Por que reconhecer poluição do ar como causa mortis pode ser o começo de uma mudança
Em uma decisão inédita na quarta-feira (16), um tribunal do Reino Unido decidiu que o ar poluído foi um fator que contribuiu para a morte trágica e prematura de Ella Kissi-Debrah em 2013. Ela é a primeira pessoa no mundo a ter uma certidão de óbito que lista a poluição do ar como causa de morte. A declaração pode reverberar em todo o mundo, à medida que países ricos e pobres tentam combater a poluição.
Kissi-Debrah sofreu episódios de parada cardíaca e respiratória devido a asma grave. Por causa desse problema de saúde, a garota foi frequentemente hospitalizada. Nos últimos dois anos de sua vida, seus pulmões entraram em colapso em cinco ocasiões diferentes, segundo o Guardian.
Na corte legista de Southwark, o médico Philip Barlow disse que a poluição do ar, principalmente do tráfego de automóveis nas proximidades, foi um “fator significativo para a indução e exacerbação de sua asma”.
Ele disse que durante a curta vida de Kissi-Debrah, as emissões de dióxido de nitrogênio e partículas em sua cidade natal, Lewisham, excederam os limites legais estabelecidos pela Inglaterra e pela União Europeia, bem como os limites de segurança definidos pela Organização Mundial de Saúde.
“Toda a vida de Ella foi vivida perto de vias altamente poluentes. Não tenho dificuldade em concluir que sua exposição pessoal ao dióxido de nitrogênio e PM foi muito alta”, disse ele.
Repercussão e consequências
A decisão, inédita no mundo, ocorreu após anos de luta por parte de Rosamund Kissi-Debrah, mãe de Ella, que culminou em um inquérito judicial de duas semanas. A decisão pode inspirar ações semelhantes em outras partes do mundo.
“Na minha opinião, a lição importante aqui é que sabemos que nos Estados Unidos, assim como no Reino Unido e em outras partes do mundo, temos crianças que sofrem injustamente porque estão respirando produtos de queima de combustíveis fósseis. E isso é moralmente errado”, disse Aaron Bernstein, professor assistente de pediatria na Harvard Medical School e presidente do Centro de Harvard para Saúde Climática e Meio Ambiente Global.
“Moralmente errado já seria ruim o suficiente. Mas a realidade é que não são apenas crianças […] seria melhor para todos se encontrássemos uma maneira de nos livrar dos combustíveis fósseis por causa dos danos que eles estão causando à nossa saúde.”
Os dados da Organização Mundial da Saúde mostram que os níveis de poluição do ar permanecem perigosamente altos para 9 em cada 10 pessoas em todo o mundo, e que 7 milhões de pessoas morrem todos os anos devido à exposição ao ar tóxico. Crianças e idosos são os mais vulneráveis aos seus impactos, particularmente em áreas mais pobres, onde moram mais pessoas de grupos étnicos minorizados.
Empresas e governos tendem a instalar suas infraestruturas poluidoras nessas regiões. Kissi-Debrah era negra e, em sua cidade de Lewisham, quase 35% das crianças vivem na pobreza.
Apesar disso, os relatórios de autópsia em todo o mundo não incluíam a poluição como causa de morte — até agora. Bernstein disse que isso se deve em grande parte ao fato de que a linguagem jurídica não se alinha com a linguagem médica, um fenômeno semelhante aos danos agravados pelas mudanças climáticas. “Com esta decisão, espero que mais pessoas prestem atenção.”
“[Cientistas] podem dizer que um fenômeno como o furacão Katrina é mais provável por causa da mudança climática, ou que a onda de calor é mais provável. Da mesma forma, os cientistas olhariam para um caso como este e diriam, ‘bem, a poluição do ar provavelmente aumentou o risco de [Ella Kissi-Debrah] ter asma mais grave, o que significava que ela tinha maior probabilidade de morrer’, mas eles talvez não possam dizer com toda a certeza que a poluição causou a morte de qualquer indivíduo”, ele explicou. “Então, existem padrões legais e existem padrões científicos, mas, no fundo, sabemos que a poluição do ar está prejudicando as crianças.”
O que está listado nos relatórios de autópsia são doenças como parada cardíaca, ataque cardíaco, derrame, doença pulmonar e câncer de pulmão. Esses relatórios, no entanto, não levam em consideração os fatores ambientais. Isso significa que, em última análise, a compreensão dos tribunais sobre a poluição precisa mudar para melhor contabilizar as situações em que está claro que ela contribui para a mortalidade de um indivíduo.
Não há razão para que os relatórios de legistas nos Estados Unidos não possam incluir a poluição como causa de morte, mas Christine James, alergista do Instituto de Asma e Alergia de San Diego que trabalha com a organização de defesa da saúde Climate Health Now, disse que ainda levará algum tempo até que a prática se torne comum.
“Temos um longo caminho a percorrer para convencer as pessoas da ligação entre poluição e saúde”, escreveu ela por e-mail. “Cada vez mais profissionais de saúde estão conscientizando e pressionando nossas comunidades e órgãos legislativos a reconhecerem a relação; no entanto, esta é uma batalha difícil — com a decisão neste caso, espero que mais pessoas prestem atenção.”
Ela espera que o movimento para reconhecer a letalidade da poluição do ar possa levar os líderes mundiais a agirem para contê-la. A comunidade médica não pode fazer muito para tratar os impactos da poluição do ar, como a asma, mas James disse que “em vez de reagir continuamente às coisas, precisamos avançar e adotar uma abordagem preventiva”, reduzindo a poluição.
Embora o caso da morte de Kissi-Debrah não obrigue diretamente o governo do Reino Unido a fazer mudanças, isso pode pressionar os reguladores e as empresas a corrigirem suas formas de atuação. O mesmo pode acontecer em outros lugares também.
Existem inúmeras maneiras de lidar com a poluição do ar. Líderes locais, estaduais e nacionais podem buscar uma melhor aplicação dos padrões legais nacionais e internacionais, estabelecer limites mais rígidos para os níveis de poluição e lançar campanhas educacionais sobre como se proteger das emissões.
Segundo James, para resolver um problema deste tamanho, as autoridades também terão que parar de atender aos interesses dos poluidores, como fabricantes de automóveis, as empresas de petróleo e gás e a indústria petroquímica.
“Estas empresas sempre foram protegidas da responsabilidade desse problema. Mas este caso coloca muito mais pressão sobre elas”, disse James. “E se elas não estiverem dispostas a admitir, esta decisão dá fundamentos para a responsabilização legal delas.”
Gaurab Basu, codiretor do Center for Health Equity Education and Advocacy, disse que essas ações são cruciais do ponto de vista médico.
“Acredito que acabar com o uso de combustíveis fósseis é a intervenção mais crítica que podemos buscar para proteger a saúde das pessoas”, disse ele.