Pesquisa da USP cria memória inédita que não perde dados em quedas de energia
Imagine a seguinte cena: você está naquela missão impossível do seu game favorito e, quase na hora de vencer o obstáculo mais desafiador, a energia cai e você perde tudo. Nada do que você avançou foi salvo, e você precisará voltar de um ponto mais antigo da jogatina.
É provável que, no futuro, lembremos desse momento com nostalgia. Isso porque uma pesquisa da USP (Universidade de São Paulo) desenvolveu uma nova forma de criar uma nova memória computacional que poderia evitar problemas do tipo. São os memristores, ou seja, sistemas com memória resistiva (ReRAM).
Na prática, é uma tecnologia diferente das memórias de acesso aleatório (RAM), usadas em todos os computadores, videogames e smartphones atuais. Isso porque, com a memória resistiva, os dados gravados nos eletrônicos não somem quando o aparelho é desliga.
Na memória RAM, as informações costumam ficar disponíveis apenas enquanto a máquina está ativa. Por isso, todos os dados voláteis – ou seja, aqueles que estão em andamento – se perdem quando reiniciamos o dispositivo.
No caso da ReRAM, os dados seguem disponíveis mesmo na falta de energia, sem prejuízo de velocidade de acesso e escrita. Essa tecnologia tem tudo para ser revolucionária no mercado porque não usa silício na composição das baterias, o que não traz apenas benefícios do ponto de vista da tecnologia.
“Pode ter um ganho ambiental. Elas operam com tensão baixa, isso indica gasto de menos energia”, disse Marina Sparvoli, pós-doutoranda do Instituto de Física (IF) da USP e pesquisadora à frente do projeto, ao Giz Brasil.
A inovação, que começou a ser pesquisada ainda em 2016, teve o registro aceito pelo Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) em novembro.
Como a memória funciona?
A teoria sobre os mecanismos resistivos foi lançada pela primeira vez em 1971 pelo filipino Leon Ong Chua. Mas foi só a introdução da nanotecnologia, em 2008, que permitiu que começassem a ser testados.
Isso porque os memristores são minúsculos, com algumas centenas de átomos de espessura, e funcionam de forma parecida com as conexões neurais. Seus filamentos podem ocorrer na escala dos nanômetros – ou seja, de milionésimos de milímetro –, o que promete uma infinidade de informações salvas em um espaço minúsculo.
E a sua composição também é diferente. A memória do ReRAM usa estados de resistência alta e baixa que correspondem ao código binário (0 e 1). Nos computadores convencionais, essa escrita é representada pela ausência ou presença de tensão elétrica (∆V) – e não pela resistência (Ω), baixa (0) e alta (1) –, como é o caso da ReRAM.
O segredo está nos materiais
No caso da pesquisa da USP, o mais inovador é o material usado na memória resistiva: o protótipo leva uma camada de grafeno depositada entre contatos de indium tin oxynitride (ITON), um semicondutor ainda pouco pesquisado, e de alumínio, como num sanduíche. Veja abaixo.
ITON é uma variação do óxido de índio e estanho (ITO) — esse último é o material presente nas telas touchscreen. A diferença é que esses elementos são usados em conjunto com o nitrogênio (por isso ITON).
“O nitrogênio modifica as características do ITO quando é agregado a ele”, explica Marina. “Muda a banda proibida ou band gap (que é a energia necessária para o elétron sair da camada de valência para a de condução) e muda condutividade e transmitância”.
O mais comum é depositar o semicondutor por um método conhecido como sputtering – ou pulverização catódica, técnica que deposita materiais para recobrir uma superfície. No caso da pesquisa ReRAM da USP, os materiais são incluídos na memória por “evaporação e recozimento”, uma técnica inédita.
Já o grafeno é uma forma cristalina plana baseada no carbono, um dos elementos mais abundantes na Terra. Apesar de ser ultrafino, é muito resistente e tem uma das melhores propriedades eletrônicas entre todos os materiais.
A eletricidade passa pelos três elementos gerando um campo eletromagnético que, dependendo da tensão, pode formar ou não o filamento responsável pela comutação resistiva.
Potencial ambiental
“Esse é um projeto na fronteira do conhecimento mundial, que terá aplicação no mercado internacional daqui a 10, 15 ou 20 anos”, disse o professor José Fernando Chubaci, que supervisiona Marina no pós-doutorado, ao Jornal da USP.
Segundo ele, a aplicação de ITON em memórias resistivas é 100% inédita. Normalmente, memórias resistivas se baseiam em dióxido de titânio, um sólido que pode ser tóxico.
O uso do grafeno também chama a atenção porque, neste caso, não é ligado como polímero. Isso aumenta sua resistência mesmo em comparação ao ITON, que suporta temperaturas ainda maiores.
Outra vantagem é que o uso do grafeno tende a baratear a produção, uma vez que é feito a partir do grafite. Seria um equilíbrio em relação ao uso do ITON, que pode encarecer a produção por ter índio na composição.
A tendência é que o material possa ser reciclado, mas o estudo ainda não chegou tão longe nas análises. “Nós ainda estamos tentando garantir a memória resistiva, que é o salto de qualidade atual”, explicou Chubaci. “Não se discute ainda a reciclagem. É uma especulação tendo em vista essa preocupação. A possibilidade existe em termos de discussão”.
Qual é o segredo para a resistência
Como são minúsculos, os componentes eletrônicos da memória ReRAM também trazem outros benefícios, como a fabricação de aparelhos muito mais velozes e mais segurança no armazenamento de dados.
Isso porque as memórias resistivas não se limitam aos gargalos do processamento em série. Na prática, isso significa que esses mecanismos têm capacidade para enviar dados simultâneos em vez de “formar filas” nas transmissões internas.
Além disso, os arquivos salvos teriam chances bem menores de serem apagados acidentalmente. Hoje, os dados que existem em unidades de armazenamento comuns podem ser destruídos apenas ao passar um ímã por perto, por exemplo.
Para destruir a informação armazenada neste tipo de memória, é preciso aplicar uma forma muito específica de campo magnético que não existe na natureza.
Sparvoli já apresentou a invenção em diversos fóruns de ciência, incluindo a Conferência Mundial de Carbono, no Imperial College of Science, em Londres, em julho de 2022. O próximo passo, agora, é testar a influência da luz na memória ReRAM de Iton.
Na pesquisa da USP, todos os testes para executar a memória resistiva acontecerão em estações de provas de semicondutores, já que não existem computadores que suportam essa tecnologia – pelo menos por enquanto.