Nem sempre o jornalismo pode ser tão ético quanto gostaria

Denúncias de corrupção e violação aos direitos humanos têm sido marcas de grandes eventos esportivos. Manter uma cobertura relevante sem fechar os olhos para o que há fora do estádio é desafio para a imprensa
Campo de futebol
Campo de futebol Imagem: Unsplash

Fui durante muitos anos editor, e depois editor-executivo, da Trivela, que ainda hoje (não tenho mais nenhum envolvimento com o site) é de longe o melhor site de futebol do Brasil.

Independentemente da qualidade do conhecimento sobre futebol, o site sempre primou por levar em consideração questões que o torcedor médio prefere ignorar. Reportou com atenção, por exemplo, as denúncias de estupro contra Cristiano Ronaldo, e sempre se posicionou com vigor com relação a casos de machismo, homofobia e racismo no esporte.

Em 2008, quando a Olimpíada foi realizada em Pequim, a Trivela não cobriu o torneio, em protesto contra as numerosas violações aos Direitos Humanos promovidas pela China. É claro que perdemos audiência, mas o torneio olímpico de futebol é uma espécie de Estadual, só chama a atenção se o seu time chegar na final (o Brasil foi bronze naquela edição, acabo de saber pelo Google).

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Pensei nisso esses dias ao me deparar com o insolúvel dilema da cobertura da Copa do Mundo do Catar. A começar pelo óbvio: para um site que vive de cobrir futebol, é simplesmente impossível não cobrir a Copa do Mundo, mesmo que ela seja disputada no inferno. Que deve ser um lugar parecido com o Catar, aliás, talvez não tão quente.

As questões éticas são numerosas, a começar pelo processo que levou à escolha do país como sede da Copa do Mundo, no qual há numerosas suspeitas de que os votos foram, digamos assim, trocados por valores monetários.

Nada, neste caso, que não tenha acontecido antes. Mas não para por aí. Os salários de fome oferecidos aos trabalhadores imigrantes e os numerosos casos de operários mortos em decorrência das condições de trabalho são outra questão — embora haja dúvidas sobre o número de operários mortos. (Esta HQ do David Squires no The Guardian mostra o caso de um deles, que morreu no alojamento, portanto não entra na conta dos “mortos trabalhando pela Copa”).

Por fim: como realizar, em 2022, um torneio internacional em um país em que a homossexualidade é crime?

Muitas das questões desta Copa, é verdade, não são novidade. A Fifa promoveu uma Copa na Argentina em 1978, no auge de uma ditadura militar que sequestrava e matava até crianças e recém-nascidos, e a corrupção na escolha das sedes do torneio é notória. Estamos, entretanto, em 2022, e as questões são mais numerosas, e atingem o direito de torcedores do mundo todo de assistirem aos jogos de seus times. A não ser que se “disfarcem”.

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Questões como esta acabam sendo numerosas na cobertura de esportes, na qual as empresas têm múltiplos papéis, que muitas vezes são antagônicos entre si. A ESPN americana, por exemplo, foi muito criticada há alguns anos por seu papel apagado na cobertura dos casos de concussão na NFL.

O contrato da empresa com a liga americana é provavelmente um dos maiores do mundo, se não for o maior, e as investigações, se os EUA fossem um país sério, ameaçavam a própria sobrevivência do esporte.

Outro caso clássico é a maneira como a Globo ignorou por anos os claros indícios de que a CBF era dirigida por uma quadrilha, já que dependia da mesma CBF para manter o lucrativo contrato do Brasileirão. A simplificação, no final, é sempre a mesma: o consumidor quer, se eu não der, alguém vai dar, e eu preciso dessa audiência/desse dinheiro.

Não deixa de ser verdade, mas oculta uma questão fundamental para quem além de jornalismo oferece entretenimento, que é a separação entre uma coisa e outra. No passado, era simples e possível, porque falávamos apenas de separar redação e publicidade. Hoje, em muitos casos, como os citados de Globo e ESPN, é impossível. Um contrato com uma liga profissional no mundo hipercompetitivo da mídia de hoje pode significar a diferença entre continuar existindo ou não. E o público, no final, muitas vezes não vê diferença entre torcer para um estuprador se ele estiver fazendo gols, como deixam claro as defesas entusiasmadas de Robinho e Cuca por torcedores.

Há porém numerosos veículos que não dependem de contratos de transmissão, mas que mesmo assim precisam acompanhar eventos e personagens que estão muito longe do ideal. Alguns dedicam espaço a cobrir os problemas, as falhas, alguns inclusive conseguem se colocar ao lado de campanhas humanitárias. A maior parte, porém, tem que lidar com esta dicotomia entre valores humanos e éticos e o interesse/desinteresse do público.

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Este Giz não cobrirá a Copa, mas trará conteúdos relacionados a ela. Diferentemente da Trivela, o Giz nunca levantou bandeiras, e isto tem a ver com a história do site, com o público que atinge e com as assuntos que cobre.

Tem a ver também com esta separação entre notícia e opinião: este aqui é o único espaço de opinião do Giz, e ele é eventual. É claro que nunca deixaremos de noticiar ou repercutir as numerosas notícias sobre trabalho escravo que pipocam sobre os principais fabricantes de eletrônicos, assim como eu sempre trarei aqui as questões éticas envolvidas nas coberturas.

Tem muita gente no Brasil que deixou de torcer pela seleção há algum tempo, por diversos motivos. A desconexão entre os jogadores e a torcida é o maior deles. Esta desconexão ainda não aparece no amor pelo time do coração, que é muito menos racional — a maior parte torcedores de futebol minimamente apaixonados têm identidade muito maior com seu time do que com sua seleção.

Os casos de times europeus vendidos para governos ou bilionários absolutamente inescrupulosos e que mesmo assim continuam merecendo o amor de seus torcedores mostra que as considerações extra-campo ainda são secundárias para a maioria.

É uma questão profunda e enorme, que obviamente não está circunscrita ao futebol, ou à fabricação de eletrônicos, e no final o que importa é: qual é a melhor maneira de mudar isto, mesmo que a longuíssimo prazo? O boicote é uma posição forte, mas infelizmente atinge poucas pessoas.

Não vai ser da noite pro dia que isto vai mudar, mas não vai mudar se a gente não mostrar a história dos numerosos Rupchandra Rumba — imigrante nepalês de 24 anos cuja morte súbita, em 2019, provavelmente ao calor excessivo durante o trabalho em obras da Copa do Catar, foi atribuída a “causas naturais”.

Caio Maia

Caio Maia

Caio Maia é o publisher da F451 e do GizBr. Escreve a cada duas semanas sobre mídia, e quando os editores deixam escreve sobre outras coisas também. Passou pela Folha e depois fez Trivela, revistas ESPN e Sustenta! e uma lista longa de blogs, sites e podcasts.

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