Gal Costa e sua trilha sonora do Brasil

A morte da cantora baiana deixou claro o quanto seus sucessos fizeram parte do cotidiano enquanto outras foram importantes em momentos sensíveis do país
Imagem: Divulgação

A cantora baiana Gal Costa morreu inesperadamente em São Paulo na manhã desta quarta-feira (9/11) aos 77 anos. O vazio causado pela notícia provocou a reflexão do quanto a voz afinadíssima, capaz de ser doce ou agressiva quando adequado, fez parte da trilha sonora do Brasil nas últimas cinco décadas. Sucessos ou músicas mais ousadas e nem tão populares embalaram momentos tensos ou felizes do Brasil nesse período.

A seguir, uma listinha de canções-chave de Gal, com as devidas razões.

1) Coração Vagabundo (1967)

Não foi um grande sucesso, mas foi a primeira música de alcance nacional lançada com a voz da jovem Gal de 21 para 22 anos. É a faixa de abertura do álbum “Domingo”, em parceria com Caetano Veloso. Ele é o autor da canção, que Gal canta com voz delicada e consistente.

2) Mamãe, Coragem (1968)

Um dos momentos solo de Gal no álbum coletivo “Tropicália ou Panis et Circensis”, com participação de todos os membros do movimento tropicalista – Caetano, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes e o produtor Rogério Duprat. Às vésperas do AI-5, o ato que deu à ditadura militar o “liberou geral” para tocar o terror no Brasil, Gal canta a letra do poeta piauiense Torquato Neto feita para a melodia de Caetano Veloso com uma súplica à mãe numa época em que as nuvens escuras se formavam no país. A tensa canção é marcada pelos versos “Eu tenho um beijo preso na garganta / Eu tenho um jeito de quem não se espanta”.

3) Baby (1969)

Outra faixa solo de Gal em “Tropicália ou Panis et Circensis” que se tornou marca registrada da cantora. Composta por Caetano de novo, voltou a ser lançada no álbum “Gal Costa”, de 1969, e foi regravada por ela com o Roupa Nova nos anos 1980, sem o mesmo efeito sonoro causado pela versão original. A banda grunge Mudhoney tocou “Baby” em show em São Paulo em 2001, num tributo à música brasileira.

4) Não Identificado (1969)

Faixa de abertura do primeiro álbum realmente solo, singelamente chamado “Gal Costa”, a composição de Caetano Veloso tem um arranjo fantástico de Rogério Duprat e uma interpretação soberba da cantora. O órgãozinho a la Lafayette (o tecladista de Roberto Carlos na Jovem Guarda) é marcante. E a letra reflete a fascinação dos terráqueos pelo espaço sideral na época para falar de uma relação romântica. A música é tão pertinente que ainda estava no repertório de shows de Gal nos anos 2010, quando ela se apresentava com uma banda de músicos jovens e modernos.

5) Tuareg (1969)

Faixa do segundo álbum dela em 1969, chamado “Gal”, que foi composta pelo então Jorge Ben. Uma piração de sons hipnotizantes que remetem ao Oriente Médio e ao norte da África. Você pode até achar que não foi um sucesso memorável, mas está enganado. “Tuareg” foi incluída numa cena do filme “Roberto Carlos e o Diamante Cor-de-Rosa”, que estreou em 1970. Foi a maior bilheteria nacional daquele ano, com 2,6 milhões de espectadores. Num filme estrelado pelo trio de ídolos populares Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, Gal teve sua música executada quase inteira, mesmo sem estar no elenco.

6) London, London (1970)

As versões do próprio autor Caetano Veloso em 1971 e do RPM nos anos 1980 foram mais célebres, mas Gal – porta-voz de Caetano e Gil durante o exílio deles em Londres por causa da ditadura militar –  lançou antes e com uma interpretação esmagadora em seu álbum “Legal”.

7) Sua Estupidez (1971)

O original de Roberto Carlos em 1969 é clássico. Mas Gal reduziu tudo a uma versão voz-e-violão no álbum ao vivo “Fa-tal: Gal a Todo Vapor” que multiplica a melancolia de uma relação difícil. Ela também aplica um “uuuuh-uh-uh-uuuuh-uh” inexistente na versão do Rei que eleva a potência de intimidade da canção.

8) Você Não Entende Nada (1971)

Lançada em um compacto, a música de Caetano era marcada pela malandragem no refrão. Você poderia achar que era Ëu como, eu como, eu como… Você!” – e é por isso que a música fez sucesso no auge do governo ditatorial do general Médici, repressivo e puritano. Na verdade, o truque era que, no papel, o refrão era “Você bota a mesa, eu como, eu como eu como, eu como, eu como… (pausa) Você… não está entendendo nada do que eu digo”. A censura não percebeu o truque e a música foi às lojas. Uma versão mais célebre com Caetano está no álbum ao vivo dele junto a Chico Buarque, de 1972.

9) Índia (1973)

Uma guarânia paraguaia que fez sucesso no Brasil em português com a dupla Cascatinha & Inhana nos anos 1950 foi ressuscitada nas rádios brasileiras por Gal na cover que abria o álbum “Índia”, célebre até internacionalmente pela capa com um close dos quadris da cantora com uma tanga que supostamente deixava os pêlos pubianos à mostra. O mesmo disco tem uma interpretação magistral de “Volta”, canção dor-de-cotovelo do gaúcho Lupicínio Rodrigues.

10) Barato Total

Ainda em tempos tensos no país, esta música de Gilberto Gil no álbum “Cantar” trazia uma sensação de relaxamento e felicidade que transformou a faixa numa das mais marcantes da carreira de Gal.

11) Acontece (1974)

No álbum ao vivo “Temporada de Verão”, dividido com Caetano e Gil, Gal tem seu momento sob o holofote com uma versão magistral desta canção tocante de Cartola, o gênio do samba que só viria a lançar seu primeiro disco propriamente solo dois anos depois.

12) Modinha de Gabriela (1975)

Uma composição de Dorival Caymmi feita especialmente para a “novela das dez” da Globo foi interpretada por Gal Costa com uma alegria marcante. A novela baseada numa obra do escritor Jorge Amado foi um sucesso estrondoso e transformou a protagonista Sônia Braga em símbolo sexual nacional da época. E até hoje é difícil dissociar qualquer imagem de Sônia/Gabriela de Gal cantando “eu nasci assim, eu sou mesmo assim, sempre Gabriela”.

13) Só Louco (1975)

Outra música do grande compositor baiano Dorival Caymmi fez parte do álbum “Gal Canta Caymmi”. Mas que faria parte do cotidiano brasileiro ao ser tema da novela “O Casarão”, da TV Globo, em 1976, no então horário de “novela das oito” (hoje seria das nove).

14) Tigresa (1977)

Mais um clássico de Gal proporcionado por Caetano. Fez parte do álbum “Caras e Bocas” e da trilha de “Espelho Mágico”, “novela das oito” da Globo. A novela foi um fracasso, mas a música pegou.

15) Folhetim (1978)

“Se acaso me quiseres, sou dessas mulheres que só dizem sim”. O tema de uma profissional do sexo composto por Chico Buarque foi interpretado com classe e sedução por Gal Costa no álbum “Água Viva” e tocou à exaustão nas rádios no final da década de 1970.

16) Força Estranha (1979)

Caetano Veloso fez a música para Roberto Carlos, mas a versão de Gal no álbum “Gal Tropical” é tão poderosa que engole a gravação do Rei. A voz dela se lança com uma emoção muito forte. No mesmo álbum, está a cover de “Balancê”, marchinha antiga de João de Barro/Braguinha, gênese de outros sucessos com clima carnavalesco da cantora – e que foi o tema de um programa da Rádio Globo de São Paulo com Osmar Santos e Fausto Silva, portanto a origem de “Perdidos na Noite” e “Domingão do Faustão”…

17) Meu Bem, Meu Mal (1981)

Um clássico de Caetano Veloso que foi um dos mega sucessos do álbum “Fantasia” e fez parte marcante da trilha sonora da novela global “Brilhante”.

18) Festa do Interior (1981)

Outra do álbum “Fantasia”. Qualquer brasileiro vivo em 1981-1982 ouviu isso em algum lugar, seja no rádio, na TV ou na vitrola. Ninguém escapou de “Festa no Interior”. E até hoje não se escapa em festas de casamento, debutante, formatura, aniversário, Carnaval…

19) Açaí (1981)

A mente indecifrável de Djavan produziu os versos da música com o refrão “Açaí, guardiã, zum de besouro, um ímã”. A voz de Gal faz ignorar qualquer enigma despertado pela letra,

20) Pegando Fogo (1982)

No álbum “Minha Voz”, Gal repetiu a fórmula de “Festa do Interior”. Não fez tanto sucesso quanto, mas fez muito.

21) Dom de Iludir (1982)

No mesmo álbum “Minha Voz”, o destaque era esta balada elegante composta por Caetano Veloso.

22) Onde Está o Dinheiro? (1984)

No álbum “Profana”, Gal resgatou esta música antiga do genial João de Barro/Braguinha em tempos de final da ditadura militar e altíssima inflação, quando quem tinha dinheiro graúdo estava levando sua grana para fora do país.

23) Chuva de Prata (1984)

Se “Festa no Interior” foi um hit alegre e pulsante, “Chuva de Prata”, de Ed Wilson e Ronaldo Bastos, fez sucesso com uma sedução elegante e de certa forma nostálgica.

24) Nada Mais (Lately) (1984)

Versão em português de “Lately”, do cantor americano Stevie Wonder. Gal transforma o original em algo brasileiro, mas com o mesmo poder do original.

25) Um Dia de Domingo (com Tim Maia, 1985)

Do álbum “Bem Bom”, que tinha a também clássica “Sorte”. O dueto com o grande Tim nesta composição de Michael Sullivan e Paulo Massadas se tornou um clássico que saiu da era do vinil e chegou à era do streaming.

26) 70 Neles (1986)

Desde “Pra Frente, Brasil”, de 1970, sempre se procurou outro tema tão poderoso para incentivar a seleção brasileira numa Copa do Mundo. Em 1986, com uma Copa novamente disputada no México como em 1970, Gal foi convocada para cantar o tema “oficial” que foi tocado à exaustão até o Brasil ser eliminado nas quartas-de-final.

27) Brasil (1988)

Num país em agonia econômica, tentativa de reafirmação democrática, corrupção e escrotidão pura, Gal regravou a composição de Cazuza para ser o tema de abertura de “Vale Tudo”, novela da Globo que tratava desses temas já citados. A gravação dela é mil furos acima do original do autor.

28) Gal Costa no século 21

Não se engane. A lista de músicas individuais pode ter parado em “Brasil” de 1988. Mas nos anos 2010 Gal lançou álbuns de estúdio e ao vivo muito interessantes pela qualidade musical e pelo ímpeto da artista em buscar novos sons, sem ficar fossilizada. De arranjos eletrônicos a acompanhamento de rock atual, a cantora tentou várias possibilidades. Nenhuma faixa específica pode ser considerada como “trilha sonora do Brasil”. Mas todas podem e merecem ser ouvidas pelo que são. Obras de uma artista inquieta até os últimos dias.

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Marcelo Orozco

Marcelo Orozco

Jornalista que adora música, cultura pop, livros e futebol. Passou por Notícias Populares, TV Globo, Conrad Editora, UOL e revista VIP. Colaborou com outros veículos impressos e da web. Publicou o livro "Kurt Cobain: Fragmentos de uma Autobiografia" (Conrad, 2002).

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