro norte, pro Amazonas, que é a grande bacia caracterizada, no caso, pelo Tocantins-Araguaia, associação dos dois rios, inclusive com a maior ilha fluvial do mundo.

Existe um projeto, com duas ou três alternativas –evidentemente, teria que se assumir a melhor–, de um canal que liga essas duas bacias e você pode ligar a Bacia Amazônica com a Bacia do Prata. Os engenheiros chamavam isso de uma costa interior no Brasil.

Porque a navegação fluvial representa uma riqueza incomensurável no sistema de transporte e de estabelecimento mesmo das áreas de produção do homem e transformação da agricultura pela agroindústria chamada, tudo isso, ela lucra muito com a navegação fluvial porque ela é de uma eficiência incomparável com caminhão, estrada, tudo isso.

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Nada disso foi feito até hoje, nunca se levou nada disso a sério, as coisas são muito improvisadas, a maioria das vezes interessando muito mais às empresas que contratam as obras fora de um planejamento rigoroso e de caráter amplo da questão das águas. E tudo isso faz com que nosso atraso seja imenso, principalmente porque essa questão é uma das mais bem experimentadas pela engenhosidade do homem.

Não faz sentido nenhum você não ter tido pelos ministérios de planejamento e tudo isso há muito tempo uma orientação muito mais segura e muito mais interessante, inclusive com esse aspecto dos outros países, que você podia dizer que envolve a ideia de construir a paz na América Latina, porque você não vai fazer isso pra não ser solidário com outro país, etc.”

A cidade no Tietê

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“Eu fiz um ensaio interessante na ocasião em que apareceu esse sistema todo navegável do Tietê, daqui até as barrancas do Paraná, pelo seguinte: justamente pela rejeição da área do Rio Tietê in natura, como ele era, pelas inundações, etc, as cidades se afastavam do rio, dessas encostas do rio, dessa área do curso do rio in natura.

O sistema ferroviário foi construído ao norte desse rio –se você imaginar que o Tietê, literalmente, produz uma linha leste-oeste, por isso eu digo assim, ao norte– ao norte do Tietê, dentro do estado de São Paulo, foi feita uma linha ferroviária, pro café, essas coisas, e outra ao sul, evitando a proximidade com essa bacia.

Essas duas linhas existem –Ferroviária Sorocabana de um lado, a outra eu não sei– e atravessam, inclusive, o [Rio] Paraná, vão até a Bolívia, uma delas, etc. Se você vir a carta, mais ou menos a distância entre essas duas linhas é de em torno de 50, 70 km, com o rio no meio, agora constituído por uma sucessão de barragens e lagos, todos navegáveis.

Se você imaginar ligar esses dois sistemas ferroviários, de modo a atravessar, de modo transverso é a palavra, essa bacia navegável, você une todo o sistema de riqueza do Estado no mesmo instante, porque a navegação fluvial, por outro lado, não rende sem o apoio da ferrovia.

Portanto, nós imaginamos, principalmente olhando a distância entre a cidade de São Paulo e a barranca do Rio Paraná, em torno de 1000, 800 km. O voo a jato, comercial, só é útil até menos que 400 km, como quem diz, não convém a decolagem, que é justamente o meio.

A ideia de uma cidade, polo de desenvolvimento industrial e regional — já não é mais só para o Estado, mas para o Paraná, sul de Minas, Mato Grosso — de tal sorte que você liga os dois sistemas ferroviários já existentes com a bacia navegável e ali, nesse cruzamento a 400, 500 km da cidade de São Paulo e outro tanto do [Rio] Paraná, você funda uma cidade-polo de desenvolvimento industrial, associando todo o sistema ferroviário do estado com o novo eixo de navegação fluvial por excelência, construindo aí um grande porto.

Porque a navegação fluvial não pode se fazer sem mais nem menos, aos pedaços, você vai ter que ter centros de abastecimento, centros de reposição da navegação, estaleiros… sistema, enfim. E, de preferência, com essa associação com as ferrovias e a própria navegação que colhe das margens, com vários outros sistemas, o produto, instalar nessa cidade, as principais indústrias dessa transformação: grãos, por exemplo, carne, etc, o que se chama agroindústria, de um modo geral.

Eu fiz um ensaio sobre essa cidade. É muito bonito porque é quase fácil imaginar: uma ferrovia de 70 km, você constrói em três meses, numa região absolutamente plana –porque as águas produzem essa inexorável planura– na beira de um lago, atravessa a barragem, e constrói um grande porto fluvial.

Pode usar, do ponto de vista da arquitetura e do urbanismo, o recurso das duas margens (Rio-Niterói, São Sebastião-Ilhabela) 3 km, mais ou menos ali, é a dimensão da laguna; portanto, de um lado é a indústria, aeroporto, do outro lado é a cidade propriamente dita, da vida doméstica.

É muito interessante você ver a possibilidade de uma articulação dessa nova geografia, a única que nos interessa, transformada por nós, porque a natureza, por si, in natura, é um desastre.”

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O rio pode ser um lugar de lazer?

“Essa é uma outra questão, porque é uma opinião pessoal, que pode não ter nenhum valor técnico-científico. É um papo entre nós. Na minha opinião, na área urbana, naturalmente, se você recupera um rio, pra ele ser recuperado, grande parte das florestas onde ele se origina –o nosso próprio Tietê nasce aqui na Serra do Mar, dentro da Floresta Atlântica– isso deve se conservar. Na área urbana, eu acho uma tolice, porque, mesmo a ideia de lazer não se faz com a ideia de floresta, na minha opinião.

Só pra você ter uma ideia, você tá na frente de um cidadão que quando era estudante de arquitetura fazia junto com os outros, porque era normal, havia competições, etc, remo, remo olímpico, remo esportivo, com barcos de cinco, quatro, oito sem patrão, oito com patrão no Tietê.

Dois clubes, um se chamava Tietê e, em frente, o Esperia, cediam às escolas superiores de São Paulo, Faculdade de Medicina, Escola Politécnica, Universidade Mackenzie, os alunos inscritos regularmente, as equipes de remadores iam treinar no Tietê.

Acordava-se às quatro da manhã, cinco da manhã, tava todo mundo remando lá, etc. É um esporte excelente, altamente democrático — o rio é público; você encontrava… eu me lembro que o campeão de single, sozinho num barquinho, não sei se você conhece isso, era um serralheiro daqui, um operário fantástico, todo mundo ficava amigo, etc.

O que eu quero dizer: a vida urbana chegava a esse tipo de confraternização — fora a própria regata, que era um espetáculo, assistia-se das margens, das pontes e tudo isso.

Perder tudo isso é um desastre. Transformar o rio em floresta nativa, com suas origens descritas claramente no perímetro urbano, me parece um pouco fora de propósito. O modelo seria Tâmisa, em Londres, e Sena, em Paris, e coisas assim, na área urbana. Pra diante, sem dúvidas, nas represas, nas margens, não há de ser tudo cidade, a cidade é um pequeno, justamente planejada pra isso, pra que não se expanda inadequadamente, sem projeto, comandado, simplesmente, o processo apenas pela construção especulativa, produto pra vender.”

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A necessidade de grandes planos

“Devia haver planos já feitos há muito tempo. Porque uma tolice é o governo dizer, pra ganhar uma eleição, que vai fazer isto, isso e aquilo. O Brasil, no estado em que nós estamos, possui e necessariamente exige projetos que um governo pra passar de um pra outro, só pode ganhar uma eleição porque prometeu fazer aquilo que já está programado pra fazer.

É idiota, num país como o Brasil, algum governo querer inventar alguma coisa pro sistema de navegação de cabotagem, por exemplo, 8000 km de costa, tudo isso. Aqui no Brasil se sabe que os pescadores perdem, quando os cardumes… porque lotado o navio, tem que voltar pra descarregar e o cardume já foi embora. Em todo país do mundo há centenas de pequenos portos pra você descarregar. Vai tudo pra câmara de gelo e o navio se reabastece, inclusive de gelo, e volta pra continuar a pesca ao longo dessa costa.

E muito mais que isso. O Brasil já possui inúmeros portos etc, mas muito atrasado. Então, esses planos, como o dos rios, da navegação e muitos outros — escola, saúde, todo mundo sabe — não pode ser plano de um partido que promete, tem que ser plano do povo. Justamente o que caracteriza a democracia e uma república democrática é que nós temos um projeto. O governo tem que cumprir: promete e eu voto nele.

Governo que vai inventar política de desenvolvimento do Brasil já devia estar pixado de tolo. Ele devia pelo menos anunciar que está recuperando antigas promessas muito bem fundadas pela inteligência, no caso, mundial, mas já brasileira, sobre o que fazer com tudo isso. São velhos projetos. Isso desencadeia riqueza, porque exige estaleiros, novas embarcações, incentiva pesquisa em desenho, etc, etc.”

As possibilidades da navegação fluvial na cidade

“A integração entre hidrovia e ferrovia, ou qualquer outro tipo de ferrovia terrestre é evidente, porque senão você fica confinado à calha do rio. Portanto, você tem que desfrutar daquele sistema, na medida em que ele se articula com outro sistema, de retroterra, como se diz, do seco. A associação com a ferrovia é muito interessante. Na área urbana, sem dúvida.

Você vê um caso interessante: há mais de quinze anos, nunca mais se falou nisso, por razões que eu não me lembro mais quais foram, eu fui chamado e fiquei alguns meses, indo uma vez ou outra, a Itapecerica da Serra pra prestar uma assessoria à prefeitura.

A primeira coisa que eu vi é a dificuldade de chegar lá pela estrada, essa estrada que vai pra lá. Congestionada. Pra voltar pra São Paulo, então, um inferno. E a segunda coisa que se vê é que há 10, 15 km, uma pequena faixa do município fronteiro à represa. Aquilo tá loteado e vendido pra casinhas que tão lá, de veraneio, alguém já essa exploração.

É fácil pra prefeitura desapropriar tudo, construir uma muralha e um cais adequado, dragar. Se você tomar uma barcaça ali, você desembarca aqui em Santo Amaro, pega a linha ferroviária –todo mundo sabe, passa em Santo Amaro– e tá dentro de São Paulo, sem automóvel. É como os países nórdicos fazem, todo mundo navega seus lagos.

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Nunca ninguém pensou nisso, nem depois de eu falar lá, ninguém pensou nisso nunca. Você prefere se enfiar num automóvel e perder duas horas, quando você em vinte minutos podia fazer isso, usando a parte de navegação fluvial. Isso é só um exemplo de um lugar.

A demonstração de como seria interessante, por exemplo, só pra retirar do lixo de São Paulo, que você vai levando, em cada região e cada bairro, pra margem, pra portos adequados, atracadouros adequados, e por sua vez, a grande usina de tratamento e beneficiamento desse lixo, que seria feita no rio lá pra diante, e o sistema de barcaças tirava tudo isso sem o transtorno dos caminhões na cidade, em grande parte — isso não ia resolver toda a cidade, mas só pra você ter uma ideia de alguns modos de navegar específicos pra isso e aquilo.

Enfim, as políticas desenvolvidas nessa área do planejamento não têm sido inteligentes nem caracterizaram no Brasil, e particularmente em São Paulo — porque um Estado tão desenvolvido assim podia ser cobrado necessariamente que se espera dele o exemplo, ações exemplares caberiam muito bem a nós, por que não? E sem planejamento, não se pode construir nada.

O fato isolado tem muita tendência a se tornar desastrado fora de um planejamento mais amplo sobre sustentação desse tipo: transporte público, associação entre sistemas de transporte, como no caso, marítimo, fluvial, hidroviário. Sem dúvida nenhuma. E não é grande invenção. Vou repetir: é panegírico do desenvolvimento de todos os territórios — não é nem países, porque na Europa esses sistemas atravessam vários países.

Você citou Saturnino de Brito. Basta convocar Saturnino de Brito pra ver o quanto nos atrasamos.”

Imagens: Thierry Freitas/Flickr; DNIT/Flickr; Cristian Silva/Flickr; “Projeto Tietê” — Instituto dos Arquitetos do Brasil – Departamento São Paulo; Robson Leandro da Silva/Flickr; Erika Morais/Flickr; Barbara Dieu/Flickr

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