O contrabaixo imenso de Andy Rourke (1964-2023) nos Smiths

Morte de Rourke foi anunciada nesta sexta-feira (19) por Johnny Marr, guitarrista dos Smiths e amigo do baixista desde os 11 anos. Neste texto do colunista Marcelo Orozco, relembramos a sua carreira

Repentina para o público, a morte do músico inglês Andy Rourke, aos 59 anos por câncer no pâncreas, vem nos lembrar que grande contrabaixista ele foi, especialmente em seu trabalho com The Smiths entre 1983 e o fim da banda em 1987. Para ter noção de sua importância, imagine as músicas sem o baixo dele.

A morte de Rourke foi anunciada na manhã de 19 de maio no Twitter por Johnny Marr, guitarrista dos Smiths e amigo do baixista desde que ambos tinham 11 anos de idade. Ele não determinou por quanto tempo Andy conviveu com o câncer, mas considerou “longo” esse período.

A tristeza cria a chance de revisitar o repertório dos Smiths com foco no trabalho de Rourke, que ancorava as músicas em parceria com o baterista Mike Joyce para que Johnny Marr ficasse livre para criar sons densos com a guitarra que quase nunca fazia solos.

Johnny Marr e Andy Rourke. Imagem: Reprodução/Instagram

E, é claro, a execução brilhante e metódica dos três músicos sustentava a poesia solitária, introvertida e mórbida do vocalista Morrissey, em tempos em que não se suspeitava que um dia ele se tornaria um deprimente admirador da extrema direita como é atualmente.

Os amigões

Andrew Michael Rourke, o Andy, nasceu em Manchester, Inglaterra, em 17 de janeiro de 1964. Aos 11 anos, conquistou a amizade de Johnny Marr por causa de música. Andy tinha costurado um patch com a capa do álbum “Tonight’s the Night” (1975), de Neil Young, em seu uniforme escolar.

Os dois amigos se dedicaram a aprender guitarra. Quando Marr evoluiu muito no instrumento, Andy optou pelo contrabaixo. Os adolescentes formaram uma banda com um pé no funk-rock chamada Freak Party. Que durou até Johnny cair fora porque a banda nunca encontrava um vocalista decente.

Em 1982, Johnny conheceu o recluso Stephen Morrissey, que era metido a compor letras e enviar críticas de discos aos jornais musicais britânicos. O guitarrista desenvolto e o poeta que podia cantar começaram a compor juntos e fundaram The Smiths.

Com Mike Joyce na bateria e um baixista chamado Dale Hibbert, os Smiths se apresentaram no The Ritz, em Manchester. Um único show bastou para o tal Hibbert ser mandado embora. E Marr chamou o amigo Rourke para a vaga.

Deu certo de cara. O baixo de Andy parecia caminhar por um labirinto e preenchia todos os espaços que os dedilhados e acordes cheios de Johnny poderiam deixar.

“Hand in Glove”, o primeiro compacto lançado pelos The Smiths em 1983, já trazia a fórmula pronta. Só melhorou nos quatro anos seguintes. Até que Marr finalmente se encheu dos arroubos de prima donna de Morrissey e deixou a banda, que acabou imediatamente.

Andy Rourke em 1984

Rourke teve problemas com heroína e chegou a ser expulso dos Smiths em 1986, sendo chamado de volta duas semanas depois. O dinheiro que foi embora com o vício levou Rourke a entrar na justiça britânica para exigir recebimento de royalties não pagos em 1989.

O baixista fez acordo e saiu com meras 38 mil libras no bolso, muito menos do que poderia receber. O baterista Mike Joyce prosseguiu com seu processo e viria a obter uma quantia bem maior. Mesmo com o dinheiro que recebeu, Andy chegou a declarar falência em 1999.

Pós-Smiths

Com o fim do grupo, Andy não viu problemas em tocar em trabalhos solo de Morrissey em 1989 e 1990. Na mesma época, participou do álbum “I Do Not Want What I Haven’t Got”, da cantora irlandesa Sinéad O’Connor, um sucesso na época.

Rourke também gravaria com o grupo Max em 1992, The Pretenders em 1994 e Ian Brown (ex-vocalista dos Stone Roses) em 2007, entre outros artistas.

Andy Rourke tocando no Clash Club, em São Paulo, em 2007. Imagem: Reprodução/ Ira Margarido

Ele aprimorou uma carreira de DJ. Nessa encarnação, discotecou na casa Clash Club, em São Paulo, em duas vindas em 2007 (maio e novembro). Voltaria a fazer isso na cidade (e também em Santo André, na Grande São Paulo) em 2011 e 2014.

As discotecagens em 2014 foram na época em que ele participou tocando contrabaixo em “How Soon Is Now?” no show do brother Johnny Marr no festival Lollapalooza, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo.

Quanto a tocar em bandas próprias, Andy formou a Freebass com outros dois notórios baixistas de Manchester, Mani (ex-Stone Roses) e Peter Hook (ex-New Order). Durou de 2007 a 2010.

A dupla do The Smiths no Lollapalooza 2014. Imagem: Reprodução/ MP Tour Management

Em 2009, Andy mudou-se para Nova York, onde começou a trabalhar em parceria com o DJ Olé Koretsky. Ambos convidaram Dolores O’Riordan, vocalista do The Cranberries, para formar o grupo D.A.R.K., que lançou um álbum em 2016.

Uma turnê dos Cranberries em 2017 e, em janeiro de 2018, a morte de Dolores impediram que D.A.R.K. gravasse mais material.

Johnny Marr e Andy Rourke, em 2022. Imagem: Reprodução/Instagram

Desde 2019, Rourke se dedicou à banda Blitz Vega, liderada por ele e o guitarrista Kav Sandhu, ex-Happy Mondays (não por coincidência, outro grupo de Manchester). No primeiro ano de atividade, o quarteto lançou três singles e um EP ao vivo.

No ano passado, o Blitz Vega voltou a trabalhar para valer. Em novembro, lançou o single “Strong Forever”, com participação de Johnny Marr na guitarra. O irmão camarada de Rourke já tinha participado de um show três meses antes. Não se sabe ainda se haverá um álbum completo do Blitz Vega.

Rourke nos Smiths: um Top 10

Porém, apesar das atividades individuais, a obra mais marcante de Rourke e as quatro cordas de seu contrabaixo foi realizada com The Smiths. Seguem abaixo algumas provas.

1- Hand in Glove (single, 1983 / álbum “The Smiths”, 1984)

A estreia dos Smiths em disco, há longínquos 40 anos. O baixo afiado de Rourke costura a música, preenche espaços e até faz contraponto à guitarra dedilhada de Johnny Marr.

2- This Charming Man (single, 1983 / coletânea “Best… I”)

O contrabaixo faz jogging através da música, impondo o ritmo ótimo para a pista de dança de pop-rock. A gravação do single está aqui através do videoclipe oficial. Há outra, mais rústica e até mais roqueira que pop, que entrou no álbum “Hatful of Hollow” (1984) e foi gravada no programa de rádio do lendário apresentador inglês John Peel na rádio BBC 1.

Bônus: um vídeo com o canal do baixo de Andy Rourke em “This Charming Man” isolado, para tornar o serviço dele mais explícito.

https://youtu.be/ButMp_BsScg

3- “Heaven Knows I’m Miserable Now” (single / álbum “Hatful of Hollow”, 1984)

Aqui o baixo praticamente “canta”. Uma segunda voz que se destaca no arranjo junto à voz humana de Morrissey. Baixo e vocalista até fazem um “dueto” na estrofe que começa com “What she asked of me at the end of the day”, mais para o final da faixa. O vídeo acima é de uma apresentação no programa de TV “Top of the Pops”, o “Globo de Ouro” britânico.

4- “How Soon Is Now?” (single / álbum “Hatful of Hollow”, 1984)

Enquanto Johnny Marr se diverte com acordes distorcidos pelo efeito de tremolo, Rourke se responsabiliza pela unidade da canção com um baixo nervoso e eventuais “estilingadas” agudas enquanto Morrissey canta sobre sua solidão e timidez.

5- “Nowhere Fast” (álbum “Meat Is Murder”, 1985)

Desde a introdução cortante, Andy comanda o galope rítmico desta faixa que não chegou a se credenciar como um hit dos Smiths. Mas a banda já tinha vários outros e esta ficou de escanteio. Mas é uma boa faixa do segundo álbum (terceiro, se a coletânea de faixas inéditas “Hatful of Hollow” for computada).

6- “Barbarism Begins at Home” (single / álbum “Meat Is Murder, 1985)

O funk (na acepção americana/britânica, não a carioca) dos Smiths. Um prato cheio para Andy Rourke receber a atenção devida. Enquanto ele praticamente faz um solo contínuo, Johnny Marr brinca de ser guitarrista do Chic e Morrissey demonstra sua carência de groove crônica. O vídeo é de uma apresentação no programa de TV “The Tube”.

7- “Bigmouth Strikes Again” (single / álbum “The Queen Is Dead”, 1986)

No rock-pauleira (termo em desuso há décadas, mas vamos ressuscitá-lo aqui) dos Smiths, a precisão da cozinha Rourke-Joyce segura a onda para a guitarra de Marr. A versão do vídeo é ao vivo no programa da TV britânica “The Old Grey Whistle Test”, do canal BBC Two. E marca a presença no palco de um moço chamado Craig Gannon, que foi incorporado pelos Smiths como segundo guitarrista por alguns meses.

8- “I Know It’s Over” (álbum “The Queen Is Dead”, 1986)

Nesta faixa delicada em que Morrissey lamenta sua solidão permanente e parece desejar a morte, o baixo de Andy sofre junto ou tenta consolar o cantor em contraponto. É um arranjo tão íntimo que dá para ouvir os dedos do baixista escorregando sobre as cordas.

9- “There Is a Light That Never Goes Out” (álbum “The Queen Is Dead”, 1986)

Em mais um arroubo mórbido de Morrissey no penúltimo álbum dos Smiths, a história dos amantes num carro que pode ser esmagado por um ônibus de dois andares ou uma carreta é conduzida com sobriedade e realces em pontos cruciais pelo contrabaixo, que abre buracos na “orquestra” tocada em um sintetizador.

10- “Shoplifters Of The World Unite” (single / coletâneas gêmeas “The World Won’t Listen” e “Louder Than Bombs”, 1987)

Quando Johnny Marr decide fazer uma espécie de solo à moda de Brian May, do Queen, ali está Andy Rourke e seu baixo para dar sustentação a la John Deacon. O último grande single dos Smiths, que abriu o ano final da banda em 1987.

 

Marcelo Orozco

Marcelo Orozco

Jornalista que adora música, cultura pop, livros e futebol. Passou por Notícias Populares, TV Globo, Conrad Editora, UOL e revista VIP. Colaborou com outros veículos impressos e da web. Publicou o livro "Kurt Cobain: Fragmentos de uma Autobiografia" (Conrad, 2002).

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