O catastrofismo é primo do negacionismo

Os perigos de se exagerar na comunicação sobre a pandemia
Foto: Reprodução/Visual Science

Se você lê jornais ou tem acesso a redes sociais e não está numa bolha de autoengano, você está em algum ponto entre preocupado e totalmente apavorado com a variante Delta da Covid-19. A variante primeiramente identificada na Índia é, pelo que se sabe até aqui, bastante contagiosa, já está no Brasil e é responsável por aumentos de casos significativos em países como Grã-Bretanha e Israel, que têm altas taxas de vacinação.

Essa é a informação e não há muito mais do que isso. Discute-se a eficácia das vacinas quanto ao contágio pela variante, se ela pode diminuir a eficácia das vacinas mais potentes e a possibilidade de que uma terceira dose de vacina possa resolver o problema. E isso é tudo. Os novos surtos, inclusive em países com altas taxas de vacinação, mostram que mortes e hospitalizações se concentram maciçamente em pessoas não-vacinadas. Isso tudo não impede pessoas inclusive bem intencionadas de espalhar o pânico.

Não é difícil de entender a origem do fenômeno. Em março de 2020, quando já estava claro para qualquer pessoa minimamente inteligente que o vírus era perigoso e precisava ser tratado com cuidado extremo, alguns imbecis em posições de comando cujos nomes a gente não precisa repetir diziam: “não há motivo para pânico, é apenas uma gripe”. A resposta a isso, inicialmente, foi apenas informação e ciência: Covid-19 não é uma gripe e, sem quaisquer cuidados ou prevenção, poderiam morrer milhões de brasileiros.

Era possível e ainda é. O número de mortos até aqui, superior a meio milhão de brasileiros, mostra isso. O problema começa no momento em que passamos a querer combater exagero desinformacional com exagero supostamente informacional. Isso acontece no momento em que “podem morrer milhões” vira “morrerão milhões”. É o motivo pelo qual especialistas que eram unanimidade em abril de 2020 deixaram de ser no correr do ano.

É instintivo, e vou fazer uma comparação besta aqui. Se você está em um carro com outra pessoa ouvindo música e. de repente ela abaixa o volume, que estava em 10, para 8, você tende a querer aumentar para 12, não para 10, para “no final” continuar em 10. É a lógica por trás de dizer “vão morrer 2 milhões” quando alguém diz “é só uma gripezinha”. Só que não funciona assim.


Quando você diz que morrerão 2  milhões e morrem 500 mil, um número catastrófico e trágico é comparado com outro quatro vezes maior e pode se tornar mais “aceitável”. Quando diz-se “abril vai ser o pior mês da pandemia” e nada acontece em abril, quando se disser novamente que maio será o pior mês ou junho, as pessoas já não estarão ouvindo — podemos chamar de “efeito Pedro e o Lobo”.

Nesta semana um cientista político que, ao que tudo indica, é um sujeito respeitado em sua área que claramente não é imunologia ou virologia, decretou em seu Twitter: “Não acabou e vai demorar pra acabar”. Mais tarde corrigiu para “pode demorar mais do que esperamos”. Isso tem efeitos. O que ele sabe que ninguém mais sabe é misterioso e ele mesmo não informa, mas  vaticina. Vai demorar pra acabar. O próprio Tweet dele é um retweet da jornalista Luiza Caires que terminava o post lembrando que, na verdade, 78% dos internados são pessoas não vacinadas.

Quando você diz “não acabou e vai demorar para acabar” não alcança o efeito desejado. Descredencia que está discutindo o assunto com conhecimento e ponderação. E ajuda no clima de catástrofe – sim, estamos vivendo uma catástrofe em múltiplas dimensões. E há numerosas pessoas que não têm mais estrutura emocional para a montanha russa de emoções do “tá acabando/vai demorar”.

Ninguém sabe se está acabando ou se vai demorar. O que o CDC, o departamento do governo americano responsável pelo controla da pandemia, tem dito é que os novos surtos configuram uma espécie de “pandemia dos não-vacinados”, nas palavras da doutora Rochelle Walensky, diretora do órgão. O que sabemos é que existem vacinas, elas vão estar cada vez mais disponíveis em cada vez mais lugares, e elas são bastante efetivas – em alguns casos, para evitar infecções, em outros, para prevenir os efeitos das infecções.

Não quer dizer que a gente deva embarcar no clima “Carnaval 2022”. Quer dizer que a divulgação e propagação de informações em 2021 é diferente do que ela era em 1983. Que um cientista político ou uma atriz com muitos seguidores pode ajudar a propagar informações que, ainda que não sejam falsas, ajudam a turvar o cenário.

Em 2008 ou 2009, meu amigo Leonardo Mendes Junior, que então era o editor-chefe da revista ESPN, da qual eu era co-publisher, dizia: “Parece que hoje em dia jornalista passou a ser obrigado a dar opinião sobre todo e qualquer assunto”. (É uma variação de uma frase que você já deve ter lido em algum lugar mas ele disse antes!) O tempo estendeu a obrigação para todo mundo. As pessoas abrem suas redes sociais e, quando veem que está rolando alguma polêmica, saem atrás pra ver qual é pra poderem participar da rinha. Pode ser sobre arroz embaixo do feijão (uma obviedade) ou sobre crimes de responsabilidade. Ninguém precisa entender do assunto para participar, basta saber de que lado está “o meu lado”.


Não é só catastrofismo que isto gera. Este artigo, publicado pelo recomendado Undark, mostra outro lado: concluímos, com base em quase nada, que todo mundo que recusa vacinas é partidário de A ou B e faz isso pelo motivo X ou Y. O artigo fala sobre a realidade americana, onde o movimento ant-ivacinas é maior e mais antigo. Mostra que há pessoas nos dois lados do espectro político aderindo a ele, mas mostra principalmente que a análise dos motivos é enviesada. Se a pessoa que não quer se vacinar é branca, é porque é trumpista e estúpida. Se é negra ou latina, é porque não tem fé no sistema que nunca os beneficiou. O que o artigo mostra é que os motivos são parecidos, e têm muito mais a ver com classe do que com etnia.

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Como brincou o jornalista Pedro Burgos, com quem compartilhei o artigo: “Você está maluco? Está tentando ENTENDER o assunto?”. Pois é, é minha obrigação, como jornalista, entender antes de divulgar. Não é necessariamente a sua. Se você não entendeu, porém, ou não tem certeza do que entendeu, uma dica: não é obrigado a comentar. Não é obrigado nem mesmo a ter opinião sobre o assunto.

 


A dica dessa semana é a série “PCC – Primeiro Cartel da Capital”, do UOL Play, que acaba de lançar sua segunda temporada (pra ver a segunda, tem que ser assinante, pra ver a primeira, não). Com reportagens dos cracaços Flavio Costa e Luis Adorno, a série mostra um PCC além do mito. Vale muito a pena.

 

* Caio Maia é Diretor de Redação da F451, que  publica o Gizmodo Brasil, e escreve sobre mídia.

Caio Maia

Caio Maia

Caio Maia é o publisher da F451 e do GizBr. Escreve a cada duas semanas sobre mídia, e quando os editores deixam escreve sobre outras coisas também. Passou pela Folha e depois fez Trivela, revistas ESPN e Sustenta! e uma lista longa de blogs, sites e podcasts.

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