Ciência

Tímpano pode ter salvado répteis de extinções em massa

Membrana na parte interna do ouvido surgiu em ancestral comum de lagartos, crocodilos, jacarés, cobras, tartarugas e aves há 250 milhões de anos
Imagem: Julia D’Oliveira

Texto: Enrico Di Gregorio/Revista Pesquisa Fapesp

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Para um lagarto sobreviver no ambiente escuro, fumacento e com pouca comida que foi a Terra entre cerca de 250 milhões e 200 milhões de anos atrás, período marcado por dois eventos de extinção em massa, um bom ouvido era fundamental. Com ele, o réptil podia escutar melhor as presas e os predadores ou mesmo praticar a comunicação vocal com companheiros de espécie.

A membrana timpânica, uma película que se movimenta quando entra em contato com ondas sonoras, foi uma adição evolutiva que ampliou o espectro sonoro detectado por répteis. Essa pequena parte do sistema auditivo de aves, jacarés, crocodilos, cobras, lagartos e tartarugas foi fundamental para esses animais sobreviverem e se proliferarem ao longo da história evolutiva, segundo artigo publicado em 10 de outubro na revista Current Biology. As aves estão no estudo porque, evolutivamente, elas e répteis têm o mesmo ancestral comum.

A pesquisa tem implicações em um dilema importante na biologia evolutiva. “Há um grande debate sobre a evolução da audição em répteis: se ela surgiu de maneira independente em vários grupos ou a partir de um único ancestral”, conta o paleontólogo Mario Bronzati, pesquisador brasileiro em estágio de pós-doutorado na Universidade de Tübingen, na Alemanha, e autor principal do artigo.

A disputa entre hipóteses era potencializada pelo tamanho do grupo dos répteis, que hoje tem mais de 20 mil espécies, e pela falta de estudos focados na evolução da audição desse grupo. “Muitas pesquisas se debruçaram sobre animais-modelo, como galinhas e camundongos”, diz Bronzati. Com esse diferencial, os resultados expostos no artigo recente apontam que a audição surgiu a partir de um único evento e foi herdada pelos descendentes.

Os pesquisadores chegaram a essas conclusões por meio do estudo de fósseis e embriões de répteis, em uma combinação de duas áreas do conhecimento: a paleontologia e a biologia evolutiva do desenvolvimento, que estuda os embriões e o desenvolvimento dos organismos a partir da evolução e é chamada pelos pesquisadores de evo-devo.

“Não teríamos conseguido responder a todas as perguntas que fizemos sem essa combinação”, explica a bióloga Tiana Kohlsdorf, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP) e coordenadora do estudo. “Por meio dos fósseis conseguimos inferir uma escala de tempo mais antiga, que inclui o ancestral comum, e o desenvolvimento no período de uma vida, a partir dos embriões, permite ver como a membrana se desenvolve em répteis ainda viventes.”

A análise dos embriões também é importante porque a membrana timpânica é um tecido mole, que não se preserva nos fósseis. Isso gera um desafio para a identificação desse tipo de ouvido em animais ancestrais. Mesmo os caracteres ósseos associados à audição são variáveis e nem sempre servem como pista, como ocorre, por exemplo, com uma pequena concha do crânio de lagartos que não existe em jacarés.

“Os autores abordam a questão de uma maneira inovadora”, diz a paleontóloga brasileira Gabriela Sobral, do Museu de Stuttgart, na Alemanha, que não participou do estudo. Em 2019, ela publicou um artigo na revista PeerJ sobre a identificação do tímpano na linhagem ancestral que daria origem a crocodilianos e a aves. “O artigo mostra como a principal característica usada para identificar a audição timpânica em fósseis, a concha, é uma condição específica de cobras e lagartos, e a identificação em outros grupos de répteis deve ser feita considerando outras características anatômicas.”

“A paleontologia e a evo-devo se complementam: uma área fornece à outra exemplos concretos do que é factível existir dentro de um universo quase infinito de possibilidades”, continua Sobral. “O artigo mostra como a paleontologia pode ir além do óbvio e como é uma peça fundamental para entendermos a evolução da vida na Terra.”

Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

Imagem: Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

Uma parte da pesquisa foi comparar embriões de lagartos (Tropidurus) e jacarés (Caiman). Os pesquisadores coletaram os ovos em um ambiente urbano na cidade de São Simão, no interior paulista, no caso dos lagartos, e na fazenda de jacarés Caimasul em Corumbá, Mato Grosso do Sul. “Foi um grande desafio, ainda estávamos no período da pandemia”, lembra Bronzati.

No laboratório, a equipe abriu com cuidado as finas cascas dos ovos para examinar os filhotes de jacarés e lagartos, ainda mergulhados na solução aquosa que forma o líquido amniótico. Foram utilizados microscópios, aparelhos de tomografia e técnicas tradicionais de exames de tecidos. Os pesquisadores viram que o processo de formação do ouvido timpânico era muito parecido entre os dois animais e tiveram os mesmos resultados quando compararam esses embriões com os de aves.

“Em todos esses animais, a cavidade timpânica se forma pela extensão da cavidade faríngea, conectada com a garganta”, detalha Bronzati. “E a membrana timpânica surge em uma região chamada segundo arco faríngeo.” Para Kohlsdorf, outro ponto importante é que “enquanto vemos essa similaridade entre aves, jacarés e lagartos, nos embriões dos mamíferos o desenvolvimento é diferente, com a formação da membrana timpânica a partir do primeiro arco faríngeo”.

“Isso tudo fica ainda mais intrigante quando notamos que vários parentes extintos dos répteis não tinham o ouvido timpânico”, completa Bronzati. “Nós achamos que a evolução desse atributo favoreceu a sobrevivência do grupo, ainda mais considerando os eventos de extinção em massa.”

Dois desses eventos de extinção marcaram o período crucial para o surgimento do ouvido timpânico. O primeiro, há 250 milhões de anos, ocorreu durante o período Permiano e varreu mais de 95% das espécies marinhas e 70% das terrestres. Não se sabe ao certo o que causou a extinção, mas uma das hipóteses levanta a possibilidade de uma combinação de mudanças climáticas e erupções vulcânicas. Fatores semelhantes levaram a uma nova catástrofe 50 milhões de anos depois, entre os períodos Triássico e Jurássico, com a extinção de 80% das espécies do planeta.

Para Sobral, é preciso investigar melhor a origem e o desenvolvimento da cavidade do ouvido médio e de estruturas relacionadas. “Essas questões só recentemente estão sendo analisadas em mamíferos, mas ainda são desconhecidas em répteis.”

Outras respostas residem na genética. “Não sabemos se os genes que formam a membrana timpânica nas galinhas e nos outros animais são os mesmos”, diz Bronzati. Há, ainda, a necessidade de investigar a perda de partes do aparelho auditivo em alguns répteis, como as serpentes, que perderam a membrana timpânica, e alguns lagartos. “É um artigo que abre portas para novas áreas de pesquisa”, conclui Sobral.

Projetos
1.
Ecologia, evolução e desenvolvimento (eco-evo-devo) na herpetofauna brasileira (n° 15/07650-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Tiana Kohlsdorf (USP); Investimento R$ 1.261.130,44.
2. Evo-devo em ambientes dinâmicos: Implicações das mudanças climáticas na biodiversidade (n° 20/14780-1); Modalidade Projeto Temático; Programa Biota; Pesquisadora responsável Tiana Kohlsdorf (USP); Investimento R$ 3.229.900,69.
3. Preenchendo lacunas no entendimento da macroevolução de Crocodylomorpha usando métodos comparativos (n° 22/05697-9); Modalidade: Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Max Cardoso Langer (USP); Bolsista Pedro Lorena Godoy; Investimento R$ 88.743,56.

Artigos científicos
BRONZATI, M. et al. Deep-time origin of tympanic hearing in crown reptiles. Current Biology. v. 34, p. 1-7. out. 2024.
SOBRAL, G. et al. The braincase of Mesosuchus browni (Reptilia, Archosauromorpha) with information on the inner ear and description of a pneumatic sinus. PeerJ. v. 7. maio 2019.

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