Os pontos de virada da vida de Tina Turner (1939-2023)

Tina foi um exemplo de superação e de feminismo tão perfeito que parece criação de escritor ou roteirista. Mas foi vida real. Leia na coluna de Marcelo Orozco

É fascinante a trajetória da cantora americana Tina Turner, que morreu em sua casa na Suíça em 24 de maio aos 83 anos. Da menina pobre do interior do Tennessee chamada Anna Mae Bullock à cantora-esposa que apanhava em casa e arrasava nos palcos até a estrela pop dos anos 1980 que virou musical da Broadway em 2019, Tina foi um exemplo de superação e de feminismo tão perfeito que parece criação de escritor ou roteirista. Mas foi vida real.

Alguns pontos de virada para Tina Turner podem ser marcados por músicas e momentos de sua carreira na música. Vejamos:

  • 1960: “A Fool in Love”

A menina nascida e criada numa fazenda da pequena Nutbush, no Tennessee, teve de trabalhar na colheita ainda pequena. Com poucos anos, foi largada pelos pais com os sisudos avós paternos, mas logo descobriu que gostava de cantar. E sua voz a levou a integrar a banda do guitarrista Ike Turner com apenas 17 anos.

Ike já era famoso no circuito rhythm’n’blues. Em 1951, ele simplesmente compôs (sem crédito) e tocou no que muitos historiadores consideram “o primeiro disco de rock’n’roll da história”.

A música era “Rocket 88” e foi creditada a Jackie Brenston, que cantou e também foi creditado como único compositor. Seus acompanhantes foram batizados de The Delta Cats, com Ike comandando.

Assim, a moça que adotou o nome artístico de Little Ann conseguiu um baita primeiro emprego fazendo vocais de apoio na banda de Ike, a Kings of Rhythm. Como era nada bobo, o músico percebeu que tinha ali uma cantora bem melhor que suas outras vocalistas.

O guitarrista transformou Little Ann em Tina Turner (e registrou para ele os direitos ao nome) e não só promoveu a garota ao posto de vocalista principal como transformou a banda na dupla Ike & Tina Turner.

O primeiro disco sob esse nome foi o compacto “A Fool in Love”, um rhythm’n’blues lento, poderoso, digno de ser chamado de soul. Com essa performance impressionante, a menina de Nutbush foi deixada de vez no passado.

Tina agora era a estrela do show. Ela se casaria com Ike em 1962 – apenas para apanhar e ser humilhada por ele praticamente todos os dias até sua fuga com a roupa do corpo em 1976. O divórcio saiu em 1978. Ike morreu em 2007, aos 76 anos

Abaixo, uma apresentação de “A Fool in Love”no programa da TV americana “Shindig”, anos depois do lançamento do compacto. Porque Tina ao vivo amplia o poder dos discos.

  • 1965: “The Big TNT Show”

Em 1964, foi realizado um festival no Santa Monica Civic Auditorium, na Califórnia, batizado de T.A.M.I., e o filme (“The T.A.M.I. Show”) com os melhores momentos fez enorme sucesso e consolidou as carreiras de Rolling Stones, James Brown, Marvin Gaye e The Supremes para um público mais amplo. O pioneiro Chuck Berry e os já estabelecidos nas paradas Beach Boys também participaram.

Os produtores quiseram repetir a dose em novembro de 1965 em Los Angeles com “The Big TNT Show”. Entre os artistas, estavam Ray Charles, The Byrds, Joan Baez e The Ronettes. Mas foi The Ike & Tina Turner Revue acabou escolhido para encerrar o filme, lançado em 1966.

A apresentação explosiva de Tina tinha o mesmo efeito de deixar o público boquiaberto que o show de James Brown um ano antes. Tina até canta “Please Please Please”, marca registrada de Brown. São nove minutos para ver e ficar sem fôlego.

  • 1966: “River Deep – Mountain High”

Tina bota o pé no pop, embora ainda com forte sabor de soul. E se já tinha de conviver com um monstro que era seu marido, a cantora trabalhou com outro neste compacto – o insano produtor Phil Spector, cuja obsessão por armas acabou como previsto: em 2003, matou a atriz Lana Clarkson e morreu na cadeia em 2021.

Mas, em 1966, a reputação de Spector como mago dos estúdios era enorme. E ele quis fazer a maior música e todos os tempos com Tina, cheia de camadas de instrumentos típicas dele, mas mais distorcida que os hits mais antigos dele com The Ronettes, por exemplo.

O vídeo é do videoclipe da época, quando não se dava muita atenção ao produto final. Vale pela música.

  • 1969: turnê com os Rolling Stones

Em 1969, os Rolling Stones partiram para uma turnê pelos EUA, a maior de uma grande banda de rock até então, e chamaram Ike & Tina para os shows de abertura. A dupla não só aquecia as plateias como Tina pôde ser observada atentamente por Mick Jagger, que absorveu como esponja os movimentos de palco e os imitaria no palco pelo resto da carreira.

No documentário “Gimme Shelter”, lançado em 1970, Tina tem seu momento de destaque com uma performance – quase X-rated de tão sugestiva – de “I’ve Been Loving You”, cover do gênio do soul Otis Redding (1941-1967).

  • 1971: “Proud Mary”

Como as pessoas iam aos shows por causa de Tina e não por causa de Ike, ela ganhou confiança para dar mais pitacos no repertório e quis fazer uma versão rhythm’n’blues de “Proud Mary”, sucesso enorme da banda de rock Creedence Clearwater Revival em 1969.

Tina praticamente tomou posse para sempre da música, que se tornou referência em sua carreira – embora a versão original do Creedence ainda seja muito ouvida até hoje. O vídeo é de uma apresentação ao vivo no programa Beat Club, da TV alemã.

Você pode assistir à apresentação clicando aqui.

  • 1975: “Acid Queen”

No bagunçado filme “Tommy” (1975), a versão do diretor inglês Ken Russell para a ópera-rock lançada em disco pela banda The Who em 1969, Tina tem uma das duas partes mais marcantes do filme (a outra é Elton John cantando “Pinball Wizard”), encarnando a Rainha do Ácido, personagem que faz gato e sapato do personagem principal Tommy (Roger Daltrey, vocalista do The Who).

Sem Ike Turner por perto em cena, Tina brilha sozinha e demonstra que para se livrar do abusador só dependia dela mesma. E ela finalmente tomou a decisão no ano seguinte, fugindo somente com a roupa do corpo e sem saber o que fazer da vida.

Até trabalhou de faxineira por algum tempo, mas seguiu sua carreira de shows e discos, embora sem qualquer destaque. Demorou algum tempo para que a indústria da música se lembrasse de seu talento e de tudo que ela poderia oferecer com produção de primeira.

  • 1984: “Let’s Stay Together”

O retorno de Tina. Muito mais pop que antes, com produção de alto nível, repertório bem composto, imagem misturando requinte e espalhafato rock em doses equilibradas. E é a Tina Turner mais marcada na memória da esmagadora maioria do público desde então.

O álbum “Private Dancer”, cheio de hits, é uma das maiores voltas por cima do pop. E tem a brilhante cover de “Let’s Stay Together”, do mestre do soul Al Green, que Tina transforma em sua marca registrada, só para variar.

  • 1985: “Mad Max”

Tina teve sua maior experiência no cinema em “Mad Max Beyond Thunderdome” (“Mad Max – Além da Cúpula do Trovão”), terceiro filme da franquia de fantasia estrelada pelo ator Mel Gibson desde 1979. A cantora é a vilã do longa-metragem e também canta a música-tema “We Don’t Need Another Hero”, um dos maiores e mais duradouros sucessos de sua carreira.

Apesar dos elogios que recebeu, Tina não quis prosseguir como atriz e recusou um papel em “A Cor Púrpura”(1986), do diretor Steven Spielberg.

  • 1986: “Eu, Tina”

Consagrada como estrela pop dos 1980s, Tina lançou sua autobiografia “I, Tina” (no Brasil, “Eu, Tina: A História de Minha Vida”, é claro) com a colaboração do jornalista Kurt Loder, então editor da revista “Rolling Stone” (iria para a MTV no ano seguinte).

O livro serviu para que muito mais pessoas tomassem conhecimento dos horrores que Tina sofreu nas mãos de Ike Turner. Ela se torna um símbolo feminista poderoso a partir daí.

O livro serviu de base para o filme “What’s Love Got to Do with It” (no Brasil, “Tina”), de 1993. A atriz Angela Bassett interpretou a cantora, foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz e venceu o Golden Globe. O título vem da música de 1984 do álbum “Private Dancer”.

  • 1988: Maracanã

Turner entrou para o “Livro Guinness dos Recordes” com seu show em janeiro de 1988 no Maracanã, Rio de Janeiro, para 180 mil pessoas. O recorde que ela registrou foi o de maior público pagante para um show musical de artista solo. Acima, trecho do show com a canção “I Can’t Stand The Rain”.

  • 1989: “The Best”

No álbum “Foreign Affair”, Tina gravou “The Best”, lançada um ano antes pela cantora e guitarrista Bonnie Raitt. Desnecessário dizer que ninguém mais lembra do original porque a cover se transformou numa espécie de hino pessoal de Turner.

Também foi com essa música que ela chamou ao seu palco o piloto brasileiro Ayrton Senna num show em Adelaide, Austrália, em novembro de 1993. Foi horas depois de Senna alcançar sua 41ª e última vitória na Fórmula 1 no GP da Austrália

  • 2019: Broadway

Afastada dos palcos havia anos por problemas de saúde, a cantora se dedicou à produção do espetáculo “Tina: The Musical”, baseado em sua vida e lotado de músicas de sua carreira.

“Tina: The Musical” teve estreia mundial em Londres em 2018. Mas a badalação maior foi quando a montagem chegou à Broadway, a meca dos teatros de Nova York, em 2019. O vídeo acima traz bastidores da noite de estreia, com a estrela acompanhada da apresentadora americana Oprah Winfrey.

Marcelo Orozco

Marcelo Orozco

Jornalista que adora música, cultura pop, livros e futebol. Passou por Notícias Populares, TV Globo, Conrad Editora, UOL e revista VIP. Colaborou com outros veículos impressos e da web. Publicou o livro "Kurt Cobain: Fragmentos de uma Autobiografia" (Conrad, 2002).

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