Para combater a má conduta científica generalizada, o governo chinês expandiu seu polêmico sistema de crédito social de forma a incluir infrações cometidas por cientistas pesquisadores. O plano pode assustar alguns profissionais, e o potencial de abuso é bastante real.
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“Pesquisadores na China que cometam má conduta científica podem em breve ser impedidos de obter empréstimos bancários, dirigir uma empresa ou se candidatar a um emprego de serviço público”, informa o jornalista científico David Cyranoski, no Nature News.
Anteriormente, o ministro da Ciência da China e as universidades do país é que tinham o poder de policiar e punir cientistas infratores, mas, agora, “dezenas de agências governamentais” receberam o poder de aplicar penas, escreve Cyranoski. Portanto, além de perder financiamento e prêmios, os pesquisadores agora enfrentam restrições de fora da academia e em campos que nada têm a ver com a pesquisa.
Isso pode parecer uma reação impulsiva ao experimento incrivelmente irresponsável de edição genética do cientista chinês He Jiankui, cujos detalhes (escassos) foram divulgados no final do mês passado. Ele admitiu ter usado a ferramenta de edição de genes CRISPR/Cas9 para modificar embriões humanos que agora são bebês gêmeos, apesar do estado imaturo da tecnologia. Além disso, o cientista conduziu a pesquisa em segredo e não passou pelos canais normais, entre outras supostas imprudências.
O governo da China fechou o projeto de He e lançou uma investigação. Ele está atualmente desaparecido, com rumores circulando de que ele estaria detido pelo governo chinês.
O anúncio de que o sistema de crédito social da China irá agora incluir cientistas pesquisadores certamente está ligado a esse episódio ainda em curso, mas a nova política é um esforço para lidar com a endêmica má conduta científica dentro da comunidade de pesquisa chinesa como um todo.
Tem havido relatos generalizados, por exemplo, de pesquisadores chineses falsificando dados, CVs e até revisões por pares. No início deste ano, o governo chinês disse que iria finalmente reprimir a má conduta acadêmica e introduzir novas reformas, incluindo a introdução de uma lista nacional de infratores maliciosos — cujos membros poderiam ser desqualificados de futuros financiamentos ou cargos de pesquisa, até mesmo os impedindo de conseguir empregos fora da academia.
A China está no processo de introdução de um sistema de classificação social abrangente e duradouro, cujo credo é “uma vez não confiável, sempre limitado”. O sistema foi lançado em 2013 e agora inclui quase dez milhões de pessoas. Ele deve ser totalmente implementado nos próximos dois a três anos, incluindo cerca de 22 milhões de cidadãos.
O programa funciona marcando indivíduos que violaram leis, regulamentos ou normas sociais e, em seguida, restringindo seu acesso a determinados serviços e programas, como a obtenção de empréstimos. Com o tempo, o programa terá como alvo pequenas imprudências, como atravessar a rua fora da faixa, não comparecer a restaurantes onde uma reserva tenha sido feita e não pagar passagens de transporte. Até o momento, o sistema de crédito social impediu mais de 11 milhões de pessoas de comprar passagens aéreas e quatro milhões de acessar o sistema ferroviário de alta velocidade. Mas nem tudo é punitivo; pontos de bônus são concedidos a pessoas que doam sangue, reciclam ou fazem trabalho voluntário.
O objetivo do sistema é acabar com a corrupção e a ilegalidade e, ao mesmo tempo, promover o comportamento pró-social. Mas seu uso em um estado de um partido único, quase totalitário, é motivo de preocupação.
Quem decide quais regras se aplicam, por exemplo, e se elas são justas? As gravidades das punições sociais são proporcionais às infrações? E o sistema visa injustamente certos segmentos da população, como os cidadãos de grupos socioeconômicos pobres? Além disso, ao estender esse sistema a ambientes acadêmicos, os pesquisadores poderiam se encontrar injustamente visados por um sistema com muito pouca responsabilização. Grupos rivais invejosos ou um pesquisador principal cujos avanços foram recusados poderiam usar injustamente o sistema para ameaçar ou ferir cientistas pesquisadores inocentes, entre muitos outros possíveis abusos.
Essas questões são desafiadoras e preocupantes, sem dúvida — especialmente para uma nação comandada por um governo irresponsável com instituições igualmente irresponsáveis.