Quando o rock deu certo no cinema
O sucesso recente de filmes sobre rock – especialmente Bohemian Rhapsody (que deu a Rami Malek o Oscar de Melhor Ator pelo papel de Freddie Mercury), o documentário The Beatles: Get Back e, neste ano, Elvis – demonstra que é possível uma união positiva entre a sétima arte e o gênero musical. Rock on Film: The Movies That Rocked the Big Screen, lançado nos EUA em julho com a chancela do canal de filmes TCM, organiza as melhores realizações nesse campo, de acordo com o autor Fred Goodman.
Além de apontar os filmes que considera mais importantes (e cada um com um box sobre outro filme semelhante em tema ou artista), o ex-editor da revista Rolling Stone e colaborador do jornal The New York Times também traz entrevistas com alguns diretores importantes que exploraram a união cinema e pop.
Goodman tem conversas interessantes com Cameron Crowe (Quase Famosos), Jim Jarmusch (Mystery Train e Gimme Danger, documentário sobre The Stooges), Penelope Spheeris (The Decline of Western Civilization), Taylor Hackford (La Bamba) e John Waters (Hairspray: E Éramos Todos Jovens).
No papo com Jarmusch, o autor indica que não é muito fã das cinebiografias pop dos últimos anos. Goodman formula uma pergunta dizendo que filmes como Bohemian Rhapsody (Queen), Rocketman (Elton John) e Love & Mercy (Brian Wilson) são aprovados pelos artistas e não prezam muito pela fidelidade aos fatos.
Jarmusch responde sem se referir a esses filmes, mas elogiando outro mais antigo: “Para mim, o padrão foi logo estabelecido por The Buddy Holly Story (A História de Buddy Holly no Brasil). Não era comercial – era uma explosão de oxigênio. Gary Busey (o ator que interpretou Buddy): bela escolha, totalmente convincente, e a alegria de Buddy Holly estava presente”.
Além das entrevistas, Goodman contou com um prefácio escrito por Michael Lindsay-Hogg, diretor do filme Let It Be (1970) original. Ou seja, é o homem que filmou todas as sessões de gravações dos Beatles em janeiro de 1969 que Peter Jackson (de O Senhor dos Anéis e O Hobbit) digitalizou, remasterizou e transformou no documentário em três partes The Beatles: Get Back, sucesso de 2021 em streaming.
Sobre os filmes escolhidos pelo autor, que não seguem ordem por colocação (não é um ranking, é uma seleção), vamos dividi-los por temas:
1- Astros atuando e cantando
Muito comuns antigamente eram os filmes em que artistas do rock interpretavam papéis (mesmo que sejam eles mesmos, embora ficcionais). Entre outros, o autor destaca:
– A Hard Day’s Night (Os Reis do Ié-Ié-Ié), dos Beatles em 1964
– Jailhouse Rock (O Prisioneiro do Rock), filme de 1957 de Elvis Presley
– Purple Rain, o longa-metragem de Prince em 1984
– 8 Mile (8 Mile: Rua das Ilusões), a autobiografia disfarçada do rapper Eminem em 2002
2- Documentários
Entre as escolhas de Goodman neste gênero estão:
– Bob Dylan: Dont Look Back (A Caminho do Leste no Brasil, segundo o IMDb, título que nunca vi alguém usando), lançado em 1967, mas filmado na turnê britânica de Dylan em 1965 na qual ele praticamente virou um semideus dos anos 1960. A propósito, o “Dont” do título não tem apóstrofe mesmo.
– Metallica: Some Kind of Monster, a reveladora sessão de terapia em grupo (mesclada com ensaios e gravações) de um Metallica em conflito existencial em 2004.
– The Decline of Western Civilization: Part I, o documentário “uma câmera na mão, uma ideia na cabeça” de Penelope Spheeris sobre os punks de Los Angeles em 1981. Dependendo da intensidade das danças na plateia, poderia virar “uma ideia na mão, uma câmera na cabeça”.
– Beware of Mr. Baker, um olhar sobre o baterista genial e louco de pedra Ginger Baker (ex-Cream), que já começa com o músico batendo na cara do diretor com sua bengala.
3- Documentários de shows
Alguns clássicos apontados no livro:
– The T.A.M.I. Show, um festival pop na Califórnia em 1964 que tem apresentações curtas de Chuck Berry, Beach Boys, Marvin Gaye, Supremes e uma performance espetacular de James Brown. E, ah sim, os Rolling Stones encerrando a festança meio encabulados de entrar logo após Brown.
– Woodstock, filme de 1970 sobre o lendário festival hippie de três dias em agosto de 1969. Há boas apresentações de Sly & The Family Stone, The Who e Jimi Hendrix. E um panorama bonzinho sobre a geração “paz & amor”.
– The Last Waltz (O Último Concerto de Rock), dirigido por ninguém menos que Martin Scorsese (Taxi Driver, Os Bons Companheiros), registra a despedida de The Band em 1976, com um show cheio de convidados, de Muddy Waters a Neil Young e Bob Dylan.
– Stop Making Sense, registro de 1984 do diretor Jonathan Demme com a banda Talking Heads que eternizou o terno com mega-ombreiras do vocalista David Byrne.
– Monterey Pop, registro sobre o primeiro grande festival de rock na Califórnia em 1967, engolido pelas apresentações sensacionais de Otis Redding, The Who e Jimi Hendrix.
– Chuck Berry: Hail! Hail! Rock ’n’ Roll (Chuck Berry: O Mito do Rock no Brasil), tributo de 1987 ao pioneiro do rock em que o rolling stone Keith Richards monta uma banda de primeira para Berry, famoso pelo desleixo de pegar quem soubesse tocar em cada cidade onde ia fazer shows. O diretor Taylor Hackford diz no livro: “Queria fazer um retrato do homem mais difícil do rock and roll”.
4- Rock-ficção
Filmes inspirados na cultura rock. Em destaque:
– The Rocky Horror Picture Show (Rocky Horror Show), uma bizarrice de 1975 que virou cult e que hoje pode ser classificado como um dos primeiros filmes comerciais LGBTQIA +.
– The Girl Can’t Help It (Sabes o Que Quero), uma fantasia de 1956 dirigida por Frank Tashlin, que trabalhou em desenhos de Pernalonga e com Jerry Lewis. Apesar do enredo ser totalmente ficcional, os roqueiros Little Richard e Gene Vincent se apresentam como eles mesmos.
– High Fidelity (Alta Fidelidade), a versão cinematográfica de 2000 do livro de Nick Hornby sobre o dono de loja de discos que faz listas top 5 para tudo.
– The Blues Brothers (Os Irmãos Cara-de-pau), anárquica comédia de 1980 estrelada pelos comediantes John Belushi e Dan Aykroyd. Não, não: estrelada pelas participações de Ray Charles, Aretha Franklin, James Brown, John Lee Hooker e Cab Calloway.
– American Graffiti (Loucuras de Verão), fofas memórias do começo dos anos 1960 com rocks antigos sempre tocando ao fundo dirigida por George Lucas em 1973, antes de criar nada menos que Star Wars.
5- Filmes inspirados por discos
Alguns álbuns e músicas se transformaram em longas. Os principais:
– Quadrophenia, um filme dramático roteirizado a partir da ópera-rock homônima lançada em dois LPs pelo The Who em 1973. Como filme, melhor que a tentativa anterior com a mesma banda, Tommy, de 1975.
– Pink Floyd: The Wall, filme de 1982 que mescla atuação com animação e é a versão visual do álbum The Wall, do Pink Floyd, de 1979. Bob Geldof, vocalista do Boomtown Rats e mais famoso por ser o criador do festival Live Aid, interpreta o protagonista Pink.
6- Documentários fake e artistas ficcionais
Alguns filmes criaram bandas ou cantores que nunca existiram e se deram bem.
– Almost Famous (Quase Famosos), as memórias romantizadas do diretor Cameron Crowe dos tempos em que ele foi um jornalista adolescente (!) da revista Rolling Stone. Neste filme de 2000, o personagem inspirado em Crowe acompanha a banda ficcional Stillwater numa turnê.
– I’m Not There (Não Estou Lá), uma piração bem original de 2007 do diretor Todd Haynes, que coloca artistas diferentes (inclusive a atriz Cate Blanchett) para interpretar um suposto Bob Dylan em várias fases de sua carreira.
– This Is Spinal Tap (Isto É Spinal Tap), o primeiro e o mais clássico documentário pop fake que acompanha com muito humor o passar dos anos de uma banda que começa pop nos anos 1960 e vira hair-metal nos anos 1980.
7- Filmes biográficos
Não é fácil realizar uma boa biografia sobre um astro muito conhecido. Alguns passaram no teste.
– The Buddy Holly Story (A História de Buddy Holly) / La Bamba, dois em um no livro. Afinal, ambos tratam de dois músicos da primeira era do rock que morreram no mesmo acidente de avião em 1959. O primeiro, de 1978, é um bom mas hoje obscuro filme sobre Buddy Holly, que influenciou Beatles e Rolling Stones. O segundo, de 1987, recorda Richie Valens, que tinha apenas 17 anos quando embarcou naquele teco-teco.
– Ray, longa de 2004 sobre o gigantesco Ray Charles. Talvez a melhor cinebio de qualquer artista. Jamie Foxx É Ray na tela e recebeu um Oscar merecidíssimo. A música é impecável e até os personagens secundários realmente se parecem com as pessoas que interpretam.
– Get On Up (Get on Up: A História de James Brown), um denso filme sobre o muito genial e muito complicado mestre do soul James Brown. Só que o filme ficou meio ofuscado, sem fazer o sucesso que podia. Mas é boa a atuação no papel principal de Chadwick Boseman, depois famoso como o Pantera Negra da Marvel e, infelizmente, morto precocemente em 2020, aos 43 anos.