Bactérias “invisíveis” levam pesquisadores a repensar nosso sistema imunológico
Pesquisadores descobriram micróbios no fundo do mar que são completamente invisíveis para o sistema imunológico humano. Esta é uma descoberta um tanto desconcertante, porque sugere que a capacidade aparentemente universal de nosso corpo de reconhecer bactérias não é tão abrangente assim.
A pesquisa feita por uma equipe interdisciplinar foi publicada na semana passada na revista Science Immunology. A conclusão deles é que a maneira como o sistema imunológico de mamíferos detecta problemas — as regras e padrões que seguimos para nos proteger — pode ser definida por aspectos locais e não globais, algo que vai contra uma crença de longa data na imunologia. Esses micróbios marinhos nunca tiveram contato com a vida de mamíferos antes, nem mesmo mamíferos marinhos, de acordo com os pesquisadores.
A bactéria foi descoberta no fundo do mar da Área Protegida das Ilhas Phoenix, um santuário marinho maior que o Mato Grosso do Sul, estabelecido perto da costa da nação insular de Kiribati. Praticamente intocada pela humanidade, a área é o maior e mais profundo patrimônio mundial da Unesco e ofereceu uma oportunidade única para a equipe de pesquisa investigar o que prospera na ausência dos seres humanos. Os cientistas visitaram o local durante três semanas em 2017, viajando a bordo de um navio que continha um laboratório que eles poderiam usar para cultivar células recém-retiradas de águas remotas. Eles coletaram bactérias gram-negativas de amostras do fundo do mar usando um veículo operado remotamente denominado SuBastian.
“Você está tão longe que as pessoas mais próximas de você estão na Estação Espacial Internacional”, disse Randi Rotjan, ecologista marinho da Universidade de Boston e coautor do artigo, em uma videochamada ao Gizmodo. “Tudo o que você tem é o que trouxe no navio com você. Esse presente de tempo e pensamento profundo e oportunidade — é uma combinação simplesmente mágica.”
Os organismos unicelulares que eles descobriram formularam uma equação de sobrevivência duradoura e bem-sucedida que frequentemente depende de ter um organismo hospedeiro para se alimentar. Para descobrir se essas bactérias do fundo do mar seriam reconhecidas por células de mamíferos, a equipe isolou o revestimento de lipopolissacarídeo (algo como a “pele” da bactéria) de 50 cepas bacterianas diferentes e as expôs a células humanas e de camundongo in vitro. O resultado obtido foi: 80% das cepas da amostra não produziram resposta imunológica.
Para Jonathan Kagan, coautor da pesquisa, embora a equipe não tenha certeza do que torna os micróbios invisíveis dessa forma, eles sugerem que pode ter a ver com certas características do lipopolissacarídeo que os reveste, que pode ser “considerada a pele da maioria das bactérias, e de todas as bactérias que vivem no oceano”.
“Cada patógeno virulento tem a capacidade de fazer o que essas bactérias do fundo do mar estão fazendo por acidente, ou seja, se escondem do nosso sistema imunológico”, disse Kagan, que também é imunologista da Harvard Medical School. “E, portanto, um dos riscos que você pode imaginar quando os ecossistemas se chocam é que você pode acabar com micróbios que são acidentalmente virulentos contra nós.”
Enquanto nosso sistema imunológico sinaliza os micróbios com sua pele de lipopolissacarídeo, aqueles que normalmente passam despercebidos pelo radar têm um número diferente de seis cadeias de acila, pequenos raios que se projetam da camada lipídica que cerca as bactérias. O mais estranho aqui é que os micróbios invisíveis para as células de mamíferos tinham as seis cadeias de acila padrão; sua invisibilidade pode, em vez disso, ser atribuída ao fato de que todos eles tinham correntes particularmente longas.
“Não sabemos por que isso faz sentido, de forma alguma”, relata Kagan. “Mas sabemos que existe uma correlação perfeita entre cadeias de acila muito longas e silêncio imunológico. E isso é algo para nós e a comunidade estudarmos mais.”
“Essa descoberta questiona o dogma dos receptores de reconhecimento de padrões que identificam componentes microbianos amplamente conservados, como o lipopolissacarídeo” , escreveu Alison Scott, microbiologista da Universidade de Maryland, via email. Ela ainda complementa dizendo que a variedade de lipopolissacarídeos encontrados no fundo do mar é um lembrete de que os cientistas precisam entender melhor como nosso sistema imunológico identifica as ameaças bacterianas.
A equipe de pesquisa retornará à área protegida em junho para outra visão do mundo estranho do mar profundo, onde o coral pode viver por milênios e muitas espécies permanecem não catalogadas. A viagem de volta oferecerá uma oportunidade de ver como os micróbios se envolvem com os organismos hospedeiros e com o ambiente local, mais especificamente, além de conduzir mais experimentos no navio.
“Você faz uma pergunta quando faz um experimento. E quando você obtém a resposta, pode não ser em uma língua que você entenda ou de uma forma que possa interpretar”, disse Rotjan. “É uma conversa muito lenta e deliberada que você está tendo com o mundo natural, que ocorre ao longo de uma vida ou mais.”
Esta pesquisa não é tão arriscada quanto pode parecer, já que esses micróbios provavelmente não escaparão do laboratório e desencadearão uma nova praga. As bactérias prosperam em temperaturas frias e escuras e em pressões extremamente altas, não em lugares que os humanos gostam de ficar. No navio, eles são mantidos em uma geladeira — caso contrário, morreriam rápido demais para serem devidamente estudados. Mas, se o ano passado nos ensinou alguma coisa, é que quando você revira muitas pedras, é provável que encontre algo desagradável embaixo de uma delas. É importante entender o que nosso corpo não pode ver e que tipo de dano essas coisas podem causar para que possamos nos preparar melhor.
“A implicação disso”, disse Kagan, “é que há um risco significativo de que, se as regras de imunidade forem definidas localmente, quando você for para um novo local, poderá esbarrar em coisas que normalmente não são patogênicas, mas se tornam patogênicas.” Já sabemos que é preciso tomar certas vacinas antes de viajar pelo mundo, mas Kagan traz um novo tipo de risco: ao perfurar o Ártico ou mergulhar no fundo do mar, podemos encontrar um germe contra o qual realmente não temos defesas inatas.