Sua família deveria herdar suas mensagens do Facebook caso você morra?
Um tribunal federal na Alemanha decidiu na semana passada que o Facebook deveria ceder à mãe de uma menina de 15 anos acesso à toda sua conta. Eles não estão falando apenas de acesso a uma página de memorial. A mãe ganha acesso a tudo, incluindo mensagens privadas. Na Alemanha, decidiram os juízes, herdeiros devem poder herdar uma conta de rede social da mesma maneira que herdam uma caixa de cartas.
Isso parece uma má ideia, não?
Do ponto de vista da privacidade, a resposta para se alguém deveria poder herdar suas mensagens de Facebook — ou sua caixa de entrada no Gmail — parece gritar “NÃO!”. Esses dados são potencialmente muito pessoais, e, sem contexto, qualquer um que leia conversas poderia facilmente interpretar equivocadamente o que estava acontecendo na vida do falecido.
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A maneira aparentemente fácil de evitar confusão aqui seria que todo mundo escrevesse um testamento. No século 21, um testamento deveria incluir instruções sobre o que fazer com arquivos digitais depois da morte de uma pessoa. Porém, várias pesquisas mostram que a maioria dos norte-americanos não têm testamentos, e vai saber quantos desses incluem instruções para herança digital. Além disso, muitas empresas simplesmente não têm processos prontos para a transferência de dados de usuários falecidos para seus herdeiros. O processo para fazê-lo também é delicado e leva tempo. Em outras palavras, custaria dinheiro às empresas.
No entanto, pode haver dinheiro em jogo. Mensagens online e e-mails muitas vezes contêm informações financeiras que poderiam se mostrar essenciais ao lidar com as propriedades de alguém que morreu. Se os herdeiros de uma pessoa têm direito aos bens de alguém, eles precisam saber quais são esses bens. E os e-mails são tão diferentes assim de uma caixa cheia de cartas? As vidas de todo o mundo são em grande parte dominadas por correspondência digital, então está se tornando cada vez mais óbvio que precisamos descobrir exatamente o que acontece com nossos dados depois que morremos. A questão mais difícil é como faremos isso.
Desde que os computadores existem, o mundo jurídico debate o que deve acontecer com os dados de uma pessoa depois que elas morrem. O conceito de herdar dados se tornou mais essencial e urgente nos últimos anos, à medida que a era das redes sociais e das criptomoedas tomou conta. Empresas como o Facebook, no entanto, têm sido historicamente resistentes a entregar dados privados dos usuários a parentes nos casos em que o usuário não solicitou explicitamente isso em um testamento.
“Essas perguntas — como pesar os desejos dos parentes e proteger a privacidade de terceiros — são algumas das mais difíceis que já enfrentamos”, disse um porta-voz do Facebook ao Gizmodo em um comunicado sobre a recente decisão judicial na Alemanha. “Temos empatia com a família. Ao mesmo tempo, as contas do Facebook são usadas para uma troca pessoal entre indivíduos que temos o dever de proteger.”
O comunicado diz ainda que o Facebook “discorda respeitosamente” da decisão. Com base nesse sentimento, o Facebook aparentemente não acha que deve entregar dados de usuários particulares sem o consentimento explícito deles. Se você não quer que seus pais leiam suas mensagens do Facebook depois que você morrer inesperadamente, você talvez concorde com isso.
O caso alemão é um pouco mais complicado, no entanto. A falecida era uma garota de 15 anos que foi atropelada por um trem em Berlim em 2012. Os pais da garota queriam acessar sua conta no Facebook para que pudessem descobrir se sua filha havia morrido por suicídio ou se havia sido um acidente. Considerando o histórico recente da Alemanha de leis rigorosas de privacidade, é significativo que juízes federais tenham determinado que os pais devem ter acesso aos dados da filha falecida. Alguns dizem que também é um sinal de que os legisladores alemães precisam criar uma política melhor em torno da herança digital. Afinal, a nova decisão se aplica não apenas ao Facebook, mas a todas as redes sociais do país, o que significa que qualquer herdeiro tem o direito de herdar a correspondência digital de uma pessoa morta, incluindo menores.
Os Estados Unidos (como o Brasil), por exemplo, ainda não têm uma decisão judicial tão clara sobre herança digital. Se você morrer amanhã e não tiver um testamento, um tribunal poderá decidir não apenas quem herda seus ativos físicos, mas também seus dados. Nos EUA, se seus herdeiros podem obter acesso a contas particulares, no entanto, depende de certas leis estaduais, e apenas um punhado de estados aprovou leis que lidam diretamente com a herança digital. Isso significa que seus parentes podem ter que pedir às empresas de tecnologia acesso aos dados — essas empresas podem dizer não, citando seus termos de serviço ou certas leis — ou tentar adivinhar suas senhas, o que pode levá-los a infringir a lei.
“É importante que as pessoas planejem com antecedência, como fariam com seus bens físicos e ativos financeiros”, disse ao Gizmodo Nikolas Guggenberger, professor assistente de direito de TI na Universidade de Münster, na Alemanha. “Acho que as pessoas precisam começar a fazer isso com seus ativos e bens digitais, para que essas coisas cheguem à pessoa a que elas gostariam que fossem.”
Por mais obscuro que pareça, escrever um testamento que inclua instruções para lidar com seus dados após a morte é importante. Algumas empresas de tecnologia oferecem outras soluções. O Google permite que os usuários controlem seus dados após a morte com uma ferramenta chamada Gerenciador de contas inativas. Isso permite atribuir contatos que serão notificados depois que sua conta permanecer inativa por um determinado período de tempo. Você pode dar permissão para compartilhar determinados tipos de dados, incluindo arquivos do Google Drive e mensagens do Gmail, com essa pessoa. Você também pode instruir o Google a excluir todos os dados que você não deseja compartilhar. Considerando tudo, essa parece ser uma boa opção para os usuários do Google, especialmente se houver informações valiosas, como dados bancários ou de contas de criptomoeda no Gmail ou no Google Drive.
Já no Facebook, as coisas não são tão fáceis. No site, você pode atribuir um contato de legado, que terá algum controle sobre o que acontece com seu perfil quando você morre. Eles poderão fazer certas coisas, como alterar sua foto de perfil, responder a solicitações de amizade e aprovar novas postagens no mural. Seu contato de legado também pode excluir seu perfil (você também pode dizer ao Facebook para apagar tudo quando o site for notificado da sua morte e ignorar completamente a página de memorial). Seu contato de legado não poderá, em muitos casos, acessar suas mensagens. Segundo o Facebook, uma lei federal nos EUA conhecida como “Lei de Comunicações Armazenadas” impede isso. Mas, novamente, alguns estados — incluindo Connecticut, Idaho, Indiana, Louisiana, Oklahoma, Rhode Island, Nevada, Virgínia e Delaware — têm leis adicionais sobre herança digital.
O debate legal sobre os herdeiros tendo acesso a mensagens privadas, especificamente em termos de como a Lei de Comunicações Armazenadas entra em ação, também está longe de terminar. No ano passado, o Supremo Tribunal Judicial de Massachusetts determinou que os representantes pessoais do falecido poderiam conceder o consentimento para a divulgação de dados privados na ausência de um testamento.
Esse caso envolveu um jovem chamado John Ajemian, que morreu em um acidente de bicicleta e deixou para trás uma conta de e-mail do Yahoo. Seus irmãos solicitaram acesso à sua conta de e-mail para que pudessem notificar seus amigos sobre sua morte e descobrir quais ativos ele deixou para trás. Ajemian não tinha um testamento, e o Yahoo disse que liberar os e-mails violaria a Lei de Comunicações Armazenadas. O tribunal de Massachusetts disse que liberar os e-mails não violaria a lei federal. Depois de o Yahoo apelar da decisão, a Suprema Corte dos Estados Unidos se recusou a ouvir o caso.
Cabe agora ao Yahoo decidir se a família receberá os e-mails e como a empresa vai aplicar seus termos de serviço. O resultado final do caso também tem implicações para outras empresas de tecnologia. Se o Yahoo criar um precedente ao liberar as mensagens, é possível que o Facebook precise repensar suas próprias políticas.
“Se você morrer amanhã e não tiver um testamento e não disser nada, o que sabemos agora é que a lei federal não proíbe o Facebook de fornecer (seus dados) para o executor de sua propriedade”, disse Vivek Krishnamurthy, da Cyberlaw Clinic, da Escola de Direito de Harvard, que apresentou um amicus curiae (uma espécie de consultoria) no caso do Yahoo. “Dito isso, ainda é muito incerto se o seu executor conseguirá.”
Isso porque as empresas de tecnologia, por enquanto, podem decidir o que fazer com os dados. Sem uma regulamentação mais específica sobre herança digital, o Facebook e outros podem simplesmente alterar seus termos de serviço para determinar o que acontece com os dados dos usuários depois que eles morrem. Essas empresas podem criar ferramentas, como o Gerenciador de contas inativas do Google, que oferecem maior controle aos usuários. Mas elas também podem decidir que construir ferramentas e transferir todos os dados de pessoas mortas é muito trabalhoso.
“De muitas maneiras, sim, provavelmente precisamos de um desenvolvimento jurídico aqui”, acrescentou Krishnamurthy. “Mas há muitas empresas de tecnologia capazes de tornar isso mais fácil e melhor para pessoas comuns.”
Você não precisa ficar esperando as empresas facilitarem as coisas. A melhor opção para todos é escrever um testamento e simplesmente explicar o que quer que aconteça com seus dados caso você faleça. Se quiser que tudo seja deletado, é só dizer. Seus herdeiros deveriam honrar seus desejos. Se você quiser que todas suas antigas mensagens de Facebook sejam baixadas e colocadas num livro, bom, isso é esquisito, mas seus herdeiros devem fazê-lo.
A boa notícia é que as empresas de tecnologia provavelmente não vão dar a seus pais uma cópia das suas mensagens privadas se essas instruções claras não estiverem em seu testamento. Ainda vai ser preciso um caso judicial caro e prolongado para forçar Facebook ou Google a entregar seus dados. Porém, se você vive na Alemanha, agora as coisas são diferentes.
Imagem do topo: Anjelica Alzona (Gizmodo)