por Joana Varon e Bruna Santos
Desde o dia 11 de março, quando a Organização Mundial da Saúde declarou que estamos vivendo uma pandemia, o Congresso Nacional, ainda que operando de maneira virtual, propôs até 7 de abril, pelo menos 18 novos projetos de lei que operam na interseção entre COVID-19 e tecnologia. Entre os temas estão: direito de acesso à internet, desinformação, proteção de dados pessoais e vigilância.
Com mais pessoas em casa cumprindo isolamento ou distanciamento social, muitas de nós estamos passando mais tempo na Internet e digitalizando, ou intensificando a digitalização, de várias das atividades de nossas vidas que ainda não eram mediadas por tecnologia.
Para quem tem acesso e oportunidade de #FicarEmCasa, a Internet tem ajudado a reduzir distâncias e suavizar a sensação de isolamento. Com as restrições de deslocamento, o home office e as reuniões virtuais estão sendo cada vez mais adotados, assim como a compra online de mantimentos, encontros virtuais com amigos, namorades, crushes, aulas ou sessões de terapia. Nesses tempos difíceis, a Internet está facilitando a articulação de grupos de solidariedade, autocuidado, ativismo, zuêra e riso; além de trazer distrações nos games, filmes e nas milhões de lives, que vão de shows à meditação, aulas de yoga, novas receitas e o que vier.
O vírus da falta de ar e do isolamento que, numa rapidez inimaginável, fez grandes metrópoles globais pararem para um respiro, canalizou grande parte dessa energia de humanos confinados para o formato de dados que recheiam as fibras óticas e ondas de wifi que conectam o planeta. Há quem diga que estamos fazendo um grande upload das mentes humanas para a Internet. E, com isso, vamos alimentando ainda mais o capitalismo das grandes plataformas, que funcionam como extrativistas de dados e da nossa atenção que, muitas vezes, é fisgada pelo escândalo da desinformação ou, simplesmente, pela nível surreal da política nacional.
Como sociedade, já estamos mutando para lidar com a pandemia. Se as tecnologias também são parte dessa mutação e, algumas vezes, em visões simplistas, são até apontadas como a solução, é de se esperar que a legislação, como tecnologia sociopolítica, também tente acompanhar todas essas mudanças de contexto.
Mas 18 novos projetos de lei em poucas semanas, é bastante. Antes, é necessário compreender essas mudanças que estão sendo propostas em um contexto emergencial e que devem delinear as interações em um mundo pós-COVID-19.
Por isso, por meio do nosso radarlegislativo.org, fizemos um levantamento inicial desses projetos, compilados abaixo por eixos temáticos, bem como de algumas respostas da sociedade civil organizada a essas propostas.
Projetos de lei sobre Covid-19 e tecnologia tramitando no Congresso Nacional
É possível ver uma versão interativa do grafo dos projetos aqui
Direito de Acesso à Internet
Mapeamos 9 novos projetos de lei, 8 deles na Câmara dos Deputados e 1 no Senado Federal, tratando de diferentes maneiras de proibir ou dificultar a interrupção dos serviços de conexão à internet residencial, móvel e comercial durante o estado de calamidade pública decorrente da COVID-19, muitos deles considerando o acesso à internet como um serviço essencial.
Projetos de lei que tratam de acesso à Internet em tempos de COVID-19
Existem propostas bastante positivas no que diz respeito à universalização do acesso, principalmente o PL 1201/2020, que tramita no Senado por iniciativa do senador Rogério Carvalho (PT/SE) e visa obrigar operadoras a oferecerem pacotes gratuitos para o período da pandemia.
Outros também bastante protetivos tratam da suspensão de cobrança e proibição de corte. Menos ambiciosos, existem projetos que apresentam a redução da velocidade ou limitação da franquia para 2 GB como alternativa para o corte completo do serviço, ou propõem apenas impedimento de cobrança de multa por quebra de fidelidade e vedação de reajustes.
Recentemente, a Coalizão Direitos na Rede, grupo de 38 organizações que tratam de temas de tecnologia e direitos humanos, entre elas a Coding Rights, encaminhou uma carta reivindicando a garantia de conexão à Internet no momento mais crítico da Pandemia.
A carta foi entregue para as lideranças de partidos na Câmara dos Deputados, no Senado Federal e no Congresso Nacional e destaca que “a telemedicina, a educação e trabalho à distância, o acesso à informação e a liberdade de expressão dependem do serviço de acesso à conexão à Internet,” mas que o atual “momento de redução da renda familiar e limitação do deslocamento que, em geral, permite a conexão em locais sem limites de navegação, no trabalho, em Wi-Fi público ou no comércio,” podem gerar uma aumento na taxa de pessoas desconectadas da rede.
Segundo dados de 2018 da pesquisa TIC Domicílios, divulgada em 2019 pelo Nic.BR (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR) , 33% dos domicílios brasileiros ainda estão desconectados da Internet, seja fixa ou do celular. Esse índice é maior ainda no Nordeste (43%) e nos domicílios da classe D e E chegam a 59%.
Nesta mesma classe social, entre os conectados, 47% acessam à rede apenas por meio de internet móvel. Segundo estudo da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), “55% das conexões móveis no Brasil operam na modalidade pré-paga, com limites baixos de tráfego de dados.”
A população mais vulnerável não pode ser ainda mais vulnerabilizada com previsões de desconectividade e falta de acesso à informação nesse momento em que informação pode salvar vidas. São bem vindos, portanto, projetos de lei que obrigam o oferecimento gratuito, suspendem cobranças e proíbem cortes de conexão. Interessante observar a pandemia quebrando algumas lógicas de mercado de restrição ao acesso à serviços essenciais. Esperamos que alguns desses projetos prosperem e inspirem momentos pós-pandemia.
COVID-19 e Desinformação
A pandemia do Coronavírus também veio acompanhada de uma propagação de notícias falsas e de desinformação que contaminam a rede, por vezes, de maneira tão letal quanto a COVID-19.
Tentando lidar com essa questão, mapeamos mais 5 novos projetos de lei que tratam especificamente de desinformação e saúde pública no contexto da pandemia.
Projetos de lei que tratam de desinformação em tempos de COVID-19
Três deles propõem mudanças no Código penal para considerar como crime a divulgação de notícias falsas sobre a pandemia, sendo que um deles, o P1416/2020 , proposto pela Deputada Marília Arraes (PT/PE), para além da divulgação, também inclui como crime o compartilhamento “por ocupante de cargo, função ou emprego público de informação falsa, sem fundamento ou difamatória.”
O PL1416/200 chama atenção particularmente pelo fato de que, na semana passada, o próprio presidente da República teve seus posts deletados pelo Twitter e, posteriormente, Facebook e Instagram, por contrariar as orientações da Organização Mundial da Saúde sobre distanciamento social.
Na ocasião, publicamos um artigo tentando ressaltar as dificuldades de balancear segurança, direito de acesso à informação e o poder das plataformas em limitar nossa liberdade de expressão. Se esse projeto de lei da Deputada Marĩlia Arraes fosse aprovado, além de um “delete” por parte das plataformas, o presidente claramente cometeria um crime se publicasse posts assim.
Os outros dois projetos de lei mapeados são idênticos, intitulados “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”, um apresentado na Câmara e outro no Senado, respectivamente nos dias 1 e 2 de abril, com autoria de vários parlamentares.
A proposta visa alterar o Marco Civil da Internet, mudando algumas definições e criando capítulos que tratam do uso de bots e botnets, bem como da responsabilidade dos provedores de aplicações, incluindo de apps de mensagem, como o WhatsApp, para tomarem medidas contra a desinformação e de transparência. O projeto de lei também trata da atuação dos chamados “fact checkers” ou verificadores de conteúdo e da transparência em caso de propaganda direcionada. Ainda que sua justificativa traga o contexto da pandemia, apresentando a desinformação e o vírus como “inimigo comum”, trata-se de uma projeto de lei que visa claramente também o contexto eleitoral e que modifica substancialmente as previsões sobre responsabilização de intermediários do Marco Civil da Internet.
Desde setembro de 2019, a Câmara dos Deputados debate o tema da desinformação na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Fake News, espaço que tem sido campo de batalhas políticas, principalmente remetendo ao papel do “gabinete do ódio” nas eleições de 2018.
Recentemente, a comissão teve o seu prazo de funcionamento prorrogado por mais 180 dias. Esses projetos de lei também devem ser debatidos por lá em breve.
Consideramos que resoluções na esfera cível são mais adequadas, desde que levem em consideração princípios que norteiam o uso da Internet no Brasil, como liberdade de expressão e privacidade. Nesse sentido, a Coalizão Direitos na Rede também produziu uma cartilha sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que provavelmente será revisto diante de todo esse contexto.
Vigência da Lei de Proteção de Dados
Maior digitalização das nossas atividades cotidianas faz com que mais dados sejam produzidos sobre nossos hábitos e ficamos ainda mais vulneráveis a estratégias de desinformação, manipulação e controle. Razões pelas quais temos motivos de sobra para colocarmos logo em vigor a tão debatida e aprovada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
Depois de longos 8 anos de discussões, a LGPD foi sancionada em agosto de 2018 e passou por alterações durante as discussões da Medida Provisória 869/2018, que instituiu a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais.
A lei entraria em vigor em agosto deste ano, contudo, mapeamos que até hoje temos 4 novos projetos de lei tentando aumentar seu prazo de início de vigência, na maioria dos casos, ironicamente, trazendo o contexto da pandemia, como justificativa.
Projetos de lei que postergam a vigência da LGPD em tempos de COVID-19
Boa parte das fundamentações se baseia na falta de capacidade financeira de micro e pequenas empresas de realizar a adequação ao disposto na Lei ante o cenário de crise. Apesar da LGPD conter a previsão de edição de regulamento específico com procedimentos de adequação simplificados para micro e pequenas empresas, bem como startups ou empresas de inovação, o argumento comum que as empresas não estão financeiramente preparadas para realizar adequações no cenário de pandemia tem perdurado.
Um deles, o PL 1179/2020, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado, relativo ao período no qual perdurar a pandemia do Coronavírus, foi recentemente aprovado no Senado Federal no formato do substitutivo da Senadora Simone Tebet, que posterga a entrada em vigor da LGPD para 01/01/2021 e a aplicação das sanções administrativas de lei para agosto de 2021.
Também em parceria com a Coalizão Direitos na Rede publicamos um posicionamento sobre os possíveis riscos à proteção de dados pessoais que o cenário de pandemia do Coronavírus apresenta. O documento em questão chama o Estado brasileiro a respeitar o compromisso assumido com a Proteção de Dados Pessoais e frisa a importância da LGPD para a salvaguarda dos direitos dos cidadãos e garantidora de segurança jurídica para as atividades de tratamento de dados pessoais por atores.
Essas previsões se fazem ainda mais importantes se levarmos em consideração iniciativas que estão pipocando em diferentes estados e municípios do país de se fazer parcerias com operadoras de telefonia ou gigantes das redes sociais para compartilhar dados de cidadãos e monitorar o deslocamento.
Recentemente, o SindiTelebrasil, sindicato das empresas de telefonia móvel, anunciou que as principais operadoras de telefonia móvel vão oferecer ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Comunicações, “uma solução única de dados para monitorar mobilidade populacional, deslocamentos, pontos de aglomeração e identificar situações de concentração de pessoas e risco de contaminação pelo novo coronavírus”.
A medida acabou confirmando falas anteriores dos ministros da Saúde e da Ciência, Tecnologia e Comunicações, que vinham acenando para o setor privado sobre a necessidade de utilização dos dados de usuários. Ainda se sabe poucos detalhes sobre essas iniciativas. Buscando alguns esclarecimentos, chegamos a apresentar pedidos de acesso à informação para ambos Ministérios. Seguimos aguardando respostas.
Em uma primeira análise, esse monitoramento sem tomarmos ciência, podermos consentir ou sem sabermos seus limites é bastante preocupante, especialmente quando não temos uma Lei de Proteção de Dados em vigor para trazer princípios, reforçar direitos e sanções aplicáveis.
Apenas com todos esses elementos seria possível avaliar se o uso de nossas informações, muitas delas dados sensíveis, é realmente necessário e proporcional aos fins a que se destinam.
Dentre os países da América Latina, o Brasil é um dos poucos países sem uma Lei de Proteção de Dados Pessoais vigente e isso torna o cenário de garantia do direito à privacidade e proteção de dados pessoais mais fraco por aqui.
Com organizações parceiras da América Latina que compõe a rede Al Sur, temos monitorado o uso de tecnologias de vigilância para o combate da pandemia do Coronavírus e divulgamos essa carta conjunta que pede aos governos da região que qualquer consideração para o uso de tecnologias digitais de monitoramento deve atender direitos humanos fundamentais. No mesmo sentido, também apoiamos iniciativa semelhante de organizações internacionais parceiras.
Transparência do Legislativo em home office
Com esse movimento de mudança pro virtual, as sessões da Câmara e Senado passaram a funcionar de maneira remota. Essa adaptação das atividades legislativas adiciona um novo nível de complexidade para os trabalhos de advocacy e de acompanhamento da atividade das casas, já que a atuação presencial não é mais possível.
Antecipando as dificuldades colocadas por essa mudança dos trabalhos legislativos pro virtual, a Frente Parlamentar Mista pela Defesa da Democracia e dos Direitos Humanos, da qual a Coding Rights faz parte, elaborou uma carta cobrando mais transparência e participação da sociedade civil nos trabalhos virtuais do Congresso Nacional. Entre as reivindicações estão reforçar a necessidade de transmissão de sessões solenes, audiências públicas, reuniões de trabalho e votações do Congresso Nacional, uma maior divulgação dos temas votados e informações sobre possíveis canais de participação social.
Projetos de Lei sobre acesso à internet
Projetos de lei sobre desinformação
Projetos de Lei sobre a vigência da LGPD
*Joana Varon é diretora da Coding Rights e afiliada do Berkman Klein Center da Universidade de Harvard, e Bruna Santos é coordenadora de advocacy da Coding Rights.
Este artigo apareceu originalmente no Medium e foi republicado com autorização da Coding Rights.
A Coding Rights é um think tank para promover o entendimento e contribuir para a proteção e promoção de Direitos Humanos na internet e no mundo digital.