Dizem que o novo serviço de streaming da Apple tem um orçamento de US$ 1 bilhão, mas todo esse dinheiro não está servindo para muita coisa. A empresa — que já havia censurado muita coisa em suas plataformas, com a App Store — está tentando manter suas ofertas de conteúdo limpas, com o mínimo de “sexo, profanação ou violência”, diz uma matéria do Wall Street Journal publicada no sábado.
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O desejo de manter tudo muito acessível para toda a família, segundo a reportagem, vem atrasando ou interferindo em muitos projetos. O jornal afirma que os próprios funcionários da Apple vem chamando o projeto de streaming como “NBC (um dos principais canais de TV aberta dos EUA) cara”.
O Wall Street Journal escreve que o CEO Tim Cook derrubou pessoalmente Vital Signs, primeira série dramática da Apple, sobre a vida do magnata do hip-hop Dr. Dre. O executivo viu o programa já filmado e ficou assustado pelas cenas com uso de cocaína, uma orgia e armas.
“É violento demais”, disse Cook a Jimmy Iovine, executivo do Apple Music, segundo pessoas que têm familiaridade com os planos de entretenimento da Apple. “A Apple não pode mostrar isso.”
Por toda Hollywood e dentro da empresa, a série se tornou um emblema dos desafios enfrentados pela gigante da tecnologia em seus primeiros passos no entretenimento. A Apple reservou US$ 1 bilhão para programação de Hollywood no último ano. Mas, no tom definido pelo CEO da empresa, o que a Apple produzir não deve manchar a imagem de pureza da marca que ajudou a empresa a colher 80% dos lucros do mercado global de smartphones.
(Reportagens anteriores indicavam que Vital Signs estava atrasada porque tanto a Apple quanto Dre não estavam contentes com a qualidade do produto final.)
Os concorrentes da Apple, entretanto, não têm essa necessidade de proteger uma linha principal de produtos para que ela não acabe prejudicada por polêmicas. Além disso, Netflix, Amazon e HBO lançaram conteúdos mais sombrios com orçamentos muito maiores. O entretenimento não precisa ser cheio de sangue e corpos nus para ser divertido, obviamente, mas a reportagem do Wall Street Journal sugere que o desejo da Apple de não incomodar nem o mais sensível dos espectadores prejudicou a escolha de títulos e pode até mesmo atrasar o lançamento da plataforma.
A empresa comprou “mais de uma dúzia de títulos, dando preferência a conteúdos de apelo familiar”, diz o jornal. Isso inclui um programa sobre a poetisa Emily Dickinson, um “drama no estilo de Friday Night Lights” sobre a vida da estrela da NBA Kevin Durant (que, ao que tudo indica, é ótimo), um programa da Oprah Winfrey sem maiores especificações, e alguma coisa dos mesmos criadores de Sesame Street (que no Brasil virou a Vila Sésamo).
Estes projetos têm, de fato, grandes nomes por trás, mas, convenhamos, é bem possível que alguém possa achar tudo isso bem chato — e nem precisa ser uma pessoa muito exigente.
De acordo com o jornal, a equipe de executivos do projeto de streaming da Apple — Zack Van Amburg e Jamie Erlicht, mais conhecidos por sua participação no sucesso Breaking Bad — tiveram que “dedicar um tempo considerável para conseguir que vários títulos fossem aprovados por Tim Cook e Eddy Cue, um vice-presidente sênior que supervisiona serviços, diz uma fonte que conhece a fundo a dinâmica da empresa”. Isso incluiu diluir uma proposta de M. Night Shyamalan — cuja carreira depois de O Sexto Sentido nem é tão pesada — para remover crucifixos.
Van Amburg e Erlicht conseguiram a aprovação para algumas ideias mais tensas. A Apple assinou um acordo por uma série feita por M. Night Shyamalan sobre um casal que perde um filho jovem.
Antes de dizer sim ao thriller psicológico, os executivos da empresa fizeram uma exigência: eliminar todos os crucifixos da casa do casal, contam fontes envolvidas no projeto. Elas também dizem que os executivos deixaram claro que não querem programas que se aventurem em temas religiosos ou políticos. Shyamalan não foi encontrado para comentar o assunto.
A publicação também diz que a Apple superou os rivais e cobriu uma oferta — bem cara, de US$ 12 milhões por episódio — para comprar um drama sobre um programa jornalístico matinal com Jennifer Aniston e Reese Witherspoon.
A série está atrasada depois de problemas com o produtor executivo, mas também porque a Apple “queria um programa mais movimentado e desaprovou o tipo de humor proposto, dizem funcionários que participam do projeto”. Por fim, a empresa também foi atrás de novos showrunners para Amazing Stories, de Steven Spielberg, depois de concluir que a série estava muito “sombria”, escreve o jornal.
Gosto não se discute. Mas o show business não é como a App Store ou um comercial de iPhone, em que a atitude mais pudica da Apple faz muito sentido em termos comerciais. Uma das maiores lições do sucesso da Netflix é que o formato de streaming permitiu transmitir o tipo de conteúdo que anteriormente estava relegado a canais caros de TV a cabo, como a HBO.
Sensibilidades muito restritivas — especificamente as de Tim Cook, ao que tudo indica — podem fazer a diferença no sucesso ou no fracasso da plataforma de streaming da empresa. No segundo caso, colocar o novo serviço em um pacote junto com outras coisas, como assinaturas de notícias, algo que vem sendo especulado há bastante tempo, não vai fazer muita diferença.
Mas nem tudo é tão negativo. Não há nenhuma menção a interferências de executivos na adaptação da clássica trilogia Fundação, de Isaac Asimov, que está atrasada há bastante tempo por causa do tratamento de Hollywood que ela vem recebendo.
Imagem: Marcio Jose Sanchez (AP)