Como uma Wiki de Star Wars foi tomada por um debate em torno de transfobia

Para se pensar o quão importante é a discussão entre as comunidades wikis e a forma com que tratam as vidas de fãs de todas as origens.
Imagem: Lucafilm/Wikimedia commons

Se você é fã de Star Wars, provavelmente já ouviu falar da Wookieepedia — uma comunidade mantida por fãs que apresenta inúmeras informações da franquia — e inclusive já passou mais tempo do que gostaria de admitir procurando por todo o tipo de conteúdo nela, desde a figura icônica de Ickabel G’ont até a história da Hegemonia Grysk. Mas, um debate interno na comunidade gerou uma polêmica no último fim de semana em relação às políticas editoriais do site, que passou a ser criticado por diferentes razões.

Desde que foi fundada há 16 anos, em março de 2005, a Wookieepedia cresceu e se tornou um dos maiores recursos não oficiais de Star Wars na internet, com mais de 165.000 artigos criados e mantidos por sua comunidade e equipes administrativas. À medida que a saga de Guerra nas Estrelas crescia junto com os filmes — e evoluiu com a compra da franquia pela Disney em 2012 –, a Wookieepedia se tornou um gigante no campo das wikis de cultura pop e é atualmente a sexta maior comunidade do gênero em todo o mundo.

Apesar de ser um espaço digital para armazenamento de arquivos de fãs não atrelado oficialmente à Lucasfilm, sua reputação como fonte confiável fez com que ela fosse utilizada por Felicity Jones, de Rogue One, e Alden Ehrenreich, de Solo, para se prepararem para suas respectivas interpretações.

A Wookieepedia não apenas arquiva as informações que fazem parte do universo Star Wars, mas também permite encontrar dados de autores, artistas e os profissionais que trabalharam nos filmes e outros produtos da saga. Todas elas são pessoas que ajudaram a construir Star Wars e são postas ao lado de heróis fictícios como Leia Organa e Rey Skywalker, com suas páginas mantidas com os mesmos padrões de validade e arquivamento. E aqui começa toda a controvérsia que o site se encontra. Como é de conhecimento geral, tem ocorrido uma mudança progressiva na crescente aceitação de identidades trans e não-binárias em círculos de fãs, especialmente pelo momento em que direitos trans e queer continuam a ser contestados em níveis estadual e federal.

Até esta semana, a Wookieepedia operava sob uma política editorial de que qualquer pessoa com uma página no wiki seria mencionada com o mesmo nome utilizado originalmente em qualquer mídia de Star Wars. No entanto, como os direitos das pessoas trans e não-binárias se tornam cada vez mais publicamente discutidos em nível social, o que a princípio poderia ter sido uma política fácil de contornar, até mesmo para um site de fãs, acabou tornando-se um problema. Então, mesmo se uma pessoa mudasse seu nome, seja por quaisquer motivos, sua página na Wookieepedia deveria permanecer creditada ao seu nome anterior.

Para pessoas trans e não-binárias, em particular, o ato de usar seu nome de nascimento em vez de seu nome social, especialmente de forma intencional, é uma ofensa à sua identidade. Na “melhor das hipóteses”, se existir este melhor diante desta situação, pode ser uma ofensa não intencional; na pior, é uma decisão que pode causar muito estresse e danos emocionais, pois é uma forma de negar quem eles verdadeiramente são. Em ambos os casos, fica claro que existe um ambiente hostil que demonstra uma agressividade que pode ser encontrada, infelizmente, em diversos outros contextos de nosso cotidiano.

A comunidade já estava discutindo questões trans recentemente, após a saída da atriz Gina Carano da série de TV Mandalorian. Em fevereiro deste ano, soubemos que ela não faria mais parte do elenco após um ano de declarações polêmicas nas redes sociais. Isso incluiu um incidente em que a lutadora que se tornou atriz atualizou sua biografia no Twitter com os dizeres “beep/bop/boop, uma brincadeira imitando as pessoas que incluem seus pronomes nas redes sociais, mas utilizando sons dos robôs da série.

Nesta ocasião, ela enfrentou duras críticas por parte da comunidade LGBTQIA+, que tomaram sua ação como uma zombaria à comunidade trans, que incentiva o uso de pronomes (ele/dele, ela/dela ou elu/delu) para que as pessoas possam se identificar conforme sua preferência.

O começo da história 

Todas essas questões vieram à tona novamente a partir da repercussão do ocorrido com o artista Robin Pronovost, um criador trans não-binário que já trabalhou nos cartões colecionáveis da ToppsStar Wars Insider e Star Wars Kids, bem como no Hyperspace.com, ex-site oficial do fã-clube de Star Wars, e usa os pronomes neutros (em inglês they/them/he). Pronovost havia feito vários pedidos ao Wookieepedia para que seu artigo no site usasse seu nome social.

“Eu apenas queria que meu nome mudasse e não achei que seria tão difícil. Afinal, no ano passado, alguém já tinha alterado meu antigo nome para Robin, por isso, não me parecia grande coisa”, disse Pronovost por e-mail ao Gizmodo. “Apesar de fornecer fontes e razões para querer a mudança, fui rejeitado de forma agressiva e violenta. Ninguém me contatou até hoje. Tem sido estressante e eu não esperava ou queria que repercutisse tanto. Mas, gostaria de agradecer a todos que me defenderam e a todas as pessoas trans”.

“Os direitos humanos nunca deveriam ser colocados em votação. E mesmo que eu possa ter feito um trabalho com um nome anterior, existem recursos que estão amplamente disponíveis e foram fornecidos para que o crédito pelo seu trabalho seja o nome escolhido pelo indivíduo. No final, tudo se resume ao indivíduo. Se uma pessoa trans deseja ter seu nome antigo como crédito, esse é o seu desejo. Não é o meu caso.”, complementou Pronovost.

Embora os fandoms tenham diretrizes e termos de serviços para cada wiki de cultura pop, como a Wookieepedia de Star Wars, Memory Alpha de Star Trek, a Marvel Cinematic Universe Wiki, estes 16 anos de administração do Wookieepedia foram realizados por equipes de colaboradores voluntários. As políticas do site e as decisões editoriais foram feitas pela equipe de administradores, mas também discutidas e votadas pelos contribuidores do site nos fóruns Consensus Track da Wookieepedia.

Inclusive, em 16 de março, um tópico no Consensus Track foi criado, buscando alterar a política com um adendo simples: “Se uma pessoa do mundo real é transgênero e mudou seu nome desde que trabalhou em Star Wars, seu artigo pode ser intitulado por seu nome escolhido e o nome creditado redirecionaria para a página atualizada”. Para muitos envolvidos, o fato de a Wookieepedia ter transformado um simples pedido de respeito em um debate editorial a ser votado foi um passo longe demais.

Período da votação

A votação começou como qualquer outra: os usuários teriam duas semanas (o prazo era até 30 de março) para votar a favor ou contra a emenda. Para votar em debates que afetam a política do site em primeiro lugar, a Wookieepedia promulga regras de verificação rigorosas. Os editores já devem ter contribuído de forma proativa para as edições dos mais de 100 mil artigos do site, com 50 contribuições no total. Os votos da política do site, em particular, têm uma regra adicional — os votos só passam se obtiverem a proporção de 2: 1.

Para a maior parte, por mais controversa que tenha sido a votação, grande parte do período de duas semanas transcorreu como qualquer outro. Aqueles a favor da mudança argumentaram que negar o pedido fomentaria um ambiente hostil tanto para os visitantes queer quanto para os contribuidores da Wookieepedia, enquanto os que eram contra afirmaram que a intenção não  era desrespeitar as pessoas trans, mas proteger os rankings de SEO da Wookieepedia online.

Três dias antes da votação ser concluída, no último fim de semana, os bastidores da votação saíram da Wookieepedia e chamaram a atenção de círculos mais amplos de fãs de Star Wars, em grande parte por meio de um tuíte do jornal Eleven-ThirtyEight:

“Tendo sido um elemento fixo da comunidade Wookieepedia original por um bom tempo, mantenho várias amizades com pessoas que são ativas nessas coisas, e sabendo como eu provavelmente reagiria, um conhecido chamou minha atenção quando parecia estar em risco de perder”, disse Mike Cooper, editor-chefe do Eleven-ThirtyEight, ao Gizmodo por e-mail. “Eu simpatizo com a ideia de que este assunto não deveria ser resolvido com uma votação, mas como eu disse, minhas expectativas em relação a eles eram tão baixas que minha reação primária foi uma agradável surpresa — até mesmo potencialmente aprovar uma mudança de política como essa significava que a comunidade havia evoluído.”

Cooper contribuiu para a Wookieepedia em seus primeiros dias com o nome de usuário CooperTFN. “Quando a Wookieepedia foi lançada pela primeira vez, eu estava escrevendo para o fansite TheForce.Net e era um grande apoiador”, disse ele. “Eu mesmo fui um editor regular por um tempo e escrevi alguns artigos grandes basicamente do zero, mas minha escrita tendia a ser um pouco floreada em comparação com o padrão enciclopédico [leia-se: seco] desejado. Nos anos seguintes, meu entusiasmo por esse grau de atividade diminuiu e, em retrospectiva, só acho que não era muito a minha cara”. Parte desse desânimo surgiu quando Cooper percebeu que a administração da Wookieepedia começou a tomar decisões que iam por um caminho diferente de suas próprias crenças, sobre as quais ele escreveu extensivamente na Eleven-ThirtyEight.

Esta não é a primeira vez que a Wookieepedia luta com políticas editoriais discriminatórias na missão do site de catalogar todas as facetas da galáxia de Star Wars. Uma controvérsia semelhante surgiu em 2014, quando uma “piada” de primeiro de abril, uma versão modificada da página do artigo do site sobre seios foi destacada na página inicial da Wookieepedia como o artigo do dia. O conteúdo continham um forte cunho sexista e estimulou tentativas dos editores em excluir a página do site. Mas, a primeira votação falhou em 2007, pois resultou em um placar de 26 a 21 votos a favor da exclusão, o que não atendia à exigência de proporção de 2:1 da Wookieepedia.

Captura de tela: Fandom

Em 2014, a votação para deletar a página falhou novamente por 26 votos a favor da manutenção e apenas dois contra, mesmo quando o site emitiu um pedido formal de desculpas pelo ocorrido. “Eu estava ciente do processo do Consensus Track o tempo todo, mas a primeira vez que realmente me vi em desacordo com ele foi em 2014, quando uma controvérsia semelhante surgiu com o artigo sobre seios — que acabou terminando retumbantemente a favor deles”, afirmou Cooper.

Cooper também nos contou sobre sua mudança da comunidade Wookieepedia. “[A equipe de administração] seguiu em frente e eu não escondi minha opinião, mas este fim de semana foi a primeira vez desde então que algo realmente veio à tona me envolvendo pessoalmente. Eu sabia que o padrão de ‘editor ativo’ deles me manteria fora de quaisquer outros votos de significância, então eu simplesmente parei de pensar sobre isso”.

Agora, sete anos depois, a página permanece, com as guias “Canon” e “Legends” trazendo diferentes fontes anteriores e posteriores à aquisição da Disney, em referência aos reboots da franquia. A aba “Canon” tem como imagem um Kylo Ren de peito nu no filme Star Wars: O Último Jedi. Na aba “Legends”, é uma obra de arte do livro Star Wars: Visions, de 2010, retratando a Mestra Jedi Aayla Secura dormindo nua.

Mesmo que a votação sobre o assunto tendesse a passar a favor da alteração de nome, Cooper resolveu abrir a discussão nas redes sociais para mostrar que as principais decisões em uma das maiores comunidades de fãs online de Star Wars normalmente operavam sob camadas de burocracia obscura, não muito diferente do próprio Senado Galáctico da franquia.

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“Muitas pessoas se surpreenderam com a ideia de que uma questão de direitos humanos estaria sujeita a um voto popular…mesmo com vários votos de apoio que indicavam que a proibição para uso do nome antigo estava a caminho de ser aprovada”, disse Cooper. “Devo admitir que a administração parece ter agido totalmente de acordo com as regras estabelecidas. O problema é que 99% das faixas de consenso são sobre questões extremamente pequenas ou esotéricas, então essas regras são capazes de se infiltrar sem que ninguém de fora dos escalões internos jamais perceba e, então, quando algo realmente importante como isso surge, que é de fora fica compreensivelmente confuso sobre como as regras são desequilibradas e quanto peso a administração é capaz de jogar sem violá-las tecnicamente”.

Ele continuou: “Odeio igualar isso à supressão de eleitores no mundo real, mas é como se a recente lei da Geórgia [que restringe certos direitos de voto] tivesse sido aprovada há um ano e ninguém percebeu até o dia das eleições gerais”.

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