Nova gordura suína de laboratório mantém animal vivo e espera aprovação da Anvisa
A cientista Bibiana Matte viajou de Porto Alegre para São Paulo, na manhã da última quarta (28), com uma porção de gordura suína acondicionada na bolsa. O destino da gordura era virar parte de uma linguiça – feita com ervilha seca e temperos mil, em um restaurante vegano do bairro de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. O Giz Brasil conferiu a apresentação.
“Gordura suína” e “restaurante vegano” são termos que não combinam, é verdade. Mas no histórico do material carregado por Bibiana não há qualquer resquício de sofrimento animal. É o que afirma a Cellva, startup gaúcha que fabrica a gordura. Ela vem de laboratório, e não se matou porco algum para produzi-la.
Bibiana trabalha na área de biotecnologia, especialista em cultura de células. Ela é co-fundadora da Cellva junto a Sergio Pinto, um empreendedor e ex-diretor global de inovações da BRF, a gigante brasileira do ramo alimentício.
A dupla criou a startup com este objetivo: criar gordura suína em laboratório e vendê-la para outras empresas que possam aplicá-la em produtos animais ou plant-based.
O intuito da Cellva, como anunciado no website, é ser uma das pioneiras na revolução do cultivo e produção de bioingredientes. Isto é, ingredientes modificados com atividade biológica. Fundada em 2022, esta é a sexta empresa no mundo (e primeira no Hemisfério Sul) a investir no cultivo celular de gorduras, e a segunda a produzir gordura cultivada em laboratório.
O projeto é mesmo novo em folha: depois de passar um ano e meio estudando sobre gordura animal no ramo alimentício, Sergio experimentou o produto pela quarta vez no restaurante paulista – acompanhado pelo Giz Brasil.
Conforme os testes avançam, a produção pode aumentar também. E a expectativa é obter aprovação da Anvisa no fim do ano que vem para comercialização do produto.
Como é a gordura de laboratório
A gordura suína desenvolvida pela startup gaúcha é clara, suave e quase não tem sabor. De textura aquosa, desmancha na boca em poucos segundos – e costuma fazê-lo em outros contextos, quando exposta à temperatura de 36°C ou superior. Mas ela deixa um amanteigado na boca, e este é o segredo.
“Sabe aqueles produtos plant-based bem sequinhos? A aplicação da gordura pode tornar o sabor mais persistente”, explica Sergio. É o que você espera de uma linguiça de churrasco, por exemplo: um sabor defumado e a textura da gordura presentes na boca por um tempo.
Na linguiça de ervilha preparada pelo chef Vitor Asprino, a gordura suína de laboratório substituiu o mix de óleos que geralmente se usa. A mistura levou só 15% do material, porque a receita tinha caráter experimental. E o resultado é que a linguiça fake ainda ficou relativamente seca – mas a gordura parece ter mantido os sabores por algum tempo na boca, junto a uma textura amanteigada.
Bibiana e Sergio contaram ao Giz Brasil que, em testes anteriores, a gordura artificial deu a cor e o brilho esperados a um caramelo, e deixou a cor de uma porção de crumble mais intensa do que a manteiga deixaria.
A questão vegana
Eles deixam claro: a Cellva não é uma empresa vegana. Isso porque a gordura de laboratório é mesmo gordura suína multiplicada (calma, leitor, explicaremos o processo logo em seguida). Mas espera-se que o produto tenha alguma aceitação pela comunidade vegana para ser incorporado em produtos plant-based – e teve, pelo menos, no evento em São Paulo.
“Existe essa ideia de que veganos não gostam de produtos de origem animal, e por isso deixam de consumi-los. Isso não necessariamente é verdade. Eu mesmo adoro pancetta e sushi. Mas me tornei vegano há muitos anos por uma questão ética e relacionada ao meio ambiente”, disse um dos participantes, que aprovou a gordura de laboratório.
Como se faz a gordura suína
A produção começa com a extração de uma amostra de 5 gramas de gordura, num processo indolor que mantém o porco vivinho da Silva. Este punhado de gordura vai para o laboratório, onde os pesquisadores selecionam as células que serão colocadas em biorreatores.
Nestes grandes tanques com nutrientes e condições controladas para o crescimento das células, elas se multiplicam exponencialmente. Estima-se que, neste processo, 5 gramas de gordura dão origem a 20 gramas em 21 dias. “É bem mais rápido que um processo convencional de crescimento e abate do animal, que dura de 18 a 24 meses”, afirma Sergio.
Nestes biorreatores, a alimentação das células é plant-based. Bibiana explica que a melhor forma para crescimento é via adesão com algum substrato. No caso, são microesferas de um vegetal secreto, que funciona como um membro estruturador para a gordura em crescimento. É como um palito que dá suporte para um pé de feijão crescer – caso ele também alimentasse a plantinha.
Enquanto não vão para os biorreatores, as células de gordura suína ficam armazenadas no biobanco da Cellva. Como um punhado de material se multiplica super rápido, a ideia da startup é se tornar autossustentável – e a expectativa é que isso aconteça em 3 anos.
Na teoria, estas células podem ficar armazenadas por 30 ou 40 anos anos no biobanco, segundo Bibiana. Mas os cientistas ainda vão descobrir qual a validade delas para produção da gordura.
Futuro da empresa
Este mês, a FDA (Food and Drug Administration, a Anvisa americana) aprovou a comercialização de frango cultivado em laboratório, a partir de células animais, pela empresa GOOD Meat. A Singapore Food Agency, Anvisa de Singapura, deu a mesma autorização em janeiro.
Por aqui, Bibiana e Sergio aguardam o desenrolar do processo de autorização para comercialização de sua gordura. Eles estão no primeiro passo desta jornada: está aberta uma consulta pública no site da Anvisa, através da qual a agência recolhe críticas e sugestões sobre o produto.
A dupla afirmou ao Giz Brasil que investiu mais de um milhão de reais “do próprio bolso” para fundar a empresa, mas hoje existem investidores. Também há colaborações voltadas para a troca de figurinhas – porque “quanto mais a gente atua de forma colaborativa, mais a gente amplia o acesso ao conhecimento e aos laboratórios”, afirma Sergio.
Parcerias em vista
Uma parceira da Cellva é a Givaudan, indústria química da Suíça que atua no mercado de aromas e fragrâncias. Outras parceiras são a Universidade Federal do Paraná (UFPR) e a GFI Brasil, ONG mantida com recursos filantrópicos que apoia o desenvolvimento do setor de proteínas alternativas.
Atualmente, a dupla enfrenta certa limitação de espaço, mas pretende construir uma fábrica para a produção da gordura artificial até o final de 2025 – e tem a meta ambiciosa de produzir 11 mil toneladas de gordura até 2030, desde que dê tudo certo com a Anvisa.
Por enquanto, o céu parece o limite. Veja só: como a dieta das células é controlada pelos pesquisadores, eles podem ajustá-la para tentar atingir resultados diferentes. Por isso, a equipe de pesquisa está testando diferentes alimentos para as células para obter diferentes tipos de gordura artificial, com um teor maior ou menos de gordura saturada.
Isso significa que a Cellva poderia trabalhar com gorduras customizadas on demand, atendendo a pedidos de outras empresas, além de montar seu próprio catálogo com diferentes formulações de gordura suína. Mas estas são possibilidades que ainda estão em aberto. Afinal, o próximo passo (essencial para a viabilidade dos planos) é comprovar a segurança do produto.