Uma breve história de um dos primeiros passos da ASCII Art no Brasil
O ASCII Art pode ser algo comum demais nos dias atuais da internet, mas como tais obras de arte existiam antes dos computadores modernos? Daniel Quadros, um hacker da velha guarda, conta como ajudou a introduzir o estilo de arte na Universidade de São Paulo, na década de 1970. Aviso: não era nada fácil.
Não tenho ideia de como o Tony de Marco ficou sabendo desta história, mas eu prometi a ele contar alguns detalhes sobre este acontecimento dos idos de 1977.
Computação e Impressão no Final dos anos 70
Em 1977, era bastante incomum alguém tem computador em casa, principalmente aqui no Brasil. Nada mais natural que ter o seu primeiro contato na faculdade, como já descrevi aqui. Para esta história é particularmente relevante o fato de alunos acessarem o computador usando um sala de “auto-serviço”, na qual programas e dados eram inseridos na forma de cartões perfurados, e a saída era em uma impressora. Não custa lembrar também que o uso era controlado através de um sistema de créditos.
A impressora era o que se chamava de “impressora de linha“, um dispositivo otimizado para a impressão de texto. Os detalhes de implementação podiam ser diferentes, mas tipicamente existia um conjunto fixo de caracteres gravados em metal (na forma de um rolo, fita ou discos) e a posição de impressão era fixa nas colunas (e às vezes nas linhas). O resultado era um dispositivo capaz de imprimir por minuto de 10 a 20 páginas (cada uma com 66 linhas de 132 caracteres).
Obviamente, não era um dispositivo adequado para a impressão de gráficos (o que não impedia os horríveis gráficos feitos com asteriscos). Mentes mais inquietas (ou com mais tempo livre) descobriram como imprimir figuras usando somente caracteres – aquilo que hoje chamamos de ASCII art.
Uma possibilidade adicional das impressoras de linha era a sobreimpressão, obtida suprimindo a movimentação do papel após a impressão da linha.
Os Três Daniéis
Não sei se a tradição se mantém, mas a USP costumava dividir os alunos em turmas por ordem alfabética do primeiro nome. O resultado foi que os meus dois principais colegas no primeiro ano eram dois outros Daniéis, que chamarei aqui de Daniel A. e Daniel P. (eu fico sendo o Daniel Q).
Um outro ponto em comum entre nós, além do primeiro nome, foi o gosto adquirido por computadores e programação.
A Mona Lisa
Foi Daniel A. quem encontrou a Mona Lisa em um anúncio de revista (aparentemente ASCII art era símbolo de alta tecnologia na época) e teve a incrível paciência de, com auxílio de uma lupa, decifrar quais eram os caracteres impressos. Mesmo a sua paciência tinha limites, motivo pelo qual a nossa figura não possui o fundo.
Os caracteres descobertos foram meticulosamente transcritos para folhas de codificação e enviados para o serviço de perfuração (que deve ter xingado bastante).
A minha parte foi fazer o programa de impressão. Não lembro mais dos detalhes, mas provavelmente foi feito em Fortran IV (que era a linguagem usada no primeiro ano). O funcionamento era muito simples: os cartões eram lidos e armazenados em uma matriz e depois impressos até que o limite de tempo ou impressão fosse atingido.
Daniel P. entrou com o lado “empreendedor”: foi dele a ideia de imprimir o máximo possível e vender para os “bixos” (calouros) de 78. Foi ele também quem operacionalizou o esquema de vendas.
A Epopeia da Impressão
As primeiras impressões correram tranquilas, mas não demorou para os operadores do computador perceberem que algo além dos programas normais estava sendo executado por alguns alunos. A reação deles era “abendar” (abortar) o programa. Na medida do possível, tentamos dificultar o reconhecimento do programa, mudando continuamente o nome e até acrescentando cálculos inúteis no início da execução. Um aspecto não dava para disfarçar: a barulheira da impressão.
Um dos operadores chegou a ficar mais exaltado, passando a abrir aos gritos a cortina que separava a sala de auto-serviço da sala do computador para parar a impressora enquanto o programa era abortado (o que tinha a vantagem de nos permitir ver o aspecto real do computador – e naquele tempo os computadores eram bem mais impressionantes).
Do lado dos alunos recebemos um grande apoio. Muitos forneceram créditos para a impressão e até mesmo se expuseram aos pitos dos operadores executando o programa para nós.
O ponto alto foi quando um colega do terceiro ano nos emprestou espaço em disco e nos ensinou como salvar nele o programa executável e os dados, nos liberando de carregar o imenso deck de cartões. Não durou muito esta moleza, mas foi um período de alta produtividade.
Concluindo
Não tenho ideia de quantas Mona Lisas conseguimos imprimir. Sei que foi um sucesso de venda. Não tenho comigo nenhuma delas, nem uma listagem do programa. Os meus decks de cartão já foram para o lixo há décadas. As fotos neste post são de um exemplar que a minha mãe emoldurou e colocou na parede.
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Daniel Quadros é um hacker das antigas e atual Chanceler Supremo do conselho do Garoa Hacker Clube. É formado em engenharia eletrônica e escreve sobre hardware e software em seu blog.