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No futebol, tudo está à venda – e se está à venda, a Nike compra

O anúncio do contrato de patrocínio da seleção alemã de futebol com a Nike e a saída da Adidas desmorona um símbolo nacional de 70 anos
Imagem: Filip Baotic/Unsplash

Pouco depois do fim da 2ª Guerra Mundial, a Alemanha estava devastada. Tinha perdido 8 milhões de pessoas na guerra que ela própria começou. Tinha sido dividida como um pedaço de carne entre os vencedores da guerra. Praticamente todas as cidades históricas foram reduzidas a escombros. O orgulho alemão que tinha iniciado duas guerras estava em pedaços. Foi nessa Alemanha que nasceu a Adidas e é por conta disso que o anúncio do contrato de patrocínio da seleção alemã de futebol com a Nike beira o inacreditável.

O negócio familiar de dois irmãos, Gebrüder Dassler Schuhfabrik, (”Fábrica de sapatos irmãos Dassler”) foi o ponto de partida do que viria a ser a Adidas. Na década de 1920, os irmãos Adi e Rudolf, achavam que conseguiriam fazer calçados para esportistas terem melhor desempenho.

Imediatamente seus produtos começaram a ser conhecidos pela leveza, e não só foram usados por esportistas alemães nos jogos de 1928 e 1936, como também de estrangeiros. E foi com usando os tênis dos irmãos Dassler que o americano Jesse Owens conquistou quatro medalhas de ouro, deixando Hitler humilhado.

Depois da tragédia da guerra, Adi e Rudolph decidiram se separar. Adi criou a Adidas, e Rudolph, a Puma, hoje dois dos maiores produtores de material esportivo no mundo.

E por que a Adidas é importante para a Alemanha?

Adidas é mais do que uma marca para muitos alemães; é parte de sua identidade nacional e orgulho. Fundada em 1949 em Herzogenaurach, Baviera, foi a Adidas que calçou os alemães — mesmo quando eram duas “Alemanhas” — de todos os Mundiais de lá até aqui. Os campeões mundiais levantaram a taça usando Adidas.

A imagem de Franz Beckenbauer na final da Copa de 1966 e 1974 faz parte da cultura pop alemã. A empresa foi uma das marcas alemãs que virou líder global e ajudou os alemães a recuperar o orgulho, com inovações tecnológicas e iniciou o trend da indústria patrocinando atletas.

Hoje a federação alemã anunciou um novo contrato com a Nike que entrará em vigor a partir de 2027 e durará sete anos. Bernd Neuendorf, o presidente da entidade, disse que continua “fortemente comprometido” com a Adidas até 2027 (inclusive na disputa da Euro 2024). E justificou o negócio dizendo “que era uma proposta muito superior financeiramente”. “Eu sinceramente não consigo imaginar [a Alemanha usando Nike], disse o ministro da economia, Robert Habeck, ao comentar a notícia. “Eu acho que deveria haver um pouco mais de patriotismo”, completou.

O que representa a  Nike no futebol

A primeira coisa que me veio à cabeça — óbvio — foi me lembrar que a Nike é a única empresa de material esportivo que eu sei que foi investigada por corrupção em seu próprio país, além de toda a lama envolvendo a CBF há décadas, período entre as quais se fizeram algumas das mais horrorosas camisas da Seleção. Mas depois, apurando a notícia, vi que a Nike não é a única empresa na situação. Mas ainda assim, a imagem que a Nike tem para mim é manchada.

A segunda coisa que me veio à cabeça foi pensar em qual a necessidade de uma federação rica em um país rico, que não tem acionistas e cujo maior patrimônio não pertence a ela, precisa assinar um contrato só porque ele paga mais. Sim, é a mesma lógica pela qual a CBF rifou a Seleção Brasileira — de que atletas patrocinados pela marca tinham preferência nas convocações, direito de explorar amistosos em campanhas de marketing, etc.

Não é preciso argumentar sobre como é cinzento o passado da Nike com o Brasil, onde já teve até CPI batizada com o nome dela (para não falar na operação que prendeu o ex-presidente da CBF na Suíça).

Passado o choque, veio uma certa melancolia. O futebol é um negócio há muito tempo. Quem já cobriu ou trabalhou com futebol sabe que achar um atleta que realmente se preocupe com seu clube é dificílimo. Agentes que pagam bola para diretor facilitar transação é quase default.

Sim, eu sei de tudo isso, mas um futebol onde Umbro e Adidas não vestem Inglaterra e Alemanha me parece demais. É imaginar o Carnaval do Rio patrocinado por uma vodka russa ou algo assim. Clubes venderem até a mãe por mais dinheiro eu lamento, mas entendo, mas uma federação podre de rica como a alemã não precisa de dinheiro extra. Dinheiro, diga-se, conseguido com um símbolo do povo alemão, símbolo que a federação só explora. E agora, visivelmente, sem a menor vergonha.

O que será da Alemanha com a Nike no futebol

A Alemanha com a Nike, para mim, está totalmente em linha com uma Copa do Mundo com 64 países, uma Liga dos Campeões com fases de grupo ampliadas para ter mais tempo de TV a se vender e com o maior craque da atualidade aceitar que o califa ou o cazzo que seja venha pôr uma roupinha folclórica nele só para mostrar como no Catar quem manda é ele (como se ninguém soubesse). Ex-jogadores em atividade aceitarem ir jogar no regime mais autoritário do mundo para ganhar centenas de milhões, eu entendo — para eles, vale tudo.

Mas o próximo capitão da Alemanha usando uma camisa roxa com um rinoceronte amarelo porque um focus group do marketing da Nike disse que vende mais, não, não dá para engolir.

Point Blank

História Numa copa dos anos 80 (se não me engano), havia uma propaganda nas revistas brasileiras que dizia: “Imagine a Copa sem 18 times. Agora imagine o Mundial sem a bola. Pronto, você imaginou uma Copa sem a Adidas”.

Enquanto isso… A Nike faz o vídeo mais sensacionalmente flopado da história das Copas para marquetar seus patrocinados, em 2014. Você não se lembra do videozinho onde Ronaldo era o técnico e David Luiz leva a bola até a linha do próprio gol para sair driblando? Não se lembra? Eu GARANTO que os brasileiros que estavam no 7 a 1 se lembram. Puro Schadenfreude (cheque aqui).

Filme A história dos irmãos Dassler, Adidas e Puma virou filme. Não é fantástico cinema, mas a história é bem legal. Cheque abaixo.

Cassiano Gobbet

Cassiano Gobbet

Jornalista, vive na trilogia futebol, tecnologia e (anti) desinformação. Criador da Trivela, ex-BBC, Yahoo e freelancer em três continentes. Você o encontra no Twitter, Bluesky ou por aí.

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