Colunistas

O bizarro jogo Chile x “Ninguém” após o golpe de Pinochet em 1973

Vídeo raro no YouTube registra momento em que o time chileno faz um gol simbólico nos adversários ausentes. Conheça a história

O sangrento golpe de estado no Chile comandado pelo general Augusto Pinochet há 50 anos provocou um dos momentos mais bizarros da história do futebol: a classificação da seleção chilena para a Copa do Mundo de 1974 jogando – e marcando um gol – contra um “time invisível”.

whatsapp invite banner

Quem deveria estar em campo era a União Soviética. Mas as autoridades comunistas (da política e do futebol) proibiram a equipe de viajar ao Chile por causa do uso do Estádio Nacional de Santiago como campo de concentração e execuções de opositores ao novo regime de extrema-direita do general Pinochet.

Antes de contarmos como os fatos se desenvolveram até essa farsa esportiva, vejamos o vídeo do gol de Valdés no jogo contra ninguém em 21 de novembro de 1973, no Estádio Nacional. Um momento tragicômico.

“Aquilo foi uma vergonha”, declarou anos depois Carlos Caszely, atacante que era o maior ídolo do futebol chileno na época (levou o Colo Colo de Santiago ao vice na Libertadores). 

Além de craque, Caszely era (e é até hoje) esquerdista assumido e apoiador do presidente deposto Salvador Allende – socialista eleito legitimamente em 1970 e levado a se matar ao se ver encurralado durante o cerco das forças de Pinochet.

O dia do golpe

Logo cedo, em 11 de setembro de 1973, o Palácio de La Moneda – sede do governo do Chile – sofreu ataques e bombardeios de tanques e aviões-caça. Era a realização do golpe militar que vinha sendo esboçado havia meses. 

O presidente socialista Salvador Allende via seu governo afundar aos poucos em crises econômicas (algumas fabricadas, como a greve de caminhoneiros que teve apoio financeiro da CIA, a agência de espionagem dos EUA). No clima de tensão, os militares comandados pelo general Pinochet partiram para a ação.

Os golpistas venceram e tomaram o poder. A vitória foi sacramentada com o suicídio do presidente Allende, que apontou para a cabeça um fuzil russo AK-47 que, supostamente, era um presente do ditador cubano Fidel Castro. Se não se matasse ali, quase certamente Allende teria sido fuzilado pelas tropas de Pinochet.

Os militares golpistas começaram a prender qualquer um que fosse (assumido ou suposto) comunista, socialista, não simpatizante ou apenas tivesse a aparência de subversivo. Presos eram levados para o Estádio Nacional – onde o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 1962 – para serem trancafiados, torturados ou fuzilados.

Estima-se que 4 mil pessoas tenham ficado confinadas no Estádio Nacional nos quase dois meses em que o campo de concentração improvisado funcionou. Destas, cerca de 400 foram executadas no círculo central do gramado – pintado de preto para esses eventos.

O cantor e compositor Victor Jara, o mais popular artista da música chilena na época, foi longamente torturado, teve as mãos amputadas e ordenado a tocar violão assim, e teve sua agonia encerrada ao ser morto nas dependências internas do estádio. 

Jogadores sob tensão

Naquela manhã tensa de 11 de setembro, os jogadores da seleção chilena deveriam se apresentar no centro de treinamento da federação para embarcarem à noite para Moscou, onde iriam disputar a primeira partida da repescagem das Eliminatórias da Copa do Mundo contra a União Soviética.

Os poucos que se apresentaram foram mandados de volta para casa com uma enorme sacola onde estava escrito “membro da seleção chilena” para que não fosse preso ou morto na rua pelas forças militares.

Leonardo Véliz, ponta-esquerda e homem de esquerda, nem botou o nariz para fora. “Quando soube que Allende tinha morrido, fiquei em casa e não saí por três dias. Era perigoso demais”, relembrou Véliz ao jornal britânico The Guardian em 2015.

Véliz e os outros convocados se apresentaram para o embarque para Moscou em 15 de setembro. Era o primeiro avião a deixar o Chile desde o dia do golpe. O novo regime proibiu que chilenos saíssem do país, exceto neste caso esportivo.

Inicialmente, o novo regime chegou a pensar em não deixar o time viajar até o império comunista. Logo em seguida, achou-se melhor deixar a viagem acontecer para que o Chile provasse sua superioridade sobre os soviéticos.

Na capital russa e soviética, os perrengues continuaram. Tanto como guerra de nervos pelo jogo como pela antipatia dos comunistas pelo novo regime de direita chileno, os jogadores foram maltratados. 

O ídolo Caszely passou algumas horas detido no aeroporto porque alegaram que ele não se parecia com a foto do passaporte. É que o atacante tinha deixado crescer um vistoso bigode desde que a foto do documento foi tirada.

As Eliminatórias da Copa 

De continentes diferentes, Chile e União Soviética foram colocados frente a frente por causa do regulamento das Eliminatórias que a Fifa montou para a Copa de 1974. Pela primeira vez, o vencedor de um grupo sul-americano enfrentaria o vencedor de um europeu por uma vaga no mundial.

O Chile venceu o Grupo 3 sul-americano enfrentando apenas o Peru porque a Venezuela desistiu. Cada seleção venceu em sua casa e, num jogo-desempate em Montevidéu, os chilenos venceram os peruanos por 2 a 1. 

Já a União Soviética conquistou o Grupo 9 europeu, superando França e Irlanda. 

Em 26 de setembro de 1973, União Soviética e Chile foram a campo em Moscou para a primeira partida da repescagem. Os favoritos da casa não conseguiram a vitória que era esperada: 0 a 0. 

O jogo teve como árbitro o brasileiro Armando Marques, muito famoso aqui nos anos 1960 e 1970 por seus trejeitos, voz fininha e vontade de aparecer na TV nas horas vagas. 

Anti-comunista declarado, Marques teria feito vistas muito grossas para as botinadas dos defensores chilenos nos soviéticos. Não dá para confirmar porque não existe um vídeo sequer dessa partida.

Após esse jogo, os soviéticos já começaram a afirmar que não jogariam a segunda partida se ela fosse marcada para o Estádio Nacional de Santiago. Poderiam até comparecer em outro estádio chileno, mas não no que vinha servindo de campo de concentração.

É claro que o governo de Pinochet e a federação insistiram que o jogo teria de ser no Estádio Nacional e ponto final. Tentando resolver o impasse, a Fifa buscou outras saídas e a Espanha do ditador de direita Francisco Franco se ofereceu para realizar a partida. No fim, prevaleceu a vontade dos chilenos.

O “gol”

A federação chilena organizou tudo como se uma partida normal fosse acontecer. Vendeu até ingressos. Na preparação, os militares transferiram os prisioneiros do Estádio Nacional e, em 7 de novembro, o local foi desativado como campo de concentração.

Na tarde de 21 de novembro de 1973, onze jogadores do Chile entraram em campo com o trio de arbitragem para enfrentar a União Soviética. Mas os jogadores soviéticos estavam em seu próprio país. A Fifa multou a federação soviética em cerca de 100 mil dólares por não ter viajado de Moscou a Santiago.

O W.O. (vitória de uma equipe por não comparecimento do adversário) já estava consumado. Mas os atletas chilenos resolveram entreter os 15 mil pagantes nas arquibancadas. 

O árbitro austríaco Erich Linemeyer apitou o início da partida dos chilenos contra os soviéticos invisíveis. Os jogadores de ataque avançaram rumo ao gol adversário com toques de um para o outro. Na área, conforme eles combinaram, a bola foi passada para o capitão do time, Francisco Valdés, que arrematou para o gol aberto. 

Fim de jogo aos 30 segundos do 1º tempo. Chile 1, ninguém 0. Pelo regulamento para W.O.s, foi conferido ao Chile um placar oficial de 2 a 0.

A classificação chilena para a Copa só foi sacramentada numa reunião da Fifa em 5 de janeiro de 1974. Por 13 votos a favor, cinco contra e duas abstenções, a vaga foi confirmada. No sorteio de grupos, o Chile caiu na chave da dona da casa, a Alemanha Ocidental.

Antes do embarque para a Copa, o ditador Pinochet recebeu a delegação chilena no Palácio de La Moneda. O evento foi marcado pela recusa de Carlos Caszely ao aperto de mão do general. O jogador escondeu sua mão atrás das costas sem fazer cerimônia. 

Caszely está vivo até hoje porque era um ídolo popular muito grande para ser eliminado.

E o craque esquerdista foi o grande protagonista da melancólica campanha chilena na Copa de 1974. Protagonista negativo, diga-se.

Na estreia contra a Alemanha Ocidental em Berlim, Caszely teve a duvidosa honra de ser o primeiro jogador na história das Copas a receber um cartão vermelho. Até 1966, as expulsões eram feitas com gestos e falas do árbitro. E, na estreia dos cartões amarelo e vermelho em 1970, ninguém foi expulso.

O Chile perdeu de 1 a 0 para a Alemanha Ocidental, empatou em 1 a 1 com a comunista Alemanha Oriental e em 0 a 0 com a Austrália. Eliminado na primeira fase.

Pinochet imperou no Chile até que um plebiscito em 1988 optou pela volta à democracia. O ditador transferiu o poder ao civil eleito Patricio Aylwin em 1990. O sanguinário general morreu em liberdade em 2006, aos 91 anos.

Marcelo Orozco

Marcelo Orozco

Jornalista que adora música, cultura pop, livros e futebol. Passou por Notícias Populares, TV Globo, Conrad Editora, UOL e revista VIP. Colaborou com outros veículos impressos e da web. Publicou o livro "Kurt Cobain: Fragmentos de uma Autobiografia" (Conrad, 2002).

fique por dentro
das novidades giz Inscreva-se agora para receber em primeira mão todas as notícias sobre tecnologia, ciência e cultura, reviews e comparativos exclusivos de produtos, além de descontos imperdíveis em ofertas exclusivas