Pesquisas com seres humanos devem ter novas regras
Texto: Sarah Schmidt/Revista Pesquisa Fapesp
No final de agosto, deve entrar em vigor um novo marco jurídico para a realização de pesquisas científicas com seres humanos no Brasil. É quando será regulamentada pelo governo uma lei federal, sancionada em 28 de maio, que busca acelerar a aprovação de projetos, como os que envolvem ensaios clínicos de novos medicamentos e de tratamentos de doenças. A regulamentação, a cargo do Ministério da Saúde, ainda está sendo elaborada. A nova lei promete tornar a análise dos projetos mais rápida e descentralizada, uma vez que ela deve ocorrer em tramitação única e que os Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) de hospitais e universidades ganharão mais autonomia do que têm hoje. Ao mesmo tempo, os mecanismos que garantem a participação social na avaliação dos projetos podem ser reduzidos.
A lei que abrange todas as áreas do conhecimento determina que o sistema nacional de ética em pesquisa com seres humanos seja composto por comitês de ética de instituições de pesquisa e por uma instância nacional, que ficará subordinada ao Ministério da Saúde. O sistema atual tem uma composição quase idêntica, com atribuições diferentes. Hoje, além de passarem pelos CEP, todos os projetos considerados de alto risco, como aqueles que envolvem genética humana, novos medicamentos ou que tenham coordenação ou patrocínio vindos do exterior, também precisam ser avaliados e chancelados pela instância federal, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), órgão do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Pelo novo regramento, tais projetos devem passar apenas pelos CEP acreditados. A nova instância nacional deverá avaliar eventuais recursos contra decisões dos comitês e terá o papel de treiná-los, credenciá-los e fiscalizá-los.
Seguem valendo os prazos similares aos já estipulados por resoluções recentes do CNS – 30 dias úteis para análise ética da pesquisa, após aprovação da documentação por parte dos CEP, e 90 dias para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que avalia em paralelo as substâncias que devem ser usadas e, caso necessário, autoriza a importação de medicamentos. O processo deve se tornar mais célere ao dispensar a análise da Conep, que tinha mais 60 dias para fazer sua avaliação. “O CEP deverá ter mais autonomia nesse novo cenário. Isso é importante porque ele é um colegiado que domina a cultura daquele local, que conhece de fato aquele hospital ou ambiente”, afirma o farmacêutico e bioquímico Fernando de Rezende Francisco, gerente-executivo da Associação Brasileira de Organizações Representativas de Pesquisa Clínica (Abracro).
Para o médico Paulo Hoff, do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e da Rede D’Or São Luiz, em São Paulo, a dupla camada de aprovação levava a uma demora desnecessária. “Houve melhoras nos últimos anos, lideradas pela Conep. Mas é possível tornar o processo mais ágil”, diz Hoff, que foi ouvido como cientista investigador e integrante da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc) por comissões que analisaram o projeto de lei durante sua tramitação no Congresso Nacional. Segundo a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa Clínica (Interfarma), em 2018, a média de tempo para uma pesquisa clínica ser aprovada no Brasil era de 215 dias, cerca de sete meses, enquanto essa média era de 113 dias na Argentina e 32 nos Estados Unidos. “Somos o oitavo mercado farmacêutico do mundo, mas ocupamos o 20º lugar no ranking dos que mais iniciam pesquisas clínicas. Temos grande potencial de crescer”, afirma Renato Porto, presidente-executivo da Interfarma.
O sistema atual, chamado de CEP/Conep, foi criado em 1996 e é vinculado ao CNS, órgão autônomo ligado ao Ministério da Saúde, com ampla participação de representantes da sociedade civil.
A lei menciona a criação de uma nova instância nacional, que fará o papel da Conep, sob a coordenação da área técnica responsável pelo campo da ciência e tecnologia do ministério, sem fazer referência ao CNS. A possibilidade de haver essa mudança, que reduziria o controle social sobre o sistema, é alvo de dúvidas e de críticas. “Na nossa visão, esse seria um grande equívoco dessa lei”, avalia a fisioterapeuta Laís Bonilha, professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e atual coordenadora da Conep. “Esse não seria o melhor lugar para uma instância, que tem como principal função proteger os interesses dos participantes de pesquisa, estar. Ao se afastar do controle social e ocupar espaços que tenham interesses conflitantes, aumentam as chances de surgir conflitos de interesse”, complementa.
Em sua avaliação, a nova instância, que ainda precisa ser regulamentada, deve ser a própria Conep. “Defendemos sua permanência no CNS. Na nossa interpretação da lei, isso seria possível”, observa Bonilha.
O especialista em bioética Ronildo Alves dos Santos, coordenador do CEP da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, enxerga ganhos e perdas na nova lei. “Finalmente temos uma legislação que trata da ética em pesquisa com seres humanos no Brasil”, afirma. “O grande prejuízo foi a perda de uma maior participação da sociedade com a saída do sistema do CNS”, diz. Outro ponto que ele destaca como negativo é a exigência no número de representantes dos chamados “participantes de pesquisa”, que representam grupos de voluntários que integram os ensaios clínicos, na composição dos comitês de ética. “Atualmente a Conep exige no mínimo dois por comitê, mas a nova lei reduziu para apenas um”, diz.
Houve dois vetos presidenciais ao projeto final da lei, que ainda podem ser derrubados pelo Congresso Nacional. Foi revogada a necessidade de a participação de indígenas nos ensaios clínicos ser comunicada ao Ministério Público (MP), com a justificativa de que isso dificultaria a participação dessa população nos estudos. Outro veto diz respeito ao fornecimento de medicamentos e tratamento a pacientes no pós-estudo, quando a pesquisa é interrompida ou finalizada. O projeto de lei estabelecia um prazo de cinco anos para que o participante que necessitasse do tratamento o recebesse a cargo do patrocinador. Depois desse período, caso o produto chegasse ao mercado, deveria ser fornecido pelo plano de saúde ou pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “O paciente não ficaria desassistido”, diz Rezende, da Abracro. Com o veto, seguem as normas atuais, com prazo indeterminado. “As pessoas que participam de pesquisa clínica têm o direito de ter acesso aos benefícios delas enquanto precisarem. Há casos de pessoas que têm doenças raras e muitas vezes só sobrevivem graças a esses tratamentos”, pondera Bonilha.
Procurado por Pesquisa FAPESP, o Ministério da Saúde informou, em nota, que as instruções normativas decorrentes da publicação da nova lei ainda estão em elaboração. “Por enquanto, até que a lei entre em vigor, o sistema CEP/Conep segue funcionando normalmente”, observa Bonilha.
A reportagem acima foi publicada com o título “Novo marco para pesquisas clínicas” na edição impressa nº 341, de julho de 2024.