Gótico suave: ícone do Halloween, morcego nem gosta tanto assim de sangue e é o único mamífero capaz de voar
Reportagem: Natasha Pinelli / Instituto Butantan
Ingrediente de poção mágica no caldeirão da bruxa, disfarce para vampiro sugador de sangue atacar no meio da noite, guardião do portal que leva até o coisa ruim. São tantas as lendas em torno do morcego que fica fácil entender por que a reputação do bichinho não é das melhores. Com a chegada do Halloween, celebrado em 31 de outubro em boa parte do mundo, os supostos poderes sobrenaturais do animal parecem ganhar ainda mais força. Mas será que toda essa má fama faz sentido ou está mais para roteiro de história de terror?
“O Dia das Bruxas é aquela época em que muitas pessoas se fantasiam de morcego e até utilizam sua imagem na decoração da casa, só que no restante do ano ele não é tão tolerado assim – o que é uma grande besteira, porque estamos falando de um bicho totalmente fascinante”, defende a pesquisadora científica e diretora do Museu Biológico do Butantan, Erika Hingst-Zaher.
Tudo bem que, de vez em quando, ele até arrisca experimentar um sanguinho, mas quando isso acontece os alvos preferidos são aves, bois, vacas e cavalos. Para se ter ideia de quão raro o evento pode ser, das 178 espécies de morcego existentes no Brasil, apenas três possuem hábito hematófago – ou seja, se alimentam do sangue de suas presas.
A culpa é da evolução
Os cientistas acreditam que o ancestral dos morcegos foi um pequeno mamífero quadrúpede que habitou o planeta Terra há mais de 80 milhões de anos. Esse animal – que ainda é estudado pelos cientistas e não tem uma espécie definida até o momento – vivia principalmente nos galhos das árvores e mantinha hábitos noturnos, saindo durante a noite para se alimentar a fim de evitar concorrência na busca por comida e despistar seus predadores.
Ao longo de milhares e milhares de anos, o ancestral dos morcegos foi perdendo e ganhando características até chegar à “forma” como o conhecemos hoje. O fato de o morcego gostar de dormir de ponta cabeça durante o dia e sair para zanzar à noite está longe de ser um sinal de pacto com o tinhoso: é, sim, um comportamento herdado de seu ancestral distante, ou seja, uma mera questão evolutiva.
Aliás, a posição inusitada como ele descansa também contribui para uma de suas façanhas mais incríveis: voar – e voar de verdade, batendo asas e tudo, não “só” planando como, por exemplo, algumas espécies de esquilo fazem por aí.
Ficar de cabeça para baixo facilita o início da revoada, uma vez que o momento de alçar voo é um dos que mais demandam energia. “O morcego não consegue dar aquela corridinha inicial como fazem as aves, porque possui patas traseiras bem pequenas, herança do seu antecessor quadrúpede. A solução, então, é se jogar”, explica Erika. E detalhe: ficar pendurado é mesmo relaxante, pois os dedos do querido “travam na pose” naturalmente e seu sistema circulatório é adaptado para que o sangue não se acumule na região da cabeça.
Outra adaptação essencial para o voo do morcego são as asas aerodinâmicas, formadas a partir de cinco dedos – incluindo um polegar opositor com unha – que se unem por uma membrana flexível, chamada “membrana alar”. Apesar de não enxergar tão bem, o animal consegue se orientar perfeitamente na escuridão por meio de um sofisticado sistema de ecolocalização. Ao emitir sons de alta frequência que retornam em eco, ele compreende a distância de suas presas, quais obstáculos evitar e as opções de rota para seguir.
Além de comerem insetos e contribuírem para o equilíbrio do ambiente, os morcegos, em sua maioria, se alimentam de néctar e frutas – o que os torna essenciais para a polinização de plantas como banana, manga e figo. Ao sugarem o néctar das flores, eles carregam pólen de uma flor para outra, permitindo sua reprodução. Já quando ingerem frutas, as sementes passam pelo trato digestório e saem pelas fezes. “Os morcegos ajudam a plantar as florestas por meio do seu cocô”, brinca Erika.
Sociáveis, as criaturas da noite também gostam de viver em grupo e “penteiam” uns aos outros. Já as fêmeas amamentam seus filhotes nas axilas, pois suas mamas ficam localizadas bem embaixo das asas.
Os morcegos e o Halloween
A festa que hoje é marcada por doces e fantasias tem raízes em tradições antigas do povo celta, conhecido por ter vivido na região onde hoje é a Europa há mais de 2.000 anos. No passado, a celebração era conhecida como Samhain e marcava o fim do período das colheitas, sinalizado pela chegada do outono no hemisfério Norte.
A crença era que naquela noite especial a fronteira entre o mundo dos vivos e dos mortos se tornava mais tênue, permitindo a comunicação com os seres do além. Fogueiras eram acesas para afastar os maus espíritos e em agradecimento ao que fora colhido. Com isso, as chamas atraíam mariposas e outros insetos noturnos que, por sua vez, convidavam os morcegos a se aproximar. Naturalmente, os celtas começaram a associar as criaturas voadoras ao festival da colheita, e avistar o mamífero voador no céu noturno tornou-se parte do Samhain tanto quanto os fantasmas.
Com o tempo, a tradição se misturou com a cultura cristã e deu origem ao chamado Dia de Todos os Santos, comemorado em 1º de novembro. A noite anterior à celebração, 31 de outubro, passou a ser conhecida como All Hallows’ Eve (véspera de Todos os Santos, em inglês), que depois se tornou Halloween.
Referência:
International Bat Conservation. Bats in the night: unraveling the ancient connection to Halloween
Esta matéria foi validada pela pesquisadora científica e diretora do Museu Biológico do Butantan, Erika Hingst-Zaher.